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O CADE, a Petrobrás e a revisão dos acordos de 2019

Os consumidores (e não as empresas), com seus direitos difusos, contam com órgãos de Estado para os defenderem, como o CADE, à luz da lei 12.529/11

 (Wilson Melo/Agência Petrobras)
(Wilson Melo/Agência Petrobras)

Por* Cristiane A. J. Schmidt, César Mattos e Lucia Helena Salgado[1]

Desde 2016, a Petrobras respondia a processos no CADE de acusações por condutas anticompetitivas no refino de petróleo, e no transporte e comercialização de gás natural. A empresa era acusada de manipular preços e aumentar os custos dos rivais, dentre outras práticas. Para superar esses supostos abusos, a Petrobras propôs ao CADE dois Termos de Compromisso de Cessação de prática (TCCs), um para cada mercado, em junho/19. Caso as condutas não existissem, nem a Petrobras sugeriria acordos, nem o CADE arquivaria os processos aceitando os acordos. Estranho que tais TCCs tenham sido revistos em maio/24, na direção pró-monopólio, indo contra as experiências exitosas internacionais e à própria razão de existência do CADE, mas ao encontro dos anseios da Petrobras. A quem a mudança de 180º prejudicou?

Nos dois TCCs de 2019 a ideia era reduzir a verticalização da empresa. Na ocasião, o CADE indicava, dentre outras assertivas, que a Petrobras era monopolista no refino e monopsonista na compra do insumo dos principais produtos do refino, o que era maléfico para o consumidor. O CADE, à época, teve o cuidado de seguir as diretrizes das Resoluções do Conselho Nacional de Política Energética.

Em um dos TCCs, a Petrobras venderia 51% da sua capacidade de refino no país[2], uma desverticalização que representaria uma profunda mudança estrutural. No outro, a Petrobras alienaria a sua participação nas transportadoras de gás[3] TBG, NTS e TAG, e venderia suas participações nas distribuidoras estaduais de gás natural. Nessas últimas medidas, a Petrobras alienou 51% da Gaspetro para a Compass, em 2022. O CADE também impôs compromissos comportamentais, reforçando a lei do gás (14.134/21).

A competição traz mais opções, menores preços e melhor qualidade. Em infraestrutura, entretanto, a concorrência não emerge automaticamente, além de exigir cuidados. Primeiro, porque são mercados que requerem investimentos elevados, com longo período de maturação, em que a previsibilidade e a segurança jurídica são essenciais. Segundo, porque são monopólios naturais. Não à toa, cabe à ANP adotar medidas para evitar condutas anticompetitivas.

ANP e CADE são órgãos autônomos, que devem assegurar compromissos críveis e estáveis. Suas decisões, assim, devem deixar à parte as preferências de governos, ter o foco no longo prazo e concretizar políticas de Estado.

Em 22/maio/24, porém, o CADE em menos de um mês voltou atrás nos compromissos estruturais de 2019, aceitando o pedido de revisão pela Petrobras, não tendo objeção da ANP. Essa guinada não era esperada. Primeiro porque se tratava de acordos pró-mercado, frutos de votos fundamentados do CADE na ocasião. Segundo porque os incentivos dos investidores seriam alterados. Mesmo diante da preferência do atual governo por maior intervenção, da volta do discurso a “Petrobras é nossa” e da escolha de uma nova política de preços não atrelada 100% a paridade internacional, a surpresa foi grande, criticada em artigos, como: Cadê o Cade que estava aqui? e A desmoralização do CADE.

De acordo com a doutrina antitruste, compromissos estruturais são remédios mais efetivos para corrigir problemas concorrenciais do que os comportamentais, os quais têm usualmente baixa capacidade de monitoramento e de execução. Por isso são considerados auxiliares aos estruturais, não substitutos. No caso, a revisão dos acordos implicou na preservação do monopólio, da verticalização e da nova política de preços.

Compromissos comportamentais em setores verticalizados obrigam a que o monopolista verticalizado forneça o produto ou adquira o insumo de terceiros de forma não discriminatória. Essa empresa, contudo, pode dificultar a constatação pelo CADE de eventuais barreiras criadas aos concorrentes. É um jogo, com assimetria de informação, em que o CADE sabe menos e quem perde é o consumidor, que deixa de ter mais escolhas e combustível mais barato.

Ainda que a recente decisão pudesse ter sido meritória (achamos que não foi), o momento, a rapidez e a forma foram inoportunas. No novo entendimento, o monopolista verticalizado se livrou dos processos de 2016 e passou a ter somente obrigações comportamentais, que nem mesmo exigem que a política de preços seja guiada pela paridade internacional, especialmente para ela própria. Como agora há refinarias privadas desverticalizadas, foi criado incentivo para a empresa cometer mais um ilícito antitruste: o aumento do custo destas rivais. Se fosse para fazer ajustes aos TCCs de 2019 (já que são acordos), portanto, o CADE deveria ter revisto no sentido de exigir a desverticalização de 100% (e não da venda de 50%) da capacidade doméstica de refino, pois a nova política de preços fere princípios basilares de mercado, que deveriam ser defendidos por qualquer órgão antitruste. Agora, como atrair novos investidores? Aliás, como preservar os atuais? O CADE conseguirá monitorar o novo acordo?

A taxa de investimento média do Brasil nos últimos 20 anos é de 17,5% do PIB, sendo o último dado de 16,5%, enquanto a taxa de países de renda média é de 25%. Toda a sinalização positiva conferida em 2019, com potencial impacto positivo para o setor e sobre a produtividade e o crescimento do país, foi perdida.

Os consumidores (e não as empresas), com seus direitos difusos, contam com órgãos de Estado para os defenderem, como o CADE, à luz da lei 12.529/11. Além disso, órgãos antitruste precisam dar segurança jurídica e previsibilidade aos investidores, serem implacáveis com os monopólios e independentes de governos. A sinalização da revisão, assim, não foi positiva.

Seria oportuno, destarte, que a revisão dos TCCs fosse revista ou que essa recente revisão fosse interpretada como fato novo e os processos de 2019 fossem reabertos. Pouco provável que medidas comportamentais cessem a ameaça de condutas anticompetitivas. Pelo contrário, a tensão deve persistir, constituindo um retrocesso para o país. O Brasil precisa de instituições que garantam que o passado não seja incerto e de um CADE que defenda os consumidores brasileiros.

[1] Doutores em Economia e ex-Conselheiros do CADE.

[2] As refinarias vendidas foram 3: RLAM, REMAN e LUBNOR. Refinarias à venda: Abreu e Lima (RNEST/PE); Landulpho Alves (RLAM/BA); Presidente Getúlio Vargas (REPAR/PR); Alberto Pasqualini (REFAP/RS); Gabriel Passos (REGAP/MG); Isaac Sabbá (REMAN/AM); Lubrif. e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR/CE); e Unidade de Industrialização do Xisto (SIX/PR).

[3] TAG = Transportadora Associada de Gás: em 04/19, venda de 90%. NTS = Nova Transportadora do Sudeste: venda de 90% em 2017 e 10%, em 2020. TBG Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil: A Petrobrás anunciou a venda de 51% em 2022, suspensa pelo atual governo.