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O privado é de fato melhor?

O interesse do Estado em privatizar a Sabesp, maior companhia de saneamento do país, traz à tona questão primordial de um debate recorrente na sociedade

Sabesp: empresa propõe aumentar tarifa para consumo de até 10 metros cúbicos (foto/Divulgação)
Sabesp: empresa propõe aumentar tarifa para consumo de até 10 metros cúbicos (foto/Divulgação)

Muito tem se debatido sobre a importância do saneamento básico para o desenvolvimento do país e a qualidade de vida das pessoas e, diante dos desafios para sua universalização, qual seria o papel da iniciativa privada para o alcance desse objetivo. Trata-se de um setor econômico que, sob intenso debate público, se organizou nas últimas duas décadas para avançar com a provisão privada dos serviços, principalmente com a aprovação do novo marco legal do saneamento, em 2020. Mais recentemente o tema voltou às manchetes diante do interesse do Estado de São Paulo em privatizar a Sabesp, maior companhia de águas do país. Mas afinal, a gestão privada do saneamento traz benefícios concretos à sociedade?  

Uma contribuição relevante para tentar responder essa pergunta foi dada por um grupo de pesquisadores de renomadas instituições de ensino e pesquisa (FECAP, FGV e USP) em um estudo intitulado “Does private means better?" (“Privado significa melhor?”, em tradução livre), que compara os resultados de operadores privados de saneamento frente às empresas que permaneceram sob a gestão pública no período de 2007 a 2018. A pesquisa se debruçou sobre informações de 1568 operadores presentes no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), atualmente sob gestão do Ministério das Cidades. Os dados trabalhados representam no abastecimento de água e na coleta de esgoto, respectivamente, 92% e 72% dos municípios brasileiros e, 98% e 93% da população urbana do país. 

Os pesquisadores encontraram evidências consistentes de que tanto a cobertura do abastecimento de água e da coleta de esgoto, quanto o seu tratamento, melhoraram em municípios que optaram pela operação privada se comparado àqueles que continuaram a depender das empresas públicas. Aqui está a se falar em levar água limpa às pessoas e garantir a devida coleta e destinação do esgoto por elas gerado, o que reduz as hospitalizações por infecções, a mortalidade infantil, a proliferação de mosquitos transmissores de doenças, e os gastos com a saúde pública. 

Mas os benefícios vão além. A melhoria na saúde geral da população reduz o absenteísmo nas escolas e trabalho, com reflexos na escolarização de crianças e jovens, além do aumento da produtividade e renda dos trabalhadores. Os investimentos em estações de tratamento permitem que a água possa ser reutilizada ou devolvida ao meio ambiente sem representar uma ameaça de contaminação dos rios, mares e solo, resguardando a vitalidade dos ecossistemas naturais. Não por acaso a universalização do saneamento é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas, com vista ao fortalecimento da sociedade e do meio ambiente.  

Outro aspecto avaliado pelo estudo foi a dinâmica tarifária com a mudança no modelo de gestão, uma variável de fundamental importância, dado seu impacto no orçamento das famílias, principalmente as de baixa renda. Afinal, trata-se de um serviço essencial e prestado em condição de monopólio, pelas próprias características da indústria, o que, se não devidamente regulado, pode expor os consumidores ao potencial abuso de poder econômico das empresas prestadoras do serviço.  

Sobre este ponto, o estudo constatou uma sensível diminuição inicial das tarifas ao consumidor com a gestão privada, embora sua taxa de crescimento ao longo do tempo tenha sido maior que a das operadoras públicas. De todo modo, segundo a pesquisa, como os cortes tarifários nos primeiros anos são significativos, mesmo com esse diferencial, o seu valor absoluto permaneceu abaixo do das empresas governamentais ao longo do período analisado, evidenciando o benefício aos consumidores.  

Um último aspecto contemplado pelo estudo foi o nível de perda da água tratada. Levantamento do Instituto Trata Brasil indica que atualmente mais de 40% da água é perdida no caminho até a casa das pessoas devido a vazamentos, erros de medição e consumos não autorizados (os famosos “gatos” nas instalações). Segundo o instituto, isso representa um volume equivalente a quase 8 mil piscinas olímpicas desperdiçadas diariamente, o que seria suficiente para abastecer 67 milhões de brasileiros por ano.  

Nesse quesito, os resultados encontrados não mostraram diferenças significantes do ponto de vista estatístico ou econômico que permitam afirmar que houve, de fato, benefícios concretos advindos da gestão privada. Trata-se, portanto, de um aspecto a ser aprimorado nas futuras iniciativas de desestatização e melhor observado pelos órgãos reguladores. Isso porque a redução de perdas evita a captação desnecessária dos recursos naturais para fins de saneamento e reduz ineficiências econômicas que encarecem o custo do serviço ao consumidor final.  

O fato é que, num país com tamanhos desafios para universalizar o saneamento, é fundamental compreender as vocações e limites dos possíveis modelos de gestão do serviço, tanto para aprimorá-los, como para melhor qualificar o debate público a seu respeito. Não podemos perder de vista, também que, a perspectiva de maior participação privada no setor demandará reguladores fortalecidos, com as competências técnicas e equipes adequadas para desempenhar sua função, além de transparência e independência no processo regulatório. Tudo precisa ser baseado em evidências, método e ciência, sem deixar de lado, é claro, as particularidades de cada comunidade atendida, para o bem das pessoas e do meio ambiente.