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Museu da Democracia: concórdia ou captura?

A construção do Museu da Democracia em memória dos ataques de 8 de janeiro suscita questões sobre a representação da história e a memória coletiva no Brasil

 (Divulgação: TON MOLINA / Colaborador/Getty Images)
(Divulgação: TON MOLINA / Colaborador/Getty Images)

O recente anúncio do governo Lula sobre a construção de um Museu da Democracia em Brasília, destinado a preservar a memória dos ataques ao Congresso em 8 de janeiro, suscita questões essenciais sobre a representação da história e a memória coletiva no Brasil. Proposto como 'um espaço de memória e união dos setores democráticos', o museu, orçado em R$ 40 milhões, é apresentado pelo governo como 'uma instituição cívica e plural', 'alheia a linhas ou partidos políticos'.

Inicialmente, o que chama atenção não é apenas o nome e a localização escolhidos para o museu, mas principalmente a decisão de dedicá-lo aos eventos de 8 de janeiro. Em um contexto onde o governo frequentemente cria comitês e grupos de trabalho para informar decisões cotidianas, surpreende que a proposta do museu tenha sido apresentada de maneira unilateral, indicando uma tentativa de estabelecer uma narrativa oficial e seletiva da história. Nota-se, por exemplo, a ausência de museus voltados para outros períodos significativos para a consolidação democrática, como a ditadura Vargas ou a ditadura militar de 64. Se o objetivo é promover consensos, é preocupante que o governo escolha preservar a memória do 8 de janeiro.

Um possível "Museu da Democracia" pode se tornar alvo de críticas similares às feitas ao kirchnerismo na administração de espaços de reflexão democrática na Argentina. Um exemplo é o Espaço de Memória e Direitos Humanos (ex-ESMA), em Buenos Aires, estabelecido para lembrar as vítimas da última ditadura militar (1976-1983). Contrariando sua missão e propósito histórico, o museu foi usado para difundir a agenda política do governo Alberto Fernández, com exposições críticas à política econômica de Maurício Macri, que enfrentou protestos organizados por grupos peronistas, onde se ouvia "Macri, basura, vos sos la dictadura".

A experiência internacional serve como um alerta sobre os riscos de manipulação de espaços de memória para fins políticos. Para compreender o perigo que isso representa no Brasil, não é necessário olhar além de nossas fronteiras. Devemos considerar nossa recorrente dificuldade em construir instituições imunes ao servilismo aos governos vigentes, ancoradas em modelos de governança que evitem a captura por interesses partidários. Exemplos claros são a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a Fundação Palmares, que têm sido utilizadas como instrumento de replicação da agenda ideológica do poder executivo.

A questão central é se devemos aceitar o argumento da accountability democrática como justificativa para que essas instituições promovam o governo de turno, ou se é necessário criar mecanismos que as protejam da influência de maiorias efêmeras.

Um cínico poderia argumentar que a EBC, antes da Medida Provisória 744 publicada pela administração Temer, possuía um Conselho Curador teoricamente projetado para assegurar sua autonomia em relação ao governo. Esse Conselho era composto por 22 membros, com uma distribuição diversa entre representantes da sociedade civil e do governo. Contudo, a realidade é que a lei 11.652/2008, que criou a EBC, permitia ao Presidente da República indicar os membros do conselho com critérios genéricos, o que na prática tornava-se mais um instrumento de captura corporativa do que uma salvaguarda contra a politização.

Um eventual museu dedicado à promoção da democracia deveria buscar não repetir erros do passado. A maneira como a proposta foi anunciada causa preocupação. Uma entidade desta natureza deveria ser estruturada a partir de um debate aberto e diversificado desde sua concepção. Isso envolve acolher várias perspectivas e vozes, garantindo que a complexidade do processo de consolidação da democracia brasileira seja adequadamente representada. Não se trata de uma tarefa trivial.

Aprendamos com as boas práticas. Museus de memória que se mantiveram alheios a disputas sobre a politização de suas narrativas, como o Museu da Memória e Direitos Humanos, em Santiago do Chile, e o Museu do Apartheid de Joanesburgo, são administrados por instituições públicas não-estatais (como o MASP) e financiados por organizações da sociedade civil – como forma de garantir sua independência editorial.

Outra alternativa é constituir modelos de governança que assegurem que os governos de turno não sejam capazes de definir, por maioria conjuntural, o controle da orientação ideológica dessas instituições. É o caso da BBC britânica, cujo presidente do conselho de gestão é indicado pelo governo, mas somente após um processo seletivo aberto e competitivo, supervisionado por um conselho autônomo (o Commissioner for Public Appointments). Ou o caso do modelo alemão, cujo diretor-geral de uma das maiores empresas de comunicação pública, a ZDF, é escolhido por um conselho de 12 membros: 4 deles decididos de maneira unânime por todos os governadores de estado, e os 8 restantes por um conselho de 60 membros, dos quais apenas 2 são escolhidos pelo governo federal e a grande maioria dos demais por governos estaduais – um modelo que força a construção de amplos consensos.

Para que o 'Museu da Democracia' seja uma entidade que genuinamente celebre a cultura democrática, e não a agenda política do governo de plantão, a sua criação e gestão devem ser enraizadas em uma governança autônoma e intelectualmente independente. A proposta atual, contudo, suscita dúvidas, sobretudo se elementos fundamentais como sua razão de ser (a memória  do 8 de janeiro) e o próprio  nome sejam escolhidos sem a participação de vozes críticas e independentes. A falta de uma gama diversa de perspectivas compromete a neutralidade necessária para que o museu não se torne uma marionete dos discursos do governo.

Diante disso, o ceticismo quanto ao projeto proposto por Lula é justificável. A abordagem adotada suscita dúvidas sobre sua capacidade de representar adequadamente a pluralidade ideológica do sistema político. Uma alternativa seria assegurar, desde já, que uma instituição dessa natureza seja debatida e instituída pelo Congresso, e garantir que a formulação da ideia e sua implementação estejam associadas a uma estrutura de governança aberta e plural, resistente ao domínio de maiorias conjunturais e comprometida com a representação dos interesses de diferentes grupos políticos, inclusive (e sobretudo) da oposição.

Tal abordagem é crucial para que, caso o Brasil institua uma iniciativa desse tipo, ela contribua efetivamente para o fortalecimento da democracia, promovendo diálogo e concórdia, elementos essenciais e atualmente escassos no debate público brasileiro.