Exame Logo

Os racialistas não se conformam com a nossa miscigenação

Caros, este é o artigo do Prof. José Roberto Pinto de Góes publicado em “O Globo” do dia 23 de março, contra as cotas raciais e em defesa da miscigenação brasileira: Um país misturado O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade do sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília. A decisão que vier a tomar pode pôr fim à tentativa de governos e ONGs de levar o […] Leia mais

DR

Da Redação

Publicado em 24 de março de 2010 às 13h32.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às 12h07.

Caros, este é o artigo do Prof. José Roberto Pinto de Góes publicado em “O Globo” do dia 23 de março, contra as cotas raciais e em defesa da miscigenação brasileira:

Um país misturado

O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade do sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília. A decisão que vier a tomar pode pôr fim à tentativa de governos e ONGs de levar o Estado brasileiro a classificar racialmente os cidadãos, ou incorporar de vez leis raciais ao nosso ordenamento jurídico.

O sistema de cotas raciais da UnB sempre foi escandaloso — até para os padrões racialistas, que são muito elásticos. Na sua primeira versão, o candidato às vagas para a “raça negra” devia anexar uma fotografia à declaração de ser negro. Uma comissão julgava o caso. Aí veio o supremo ridículo, no vestibular de 2007: a comissão certificou a negritude de Alan e recusou a de Alex, irmãos gêmeos idênticos. A exigência da fotografia caiu, mas a comissão ainda existe e é secreta, clandestina. Não é incrível? Um grupo anônimo, sem delegação alguma da sociedade, se arvora o direito de dizer a mim, a você, a qualquer brasileiro, o que somos e a que raça pertencemos. A UnB criou um tribunal racial e a figura jurídica do estelionato racial.

Audiências públicas foram realizadas no início deste mês. O STF ouviu 28 pessoas favoráveis às cotas raciais e 12 contrárias. Mas as intervenções foram pautadas pela serenidade, educação e respeito, como convém à dignidade daquela Corte. Os maus modos começaram depois, na imprensa e na internet. Tem sido sempre assim: a militância racialista não discute — porque não quer ouvir argumentos diferentes dos seus — e se contenta e se compraz em desqualificar o “inimigo”, que só pode estar mal intencionado, ser contra a inclusão social, os pobres, os negros e tudo de justo e razoável que pode haver nesse mundo.
O alvo da vez é o senador Demóstenes Torres, crítico das leis raciais. Na qualidade de presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, ele fez uso da palavra e, entre outras coisas, afirmou que os brasileiros não padecem de uma espécie de pecado original, caracterizado pelo estupro das escravas por seus proprietários (obviamente todos brancos, nessa versão). Desde então, tem sido amplamente caluniado, como se tivesse negado a natureza intrinsecamente má da escravidão e o poder dos senhores de violentar suas escravas.

O senador não disse nada disso. No que disse, tem razão. A miscigenação do povo brasileiro tem pouco a ver com estupro de escravas. Não se trata de negar ou diminuir a dor experimentada por muitas mulheres que se viram cara a cara com o mal, representado pelo desejo sexual despótico do proprietário.

Mas a nossa miscigenação, tão larga, tão ampla, se fez, sobretudo, entre a população pobre e livre — geralmente bem maior do que a população escrava. Todas as fontes até hoje estudadas o indicam. Se alguém tem provas em contrário, que apresente. Até lá, não há por que duvidar que somos mestiços filhos do desejo, do amor e do cuidado de nossas famílias.

Por que os racialistas insistem em criar o Mito do Estupro Original? É simples: porque precisam associar a idéia de negro (na qual incluem os pardos) à de vítima. A vitimização da “raça negra” é peça central na ideologia racialista: sem ela não há cotas, não há reparação, não há leis raciais.
Além disso, não se conformam com a nossa miscigenação. Tudo seria muito mais fácil se o Brasil fosse um país bicolor, pretos de um lado, brancos de outro. Não é. Então, faz-se necessário desqualificar a nossa mistura e inventar um passado pecaminoso para ela.

Moral da história: não se pode querer leis raciais para o Brasil sem levar na alma certo incômodo com Brasil tal como ele é: misturado, racialmente indistinto e surdo a apelos raciais.

JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Veja também

Caros, este é o artigo do Prof. José Roberto Pinto de Góes publicado em “O Globo” do dia 23 de março, contra as cotas raciais e em defesa da miscigenação brasileira:

Um país misturado

O Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade do sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília. A decisão que vier a tomar pode pôr fim à tentativa de governos e ONGs de levar o Estado brasileiro a classificar racialmente os cidadãos, ou incorporar de vez leis raciais ao nosso ordenamento jurídico.

O sistema de cotas raciais da UnB sempre foi escandaloso — até para os padrões racialistas, que são muito elásticos. Na sua primeira versão, o candidato às vagas para a “raça negra” devia anexar uma fotografia à declaração de ser negro. Uma comissão julgava o caso. Aí veio o supremo ridículo, no vestibular de 2007: a comissão certificou a negritude de Alan e recusou a de Alex, irmãos gêmeos idênticos. A exigência da fotografia caiu, mas a comissão ainda existe e é secreta, clandestina. Não é incrível? Um grupo anônimo, sem delegação alguma da sociedade, se arvora o direito de dizer a mim, a você, a qualquer brasileiro, o que somos e a que raça pertencemos. A UnB criou um tribunal racial e a figura jurídica do estelionato racial.

Audiências públicas foram realizadas no início deste mês. O STF ouviu 28 pessoas favoráveis às cotas raciais e 12 contrárias. Mas as intervenções foram pautadas pela serenidade, educação e respeito, como convém à dignidade daquela Corte. Os maus modos começaram depois, na imprensa e na internet. Tem sido sempre assim: a militância racialista não discute — porque não quer ouvir argumentos diferentes dos seus — e se contenta e se compraz em desqualificar o “inimigo”, que só pode estar mal intencionado, ser contra a inclusão social, os pobres, os negros e tudo de justo e razoável que pode haver nesse mundo.
O alvo da vez é o senador Demóstenes Torres, crítico das leis raciais. Na qualidade de presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, ele fez uso da palavra e, entre outras coisas, afirmou que os brasileiros não padecem de uma espécie de pecado original, caracterizado pelo estupro das escravas por seus proprietários (obviamente todos brancos, nessa versão). Desde então, tem sido amplamente caluniado, como se tivesse negado a natureza intrinsecamente má da escravidão e o poder dos senhores de violentar suas escravas.

O senador não disse nada disso. No que disse, tem razão. A miscigenação do povo brasileiro tem pouco a ver com estupro de escravas. Não se trata de negar ou diminuir a dor experimentada por muitas mulheres que se viram cara a cara com o mal, representado pelo desejo sexual despótico do proprietário.

Mas a nossa miscigenação, tão larga, tão ampla, se fez, sobretudo, entre a população pobre e livre — geralmente bem maior do que a população escrava. Todas as fontes até hoje estudadas o indicam. Se alguém tem provas em contrário, que apresente. Até lá, não há por que duvidar que somos mestiços filhos do desejo, do amor e do cuidado de nossas famílias.

Por que os racialistas insistem em criar o Mito do Estupro Original? É simples: porque precisam associar a idéia de negro (na qual incluem os pardos) à de vítima. A vitimização da “raça negra” é peça central na ideologia racialista: sem ela não há cotas, não há reparação, não há leis raciais.
Além disso, não se conformam com a nossa miscigenação. Tudo seria muito mais fácil se o Brasil fosse um país bicolor, pretos de um lado, brancos de outro. Não é. Então, faz-se necessário desqualificar a nossa mistura e inventar um passado pecaminoso para ela.

Moral da história: não se pode querer leis raciais para o Brasil sem levar na alma certo incômodo com Brasil tal como ele é: misturado, racialmente indistinto e surdo a apelos raciais.

JOSÉ ROBERTO PINTO DE GÓES é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Acompanhe tudo sobre:Racismo

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se