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O CARF e o voto de qualidade do Fisco

Um dos aspectos do custo-Brasil se refere ao tamanho das disputas entre setor privado e o governo

Carf é um órgão colegiado, criado em 2009, para julgar processos tributários quando há divergência entre o fisco e o contribuinte (Divulgação/Divulgação)
Cristiane Schmidt

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 13 de outubro de 2023 às 13h35.

A discussão sobre a governança do CARF é sensível. Conquanto haja boas alegações para que o voto de qualidade, no caso de empate, seja do contribuinte ou para que haja outras configurações de governança desta autarquia, argumento que este voto, hoje, deva ser do Fisco. Jamais pela razão do governo ter que fechar suas contas pela via de maior arrecadação, prejudicando o contribuinte; mas pela razão de ser desse órgão e pelas atuais normas brasileiras. A ver.

Um dos aspectos do custo-Brasil se refere ao tamanho das disputas entre setor privado e o governo. Como lembra Marcos Lisboa em texto publicado no dia 25/09 no Brazil Jounal (Uma alternativa ao CARF), estima-se em 15% do PIB o custo do contencioso administrativo, valor elevado, quando comparado a qualquer outro país. Se adicionar os processos judiciais, o valor alcança 75% do PIB. A Reforma Tributária do consumo, pois, tem como consequência, espera-se, ajudar o país a sair desta estatística absurda para patamares normais, entre 0,2% do PIB (América Latina) e 0,3% (OCDE).

No tocante ao contencioso administrativo tributário, tem-se o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), instituição federal ligada à Receita Federal do Brasil. Além dessa autarquia judicante, existem mais 27 “CARFs” estaduais (cada um com seu próprio nome, como TIT em SP ou CAT em GO), com lógicas similares de funcionamento e de governança daquela instituição federal. Os juízes destes Conselhos são, em geral, auditores fiscais e contribuintes. As PGEs (Procuradorias Gerais Estaduais) por vezes participam.

O elevado nível de processos se dá, dentre outros pontos, pelo emaranhado de regras tributárias existentes (mais de 5600 leis no Brasil só no tocante aos impostos sobre consumo, cada uma com mais de 1300 páginas) e pelas inúmeras interpretações não só em uma mesma jurisdição, mas entre os estados. Haja fôlego, paciência e dinheiro para o empresário lidar com esta confusão, especialmente se ele tiver negócios em mais de um local! A solução desta problemática, no entanto, não virá do voto de qualidade ser em prol do contribuinte no CARF (com implicações para os 27 CARFs estaduais), mas da aprovação da PEC 45 (em conjunto com a desburocratização de obrigações assessorias), que, por estabelecer uma única lei tributária nacional sobre o consumo, simplificará sobremaneira a vida do contribuinte e dos Fiscos.

Dentro das balizas estabelecidas pelo Código Tributário Nacional (CTN, artigos 107 a 112), os auditores fiscais têm liberdade para interpretar a Lei e lançar um auto de infração de forma autônoma (ainda que não irrestrita, porquanto a atividade administrativa de cobrança do tributo é vinculada, segundo o artigo 142 do CTN). A aplicação da legislação tributária por parte de um auditor, entretanto, nem sempre decorre da anuência do contribuinte ou de concordância por parte de outros auditores, na observância do CTN. Para os contribuintes que tenham sido autuados e se sintam prejudicados por um entendimento, por vezes equivocado, há os CARFs estaduais, para além do da União. Estes colegiados fazem o controle da legalidade do lançamento do crédito tributário e sanam dúvidas sobre a interpretação e a aplicação da legislação tributária. É como se fosse uma segunda instância, revisional, no âmbito administrativo, em tese, mais célere e menos onerosa do que o judiciário. Ainda assim, se o contribuinte julgar conveniente recorrer diretamente ao Judiciário, ele é livre para fazê-lo. É uma atuação distinta da de outros Conselhos Administrativos, como o CADE, regido por uma única lei nacional.

Com a intenção, assim, de possibilitar o contraditório ao contribuinte, antes dele judicializar a autuação do Fisco, optou-se por inseri-lo como membro destes Conselhos, para além dos auditores. Há, contudo, uma regra que diz que se o Fisco perder na decisão colegiada, este não pode recorrer ao judiciário, ao contrário do contribuinte, que pode recorrê-lo a qualquer momento. É, principalmente, por esta razão que o voto de minerva deveria ser do Fisco e não do contribuinte.

O CARF é, assim, um consórcio de auditores e de contribuintes, para, dentre outros pontos, dirimir possíveis falhas na autuação de um auditor, para que possa haver o contraditório ainda em âmbito administrativo e para que o caso esteja devidamente instruído, no caso deste seguir para o judiciário. O CARF tem que ser interpretado, portanto, como uma instância revisora das ações da administração tributária, como se fosse uma extensão desta, antes do processo seguir para a Justiça pelo contribuinte.

Em 2022 o governo mudou a titularidade do voto de qualidade do CARF, que era do Fisco, passando para o contribuinte. Se também tivesse dado a possibilidade de o Fisco recorrer ao judiciário, em caso de perda, a situação ficaria equilibrada. Não podendo, porém, com as regras vigentes do CTN, tal voto de minerva deveria seguir sendo do Fisco.

Outra opção seria acabar com o CARF. Daí o contribuinte se dirigiria diretamente ao judiciário, o que não parece ser a melhor alternativa para ele. Se a escolha, por sua vez, for migrar para um modelo como o do CADE, uma autarquia nacional única, será no mínimo desafiador encontrar membros que entendam das especificidades de todos os tributos de todos os entes. Talvez, depois da implementação do IVA, este possa ser um caminho, mas, atualmente, será uma via complexa e provavelmente ineficiente. Além disso, as regras vigentes precisariam ser alteradas, para que o Fisco pudesse passar a recorrer ao judiciário, no caso de perda no Conselho.

Independentemente da preferência acerca do modelo, sem embargo, o objetivo de dito Conselho jamais pode ser de cunho arrecadatório e a independência dos juízes deve ser ponto fundamental. Neste aspecto é importante considerar que um auditor tem estabilidade empregatícia, o que lhe permite ter maior liberdade em votar em desfavor do Fisco. Já o representante de um contribuinte, não. Se votar contra, pode sofrer retaliações depois. A pressão é outra.

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A discussão sobre a governança do CARF é sensível. Conquanto haja boas alegações para que o voto de qualidade, no caso de empate, seja do contribuinte ou para que haja outras configurações de governança desta autarquia, argumento que este voto, hoje, deva ser do Fisco. Jamais pela razão do governo ter que fechar suas contas pela via de maior arrecadação, prejudicando o contribuinte; mas pela razão de ser desse órgão e pelas atuais normas brasileiras. A ver.

Um dos aspectos do custo-Brasil se refere ao tamanho das disputas entre setor privado e o governo. Como lembra Marcos Lisboa em texto publicado no dia 25/09 no Brazil Jounal (Uma alternativa ao CARF), estima-se em 15% do PIB o custo do contencioso administrativo, valor elevado, quando comparado a qualquer outro país. Se adicionar os processos judiciais, o valor alcança 75% do PIB. A Reforma Tributária do consumo, pois, tem como consequência, espera-se, ajudar o país a sair desta estatística absurda para patamares normais, entre 0,2% do PIB (América Latina) e 0,3% (OCDE).

No tocante ao contencioso administrativo tributário, tem-se o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), instituição federal ligada à Receita Federal do Brasil. Além dessa autarquia judicante, existem mais 27 “CARFs” estaduais (cada um com seu próprio nome, como TIT em SP ou CAT em GO), com lógicas similares de funcionamento e de governança daquela instituição federal. Os juízes destes Conselhos são, em geral, auditores fiscais e contribuintes. As PGEs (Procuradorias Gerais Estaduais) por vezes participam.

O elevado nível de processos se dá, dentre outros pontos, pelo emaranhado de regras tributárias existentes (mais de 5600 leis no Brasil só no tocante aos impostos sobre consumo, cada uma com mais de 1300 páginas) e pelas inúmeras interpretações não só em uma mesma jurisdição, mas entre os estados. Haja fôlego, paciência e dinheiro para o empresário lidar com esta confusão, especialmente se ele tiver negócios em mais de um local! A solução desta problemática, no entanto, não virá do voto de qualidade ser em prol do contribuinte no CARF (com implicações para os 27 CARFs estaduais), mas da aprovação da PEC 45 (em conjunto com a desburocratização de obrigações assessorias), que, por estabelecer uma única lei tributária nacional sobre o consumo, simplificará sobremaneira a vida do contribuinte e dos Fiscos.

Dentro das balizas estabelecidas pelo Código Tributário Nacional (CTN, artigos 107 a 112), os auditores fiscais têm liberdade para interpretar a Lei e lançar um auto de infração de forma autônoma (ainda que não irrestrita, porquanto a atividade administrativa de cobrança do tributo é vinculada, segundo o artigo 142 do CTN). A aplicação da legislação tributária por parte de um auditor, entretanto, nem sempre decorre da anuência do contribuinte ou de concordância por parte de outros auditores, na observância do CTN. Para os contribuintes que tenham sido autuados e se sintam prejudicados por um entendimento, por vezes equivocado, há os CARFs estaduais, para além do da União. Estes colegiados fazem o controle da legalidade do lançamento do crédito tributário e sanam dúvidas sobre a interpretação e a aplicação da legislação tributária. É como se fosse uma segunda instância, revisional, no âmbito administrativo, em tese, mais célere e menos onerosa do que o judiciário. Ainda assim, se o contribuinte julgar conveniente recorrer diretamente ao Judiciário, ele é livre para fazê-lo. É uma atuação distinta da de outros Conselhos Administrativos, como o CADE, regido por uma única lei nacional.

Com a intenção, assim, de possibilitar o contraditório ao contribuinte, antes dele judicializar a autuação do Fisco, optou-se por inseri-lo como membro destes Conselhos, para além dos auditores. Há, contudo, uma regra que diz que se o Fisco perder na decisão colegiada, este não pode recorrer ao judiciário, ao contrário do contribuinte, que pode recorrê-lo a qualquer momento. É, principalmente, por esta razão que o voto de minerva deveria ser do Fisco e não do contribuinte.

O CARF é, assim, um consórcio de auditores e de contribuintes, para, dentre outros pontos, dirimir possíveis falhas na autuação de um auditor, para que possa haver o contraditório ainda em âmbito administrativo e para que o caso esteja devidamente instruído, no caso deste seguir para o judiciário. O CARF tem que ser interpretado, portanto, como uma instância revisora das ações da administração tributária, como se fosse uma extensão desta, antes do processo seguir para a Justiça pelo contribuinte.

Em 2022 o governo mudou a titularidade do voto de qualidade do CARF, que era do Fisco, passando para o contribuinte. Se também tivesse dado a possibilidade de o Fisco recorrer ao judiciário, em caso de perda, a situação ficaria equilibrada. Não podendo, porém, com as regras vigentes do CTN, tal voto de minerva deveria seguir sendo do Fisco.

Outra opção seria acabar com o CARF. Daí o contribuinte se dirigiria diretamente ao judiciário, o que não parece ser a melhor alternativa para ele. Se a escolha, por sua vez, for migrar para um modelo como o do CADE, uma autarquia nacional única, será no mínimo desafiador encontrar membros que entendam das especificidades de todos os tributos de todos os entes. Talvez, depois da implementação do IVA, este possa ser um caminho, mas, atualmente, será uma via complexa e provavelmente ineficiente. Além disso, as regras vigentes precisariam ser alteradas, para que o Fisco pudesse passar a recorrer ao judiciário, no caso de perda no Conselho.

Independentemente da preferência acerca do modelo, sem embargo, o objetivo de dito Conselho jamais pode ser de cunho arrecadatório e a independência dos juízes deve ser ponto fundamental. Neste aspecto é importante considerar que um auditor tem estabilidade empregatícia, o que lhe permite ter maior liberdade em votar em desfavor do Fisco. Já o representante de um contribuinte, não. Se votar contra, pode sofrer retaliações depois. A pressão é outra.

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