O que pretendem afirmar as políticas afirmativas
O blog “No Race BR” publicou texto escrito por um leitor, André de Almeida, professor associado do Departamento de Engenharia Química/UFRRJ, mostrando que a discussão sobre cotas não está restrita ao círculo de intelectuais das ciências sociais: “A questão das cotas no ensino superior tem sido o centro das atenções de um conjunto de políticas, gestadas ou implementadas, voltadas à segmentação da sociedade brasileira em duas categorias: “brancos” (ou seja, […] Leia mais
Publicado em 1 de agosto de 2010 às, 01h40.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 11h31.
O blog “No Race BR” publicou texto escrito por um leitor, André de Almeida, professor associado do Departamento de Engenharia Química/UFRRJ, mostrando que a discussão sobre cotas não está restrita ao círculo de intelectuais das ciências sociais:
“A questão das cotas no ensino superior tem sido o centro das atenções de um conjunto de políticas, gestadas ou implementadas, voltadas à segmentação da sociedade brasileira em duas categorias: “brancos” (ou seja, não-negros) e “negros” (composta por pretos e todo o restante da diversidade cromática brasileira). Recorrendo a termos alternativos como raça, cor ou etnia, mas mantendo a essência de sua inspiração original – os EUA -, estas políticas são referenciadas como afirmativas.
Sendo assim, antes de nos perdermos em questões que, de fato, não se encontram em discussão – como a inexistência de raças entre os homens, o sistema de “mérito” para a ocupação de espaços sociais ou a repercussão acadêmica da entrada de grupos sociais previamente determinados – seria interessante que tentássemos refletir sobre as afirmações implícitas nas políticas com este recorte. Porque estas, como qualquer outra política, partem de determinadas representações da realidade e procuram atender a interesses específicos. Sem entende-las neste contexto, não poderemos avaliá-las em perspectiva histórica, nem tampouco procurar extrapolar o seu impacto no desenvolvimento da sociedade brasileira.
A primeira destas afirmações é que a sociedade brasileira é racista, ou seja, deliberadamente segrega a parcela da população de “raça negra”. Mesmo reconhecendo que este racismo nunca foi institucionalizado, como na matriz inspiradora, teria organizado de fato a estruturação da sociedade. E é precisamente este racismo que, mesmo velado, camuflado ou envergonhado, impossibilita a ascensão social da população negra. Esta afirmação busca a sua legitimação a partir da confrontação, direta, de dados estatísticos oficiais – renda, escolaridade, taxa de mortalidade, etc – entre “brancos” e “negros”. Trabalhados neste nível de agregação, as médias produzidas aparentam respaldar a afirmação.
Tomando, então, o racismo como um dado essencial da realidade e considerando o possível efeito na valorização social da população “negra” surge a segunda afirmação: a necessidade de construir uma identidade negra. Para tanto, os termos de conotação étnica adquirem especial importância, emergindo assim os “afro-descendentes” e “afro-brasileiros”. Para fortalecer o caráter étnico desta identidade, construída a partir da idéia de uma homogeneidade africana, recorrentemente são produzidos, para efeito de comparação, outros grupos “étnicos” brasileiros; é quando surge um Brasil multi-étnico, formado por italianos, japoneses, alemães, árabes, etc. A partir desta representação de uma sociedade fragmentada, os “negros”, conscientes do pertencimento ao seu grupo de iguais em confronto com os diversos outros, estariam preparados para enfrentar, de verdade, a luta contra o racismo.
A terceira, e última, dimensão desta construção simbólica aparece na vinculação causal entre identidade (africana), escravidão e racismo. Desta tríade é lançada uma culpa atávica sobre toda a população “branca” que estaria por exigir mecanismos para reparação e compensação. Na atual conjuntura, ponderado o nível de aceitação social, estes mecanismos convergem para a focalização de políticas públicas. Daí a afirmação de que é necessário reservar espaços sociais a serem ocupados apenas por “negros”.
Em poucas palavras estes são os principais argumentos que se articulam na formação do suporte ideológico para a reinvindicação de políticas afirmativas que, no momento, têm o seu impulso inicial com a implementação de cotas no ensino superior e a aprovação do estatuto da igualdade racial, mas que, a longo prazo, apontam para uma ação de estado baseada numa visão de sociedade fragmentada nestes termos.
Este conjunto de argumentos – que procurei expor como eles são defendidos – apresenta, entretanto, diversos problemas. O primeiro deles diz respeito ao tipo de agregação e à interpretação oferecida aos dados estatísticos usados como suporte científico. Ao não considerar tanto o caráter de classe da estrutura social brasileira como o da sua dinâmica determinada pelos movimentos do capitalismo, parte para uma simplificação ao tipificar grupos homogêneos de brancos e negros. Por exemplo: entre os brancos se encontra, seguramente, aquele percentual diminuto da sociedade brasileira que se apropria da fração expressiva da renda (e da riqueza) nacional; ao serem agregados ao restante da população branca – e pobre – deturpam qualquer média de indicadores sociais. Ao mesmo tempo, estes argumentos desconsideram deliberadamente toda agregação de dados que, partindo dos pobres como um segmento social representativo, aparentam mostrar não haver diferença estatística significativa no desempenho social.
Um segundo problema se encontra na questão da identidade negra. Qual seria esta identidade particular, para além da cor da pele? A origem africana, parece ser a resposta sugerida. Neste ponto, duas questões se colocam. A primeira diz respeito a qual África se está referindo, visto que tanto histórica, sociológica como culturalmente sempre existiram e existem muitas áfricas. A própria origem dos escravos que para cá vieram é bastante diversificada. A outra questão é que grande parte deste diversificado aporte cultural já está plenamente incorporado à cultura brasileira e, portanto, constitui uma marca de identidade para toda a população. Esta mesma constatação coloca em dúvida a própria afirmação de um racismo estrutural, uma vez que fica difícil imaginar mecanismos sociais, amplamente difundidos, que ao mesmo tempo segregam e incorporam os elementos culturais dos segregados.
Um outro aspecto deve, também, ser problematizado. É a idéia implícita na associação entre reparação e culpa por processos históricos. Na realidade a referência à História, nestes casos, é meramente instrumental, visto que este tipo de concepção é fundamentalmente a-histórica. Um processo histórico é sempre o resultado de múltiplas determinações. E assim foi também a escravidão. Diversos agentes – indivíduos, populações, nações e Estados – e variados interesses conduziram à sua operação. A historiografia recente tem apresentado inúmeras evidências da participação de indivíduos (alforriados) e populações negras (outras etnias ou grupos) neste processo. Para o bem ou para o mal, a História não se presta ao modelo hollywoodiano de pensar o mundo como a luta de mocinhos contra bandidos. Se há culpa e reparações necessárias, devemos encontra-las no presente. Nesta sociedade profundamente desigual e excludente onde, ao sabor da onda neoliberal, contingentes cada vez maiores da população (de todas as cores!) são arrastados para a indigência social.
Por último deveríamos refletir sobre o resultado alcançado por este tipo de política na sociedade que lhe deu origem: a sociedade estadunidense. Lá, ao mesmo tempo em que foi se constituindo uma classe média de “afro-americanos” – tão conservadora como o conjunto da classe média – a maioria da população negra foi conduzida às prisões, aos guetos e a um padrão social bem inferior às médias nacionais. O racismo, para além dos numerosos grupos organizados, continua a existir e a determinar grande parcela das interações sociais. Como se pode observar, as políticas afirmativas não operam no sentido de reverter as injustiças sociais. Pelo contrário, como toda política social que focaliza ações ao invés de universalizá-las, se enquadra perfeitamente na ordem de interesses do capital. Não por outra razão encontramos as suas Fundações (Ford, Rockfeller, etc.) entre os principais financiadores dos movimentos que reivindicam a sua implementação.
Mas não deixa de ser intrigante constatar como, em nome da justiça social, se opta por adotar este modelo, quando em um outro país – de colonização primário-exportadora, abolição tardia, e origem latina como o nosso – as políticas de universalização de direitos sociais levaram a uma efetiva ampliação da igualdade social. Existe racismo em Cuba, mas é uma percepção de foro individual que não interfere na estruturação e na dinâmica de sua sociedade. Que razões, então, existiriam para a realização social alcançada por Cuba tornar-se invisível a este debate? Talvez a resposta se encontre junto ao porquê destas políticas terem ganho impulso no Brasil na seqüência dos governos FHC e Lula, quando desenvolveu-se claramente os contornos neoliberais para as políticas públicas.
Para concluir é forçoso reconhecer que existe racismo no Brasil, como, também, preconceito contra judeus, homossexuais, nordestinos e, principalmente, contra pobres. Mas há de se reconhecer ainda que, por mais que se olhe para o mundo, não se encontra experiência mais avançada do que a nossa forma de socializar a diferença, seja racial, étnica, de cor ou que outro qualificativo se encontre. Esta incrível mestiçagem brasileira já é, por si só, uma confirmação. O racismo envergonhado, de que somos acusados de possuir, nada mais é do que o resultado do constrangimento social construído, silenciosamente, contra o racismo. Não devemos, então, procurar modelos. Nós somos o modelo a ser seguido; é a partir do patamar que alcançamos que devemos aprofundar e avançar. No entanto, nós temos que admitir que não somos uma democracia racial. O problema central, todavia, não se encontra no adjetivo; é para o substantivo, democracia, que devemos voltar nossa reflexão. Nenhuma sociedade tão desigual, na distribuição da renda e da riqueza, pode se acreditar democrática. Não pode existir democracia em convívio com tamanha injustiça social, com a cotidiana criminalização da pobreza. Este é o problema a ser enfrentado, mas, certamente, não será fragmentando “racialmente” a sociedade que o faremos. Ao contrário, efetivada esta fragmentação, estaremos legando um problema adicional para o futuro. E é a necessidade desta clivagem social, que as políticas com este corte tentam afirmar, que nós precisamos, urgentemente, negar.
André de Almeida
Prof. Associado – DEQ – IT – UFRRJ”