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O avesso da pele e a liberdade de expressão sem avesso

O livro “O avesso da pele” foi proibido em escolas estaduais do Paraná, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande do Sul

Livros: oito indicações de leituras sobre gestão e finanças. (Alexander Spatari/Getty Images)
André Marsiglia

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 4 de abril de 2024 às 08h30.

Nas últimas semanas, cinco organizações internacionais do setor livreiro, preocupadas com as frequentes tentativas de grupos conservadores restringirem livros com temática LGBTQIA+ nas escolas dos Estados Unidos, publicaram um manifesto em favor da liberdade de expressão.

Entidades nacionais também se juntaram à iniciativa, aproveitando a controvertida proibição do livro “O avesso da pele” em escolas estaduais do Paraná, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande do Sul, no último mês. O livro do autor Jeferson Tenório conteria descrição de cenas de sexo que incomodaram governantes e parlamentares locais.

Toda proibição termina dando ao objeto que se quer esconder a visibilidade que jamais teria por si só. O censor é sempre um marqueteiro de seu adversário. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por exemplo, acaba de anunciar que a referida obra passará a integrar sua lista de livros obrigatórios para o vestibular de verão do próximo ano.

Mas, voltando ao manifesto, uma coisa me encafifou. Em específico, o seguinte trecho:

a verdadeira liberdade de leitura significa poder escolher entre a mais ampla gama de livros que compartilham a mais ampla gama de ideias. A comunicação irrestrita é essencial para uma sociedade livre e uma cultura criativa, mas traz consigo a responsabilidade de resistir ao discurso de ódio, falsidade deliberada e distorção de fatos ”.

Esquisito defender “ampla gama de ideias”, “comunicação irrestrita”, “sociedade livre”, “cultura criativa” e acrescer em seguida um “mas”, opondo toda a liberdade defendida ao discurso de ódio, à falsidade e à distorção.

Literatura é fantasia, falsidade em estado puro, distorção da realidade por essência. Além disso, livros ficcionais podem conter discurso de ódio na boca dos personagens e serem ótimas obras. Ou não? Se a resposta for negativa, a “comunicação irrestrita” defendida no manifesto é incoerente.

Livros contendo discurso de ódio, distorções e falsidades devem compor uma sociedade livre tanto quanto livros contendo descrições sexuais, ou então o combate pretendido não será à censura, mas aos valores ideológicos dos conservadores. (Nesse caso, a liberdade de expressão defendida no manifesto seria um engodo. )

Piadas de comediantes de stand up, tão criticadas por conter discurso de ódio e ofender grupos minorizados, se enquadrariam na liberdade artística defendida pelo manifesto? Quando críticos da censura ao livro “o avesso da pele”, pertencentes a estes grupos, argumentarem “é só um livro”, aceitarão escutar “é só uma piada”?

A comunicação irrestrita e a sociedade livre, defendidas no manifesto, suportarão não importunar a obra de Monteiro Lobato e seus trechos racistas, hoje lamentáveis, mas normalizados na sociedade em que viveu o autor?

Todos esses questionamentos são importantes, pois se entendermos que a arte é livre, precisará ser para todos. Se entendermos que a arte é uma linguagem de poder que, como mencionado no manifesto, exige do artista responsabilidade, ressignificar o racismo de nossa literatura precisará admitir seu avesso, respeitando que conservadores se oponham à difusão em escolas de obras que ofendam seus valores, como as que possuem descrições sexuais, por exemplo.

Acredito em uma sociedade na qual a censura não exista e a liberdade de expressão seja a mais ampla possível. Prefiro lidar com a arte de que desgosto do que com sua ausência. Não é viável em uma democracia a existência de meia liberdade, de censura do bem ou seletiva. Ou todos são livres ou ninguém será livre de verdade.

A liberdade de expressão não admite avesso. É o que é de qualquer lado que esteja, por se tratar de um valor, de um princípio, não podendo sua defesa flertar com o ponto de vista mais agradável ao apetite ideológico do momento. Os que defendem a liberdade a depender do conteúdo, da temática e da ideologia, apenas exercem, de forma disfarçada, as sombras de seu próprio autoritarismo.

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Entidades nacionais também se juntaram à iniciativa, aproveitando a controvertida proibição do livro “O avesso da pele” em escolas estaduais do Paraná, Goiás, Mato Grosso e Rio Grande do Sul, no último mês. O livro do autor Jeferson Tenório conteria descrição de cenas de sexo que incomodaram governantes e parlamentares locais.

Toda proibição termina dando ao objeto que se quer esconder a visibilidade que jamais teria por si só. O censor é sempre um marqueteiro de seu adversário. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por exemplo, acaba de anunciar que a referida obra passará a integrar sua lista de livros obrigatórios para o vestibular de verão do próximo ano.

Mas, voltando ao manifesto, uma coisa me encafifou. Em específico, o seguinte trecho:

a verdadeira liberdade de leitura significa poder escolher entre a mais ampla gama de livros que compartilham a mais ampla gama de ideias. A comunicação irrestrita é essencial para uma sociedade livre e uma cultura criativa, mas traz consigo a responsabilidade de resistir ao discurso de ódio, falsidade deliberada e distorção de fatos ”.

Esquisito defender “ampla gama de ideias”, “comunicação irrestrita”, “sociedade livre”, “cultura criativa” e acrescer em seguida um “mas”, opondo toda a liberdade defendida ao discurso de ódio, à falsidade e à distorção.

Literatura é fantasia, falsidade em estado puro, distorção da realidade por essência. Além disso, livros ficcionais podem conter discurso de ódio na boca dos personagens e serem ótimas obras. Ou não? Se a resposta for negativa, a “comunicação irrestrita” defendida no manifesto é incoerente.

Livros contendo discurso de ódio, distorções e falsidades devem compor uma sociedade livre tanto quanto livros contendo descrições sexuais, ou então o combate pretendido não será à censura, mas aos valores ideológicos dos conservadores. (Nesse caso, a liberdade de expressão defendida no manifesto seria um engodo. )

Piadas de comediantes de stand up, tão criticadas por conter discurso de ódio e ofender grupos minorizados, se enquadrariam na liberdade artística defendida pelo manifesto? Quando críticos da censura ao livro “o avesso da pele”, pertencentes a estes grupos, argumentarem “é só um livro”, aceitarão escutar “é só uma piada”?

A comunicação irrestrita e a sociedade livre, defendidas no manifesto, suportarão não importunar a obra de Monteiro Lobato e seus trechos racistas, hoje lamentáveis, mas normalizados na sociedade em que viveu o autor?

Todos esses questionamentos são importantes, pois se entendermos que a arte é livre, precisará ser para todos. Se entendermos que a arte é uma linguagem de poder que, como mencionado no manifesto, exige do artista responsabilidade, ressignificar o racismo de nossa literatura precisará admitir seu avesso, respeitando que conservadores se oponham à difusão em escolas de obras que ofendam seus valores, como as que possuem descrições sexuais, por exemplo.

Acredito em uma sociedade na qual a censura não exista e a liberdade de expressão seja a mais ampla possível. Prefiro lidar com a arte de que desgosto do que com sua ausência. Não é viável em uma democracia a existência de meia liberdade, de censura do bem ou seletiva. Ou todos são livres ou ninguém será livre de verdade.

A liberdade de expressão não admite avesso. É o que é de qualquer lado que esteja, por se tratar de um valor, de um princípio, não podendo sua defesa flertar com o ponto de vista mais agradável ao apetite ideológico do momento. Os que defendem a liberdade a depender do conteúdo, da temática e da ideologia, apenas exercem, de forma disfarçada, as sombras de seu próprio autoritarismo.

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