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O aumento de imposto que quase ninguém viu

Existe uma maneira cruel e sutil de aumentar o imposto de renda: não atualizar a tabela progressiva

Tela do aplicativo do IR (Reprodução/Divulgação)
Tela do aplicativo do IR (Reprodução/Divulgação)

Se tem uma coisa que deve pairar à margem de toda e qualquer polarização no país, é o fato de que todos concordamos que devemos buscar a justiça tributária. Quem ganha mais, paga mais. E é este princípio tão básico que fundamenta a cobrança do imposto de renda para a pessoa física. Não obstante todas as exceções existentes, questionáveis ou não, os rendimentos da pessoa física deveriam observar uma tabela progressiva, em que quem ganha mais, paga uma alíquota maior. Parece o melhor dos mundos. Se funcionasse assim. 

Há muitos anos a tabela progressiva do imposto de renda deixou de ser um instrumento para justiça tributária e converteu-se em uma espécie de mecanismo para aumento silencioso da arrecadação. É o combo perfeito: o governo consegue “aumentar” o imposto sem precisar lidar com todo o desgaste que representa negociar isso com a sociedade. Nenhum imposto novo é criado. Nenhuma alíquota é aumentada. Nem sequer a composição da base de cálculo é alterada. Ninguém vê. E todos sabemos que aquilo que os olhos não veem, a urna não sente. 

A relação de ódio e ódio – talvez até justificável - dos brasileiros com a tributação alimenta um desconhecimento que se revela uma armadilha. Ninguém sabe exatamente qual o real impacto do cálculo do imposto, então, ninguém sabe exatamente como cobrar das autoridades uma tributação mais justa. É muito mais comum percebermos uma cobrança social mais enfática em relação ao aumento real do salário-mínimo do que em relação à atualização da tabela do imposto de renda. O resultado é quase irônico: ao passo que o salário sobe, sobe com ele o número de pessoas sujeitas ao pagamento do imposto de renda. É literalmente dar com uma mão e tirar com a outra. 

Se você ainda tem dúvidas sobre como a não-atualização da tabela do imposto de renda afeta diretamente o seu bolso, basta pensar no que R$ 1903,98 valiam em maio de 2015 e o que esses mesmos R$ 1903,98 compravam em abril do ano passado. A partir de maio de 2023, o governo ampliou a chamada faixa de isenção para R$ 2.112,00. Aqueles R$ 1903,98 de 2015, atualizados até abril do ano passado, deveriam ser, pelo menos R$ 2.960,63. Isso sem considerar que a tabela já estava desatualizada em 2015. Para 2024 a mesma faixa foi ampliada para R$ 2.259,20, quando deveria ser de, pelo menos, R$ 3.028,19. Caso fosse considerada a atualização de todo o período, de acordo com a Unafisco, o valor deveria ser de, no mínimo, R$ 4.900,00. A atualização abaixo da correção pela inflação é um aumento brutalmente silencioso e especialmente cruel com aqueles em situação financeira vulnerável.  

Para aqueles que pensam que a correção, ou não, seria insignificante, os dados são o inimigo: se a tabela fosse corrigida considerando o acumulado da inflação até dezembro de 2023, quase 14 milhões de pessoas deixariam de pagar o imposto de renda. Vale lembrar que estas pessoas estão nas primeiras faixas da tabela progressiva, ou seja, são pessoas que realmente precisam de um alívio mensal no orçamento doméstico.  

É inegável que o mecanismo criado pelo Governo no ano passado, em que um desconto simplificado é aplicado antecipadamente, já no cálculo mensal do imposto, é um avanço. Funciona basicamente assim: o contribuinte passa a ter a opção de utilizar um desconto, limitado, antes do efetivo cálculo do imposto de renda. Isso faz com que aquela pessoa que receba até dois salários-mínimos, não pague efetivamente o imposto todo mês. Mas vamos nos ater àquilo que ele realmente é: um sistema que permite o não recolhimento de algo que jamais deveria ter sido recolhido. Caso não existisse a nova sistemática, os contribuintes nesta faixa continuariam a receber sua restituição – no ano seguinte, é fato. 

A promessa de campanha do Presidente de elevar a faixa de isenção do IR ao patamar de R$5.000,00 segue perseguindo a equipe econômica como uma assombração – o Ministro da Fazenda chegou a mencionar a cifra de R$ 100 bilhões para custear a medida. Fato é que a não-atualização da tabela se transformou numa espécie de tábua de salvação para todos os governos desde a estabilização da moeda. Uma maneira rápida, fácil e eleitoralmente indolor para manter o equilíbrio das contas públicas às custas de quem faz mágica econômica para manter a si mesmo. E a cada passo que damos em direção ao futuro, negligenciando as contas que precisamos acertar com o passado, mais nos distanciamos da justiça tributária que precisamos no presente.