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Mises fora da bolha

Mises apresenta a importância do capital estrangeiro para o desenvolvimento de uma nação

Na Argentina, público protesta contra decreto de emergência de Javier Milei em dezembro de 2023 (Getty Images)
Instituto Millenium

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Publicado em 24 de julho de 2024 às 14h03.

Por Thales Batiston Marques

O ano é 1959, e Juan Domingo Perón, controversa figura mais importante do século XX na Argentina, estava exilado na Europa e o país passava por um período conturbado. Nesse contexto, Ludwig von Mises foi até Buenos Aires para fazer uma série de palestras na Facultad de Ciencias Económicas da Universidad de Buenos Aires para alunos dispostos a conhecer alternativas às desastrosas políticas predominantes nas últimas décadas. Em 1979, seis anos após a sua morte, Margit von Mises, sua esposa, compilou as transcrições dessas palestras em um livro intitulado As Seis Lições. Dentre as lições apresentadas estão capitalismo, socialismo, intervencionismo, inflação, investimento estrangeiro e, por fim, políticas e ideias. Mesmo com toda a clareza de seus ensinamentos, Mises continua como um autor cujo trabalho é consumido apenas por liberais convictos. Se a sua obra "furar a bolha", não há dúvidas de que mais pessoas se desvencilharão do paternalismo estatal.

É difícil conhecer alguém que não tenha sido exposto ao conceito da luta de classes de Marx. Essa tese da existência de um grupo insubstituível capaz de ter a sociedade na palma de suas mãos através da exploração do trabalhador é uma explicação sedutora, porém irreal e simplista. De modo geral, existe uma concepção equivocada de que o empresário é o agente dominante da sociedade. Pelo contrário, o empresário é apenas uma peça do tabuleiro do livre mercado que está à mercê dos consumidores e que pode ser facilmente substituído por outros empresários que ofereçam um produto mais barato, de melhor qualidade e de um melhor atendimento. Em uma economia cada vez mais padronizada e de fácil comparação, é difícil de acreditar que qualquer empresário sem a detenção de um monopólio tenha algum poder de pressão sobre seus consumidores.

Parte da visão de Mises sobre o intervencionismo talvez gere algum desconforto aos liberais mais próximos do Anarcocapitalismo. O autor discorda da frase "O melhor governo é o que menos governa", pontuando que esse deve cumprir com excelência as funções que lhe são atribuídas. Ele defende que o papel do Estado é proteger as pessoas dentro do país contra as investidas violentas e fraudulentas de bandidos, bem como defender o país contra inimigos externos.

Um dos temas mais assombrosos é o controle de preços. Assombroso porque, a cada crise ou tragédia, este tema volta a ser posto em pauta por políticos e entusiastas da heterodoxia. É insustentável congelar preços de um setor sem que se gere uma crise de desabastecimento: os efeitos são contrários aos almejados. Além disso, a conectividade das cadeias de suprimentos gera uma espiral em que a intervenção em cada produto implica em uma necessidade de intervenção em seus predecessores que, ao fim deste looping, perpetua-se um controle de preços em toda a economia, chegando em um desabastecimento sistêmico. Já nos aventuramos nos anos 80 a congelar os preços e os resultados foram exatamente os previstos por Mises. Sem aprender com os erros passados, o governo brasileiro, motivado pelas chuvas no Rio Grande do Sul, divulgou um edital para a compra de arroz a um preço pré-estabelecido abaixo do preço de mercado para depois vendê-lo a um preço menor à população.

A origem da ideia já carece de lógica econômica, afinal, se o governo está disposto a pagar pelo arroz por um valor abaixo do mercado, os interessados em participar do processo, para auferirem lucro, deverão comprar o arroz por um preço ainda menor. Invariavelmente, apenas grupos inexperientes ou com intenções sombrias participam de um processo como esse. Caso o governo consiga viabilizar o leilão, os benefícios do desconto durarão apenas enquanto perdurarem os estoques. O arroz é uma commodity e isso implica que sua estrutura de mercado é significativamente competitiva, não havendo espaço para negociações no seu preço sem que implique em prejuízo ao produtor, dessa forma, o produtor não venderá arroz abaixo do preço de mercado, apenas deixará de produzi-lo pois não será mais atraente. O resultado desse controle de preços indireto também será o desabastecimento.

Um leitor ainda não convencido da importância de uma economia de mercado para a liberdade talvez pense que existe uma terceira via, o famoso, "nem lá, nem cá". Existe um problema fundamental nessa abordagem. Permitir que intervenções governamentais sejam realizadas pontualmente abre uma prerrogativa para que essas deixem de ser pontuais e se tornem frequentes sob qualquer justificativa que for conveniente.

A inflação é uma forma discreta de arrecadação do governo, mas não a única. O aumento de impostos não é a via predileta para tal, uma vez que é uma escolha impopular e o governo é composto de políticos que buscam sua reeleição. Para tal, a melhor forma para o Estado arrecadar recursos é através da  impressão de papel-moeda. É claro que ninguém, principalmente no Brasil, deseja inflação, portanto essa emissão é travestida sob alguma justificativa vista como nobre aos olhos dos cidadãos. O fato é que existem pessoas e grupos que são beneficiados pela inflação. A emissão de nova moeda é como um esquema de pirâmide: ganha quem chega primeiro e os últimos da fila são prejudicados.

Lord Keynes classifica o ouro como "relíquia bárbara", buscando uma desindexação da oferta monetária com o volume de reservas de ouro de que uma nação dispõe. Para Mises, o padrão-ouro é um sistema capaz de frear a emissão livre de moeda de um governo devido à sua característica de ser independente das políticas governamentais, removendo ou diminuindo o poder deste para gerar inflação. Keynes estava correto na época errada. O ouro é sim uma "relíquia bárbara", mas obteve esse título apenas após o advento do bitcoin.O bitcoin nada mais é do que um código com especificações estritamente definidas, permitindo que saibamos as regras  do jogo sem ter surpresas ao longo do caminho. Assim como o ouro, também é escasso pois está definido em seu código-fonte o limite de 21 milhões de bitcoins. A grande vantagem entre o bitcoin e o ouro se dá pelo fato do primeiro ser digital, isto é, as trocas acontecem em uma rede onde todas as transações são anônimas, porém rastreáveis.

Constantemente vemos, tanto pelo braço conservador quanto pela esquerda, a argumentação de que estamos vendendo nosso país ao permitir que estrangeiros invistam no Brasil. O primeiro despreza o capital chinês; já o segundo, o capital americano, carinhosamente chamando-o de imperialista. Mises, mais uma vez de maneira lúcida, apresenta a importância do capital estrangeiro para o desenvolvimento de uma nação. Países com maior montante de capital investido per capita são países com melhor qualidade de vida, independentemente da origem do dinheiro. A hostilidade ao investimento estrangeiro somente traz retrocesso. A Heritage Foundation publica anualmente o índice de liberdade econômica dos países e o resultado do Brasil é preocupante: dentre os membros do G20, o país ocupa a 16ª posição, ficando à frente apenas de Índia, Rússia, Argentina e China; no ranking global ocupa a 124ª posição, perdendo para países como Bangladesh e Angola.

Essas disparidades ficam mais claras quando vemos nos noticiários tentativas constantes do governo em buscar novas formas de arrecadação através de medidas protecionistas. O caso mais notório é o "Imposto das Blusinhas", que foi aprovado no dia 11 de junho pelo congresso nacional. Anteriormente, o governo federal criou um programa chamado Remessa Conforme, que garantia isenção de imposto sobre importação para compras de até US$50. Empresas como a Shein foram beneficiadas diretamente por esse programa, caindo nas graças dos consumidores brasileiros e abrindo um escritórios no país. Com a febre "das blusinhas", o governo passou a rever os benefícios concedidos, talvez por pressão dos competidores brasileiros, talvez por sua sede natural de arrecadação, o fato é que as blusinhas ficarão cerca de 20% mais caras para o consumidor. Sim, para o consumidor. Diferentemente do que a Primeira Dama explicou em um Twitter de uma página de fofoca, quando uma empresa é tributada, o custo do imposto é repassado ao consumidor, portanto, o indivíduo sempre será o prejudicado final.

A vida política é um emaranhado de grupos de pressão que buscam isoladamente defender os seus interesses, sejam eles congelamento de preços, aumento de salários, tarifas protecionistas ou qualquer outra forma que distorça a atuação de um livre mercado em detrimento de seu benefício. O governo longe está de defender os interesses de cidadãos: pelo contrário, é uma instituição cuja estrutura sistematicamente defenderá interesses de minorias com relacionamentos obscuros nas entranhas deste leviatã disfarçado de salvador dos fracos e indefesos.

Ao fim de suas palestras, Mises se mostra um otimista com o futuro da liberdade. Após essa aula espetacular aos argentinos, me pergunto: Por que a Argentina não ouviu Mises? Sua famosa frase, "Somente as boas ideias podem iluminar a escuridão" é uma verdade, mas talvez a escuridão seja maior do que Mises imaginava e precisemos de mais vetores de luz na sociedade.

* Thales Batiston Marques é associado do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL-SP).

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Por Thales Batiston Marques

O ano é 1959, e Juan Domingo Perón, controversa figura mais importante do século XX na Argentina, estava exilado na Europa e o país passava por um período conturbado. Nesse contexto, Ludwig von Mises foi até Buenos Aires para fazer uma série de palestras na Facultad de Ciencias Económicas da Universidad de Buenos Aires para alunos dispostos a conhecer alternativas às desastrosas políticas predominantes nas últimas décadas. Em 1979, seis anos após a sua morte, Margit von Mises, sua esposa, compilou as transcrições dessas palestras em um livro intitulado As Seis Lições. Dentre as lições apresentadas estão capitalismo, socialismo, intervencionismo, inflação, investimento estrangeiro e, por fim, políticas e ideias. Mesmo com toda a clareza de seus ensinamentos, Mises continua como um autor cujo trabalho é consumido apenas por liberais convictos. Se a sua obra "furar a bolha", não há dúvidas de que mais pessoas se desvencilharão do paternalismo estatal.

É difícil conhecer alguém que não tenha sido exposto ao conceito da luta de classes de Marx. Essa tese da existência de um grupo insubstituível capaz de ter a sociedade na palma de suas mãos através da exploração do trabalhador é uma explicação sedutora, porém irreal e simplista. De modo geral, existe uma concepção equivocada de que o empresário é o agente dominante da sociedade. Pelo contrário, o empresário é apenas uma peça do tabuleiro do livre mercado que está à mercê dos consumidores e que pode ser facilmente substituído por outros empresários que ofereçam um produto mais barato, de melhor qualidade e de um melhor atendimento. Em uma economia cada vez mais padronizada e de fácil comparação, é difícil de acreditar que qualquer empresário sem a detenção de um monopólio tenha algum poder de pressão sobre seus consumidores.

Parte da visão de Mises sobre o intervencionismo talvez gere algum desconforto aos liberais mais próximos do Anarcocapitalismo. O autor discorda da frase "O melhor governo é o que menos governa", pontuando que esse deve cumprir com excelência as funções que lhe são atribuídas. Ele defende que o papel do Estado é proteger as pessoas dentro do país contra as investidas violentas e fraudulentas de bandidos, bem como defender o país contra inimigos externos.

Um dos temas mais assombrosos é o controle de preços. Assombroso porque, a cada crise ou tragédia, este tema volta a ser posto em pauta por políticos e entusiastas da heterodoxia. É insustentável congelar preços de um setor sem que se gere uma crise de desabastecimento: os efeitos são contrários aos almejados. Além disso, a conectividade das cadeias de suprimentos gera uma espiral em que a intervenção em cada produto implica em uma necessidade de intervenção em seus predecessores que, ao fim deste looping, perpetua-se um controle de preços em toda a economia, chegando em um desabastecimento sistêmico. Já nos aventuramos nos anos 80 a congelar os preços e os resultados foram exatamente os previstos por Mises. Sem aprender com os erros passados, o governo brasileiro, motivado pelas chuvas no Rio Grande do Sul, divulgou um edital para a compra de arroz a um preço pré-estabelecido abaixo do preço de mercado para depois vendê-lo a um preço menor à população.

A origem da ideia já carece de lógica econômica, afinal, se o governo está disposto a pagar pelo arroz por um valor abaixo do mercado, os interessados em participar do processo, para auferirem lucro, deverão comprar o arroz por um preço ainda menor. Invariavelmente, apenas grupos inexperientes ou com intenções sombrias participam de um processo como esse. Caso o governo consiga viabilizar o leilão, os benefícios do desconto durarão apenas enquanto perdurarem os estoques. O arroz é uma commodity e isso implica que sua estrutura de mercado é significativamente competitiva, não havendo espaço para negociações no seu preço sem que implique em prejuízo ao produtor, dessa forma, o produtor não venderá arroz abaixo do preço de mercado, apenas deixará de produzi-lo pois não será mais atraente. O resultado desse controle de preços indireto também será o desabastecimento.

Um leitor ainda não convencido da importância de uma economia de mercado para a liberdade talvez pense que existe uma terceira via, o famoso, "nem lá, nem cá". Existe um problema fundamental nessa abordagem. Permitir que intervenções governamentais sejam realizadas pontualmente abre uma prerrogativa para que essas deixem de ser pontuais e se tornem frequentes sob qualquer justificativa que for conveniente.

A inflação é uma forma discreta de arrecadação do governo, mas não a única. O aumento de impostos não é a via predileta para tal, uma vez que é uma escolha impopular e o governo é composto de políticos que buscam sua reeleição. Para tal, a melhor forma para o Estado arrecadar recursos é através da  impressão de papel-moeda. É claro que ninguém, principalmente no Brasil, deseja inflação, portanto essa emissão é travestida sob alguma justificativa vista como nobre aos olhos dos cidadãos. O fato é que existem pessoas e grupos que são beneficiados pela inflação. A emissão de nova moeda é como um esquema de pirâmide: ganha quem chega primeiro e os últimos da fila são prejudicados.

Lord Keynes classifica o ouro como "relíquia bárbara", buscando uma desindexação da oferta monetária com o volume de reservas de ouro de que uma nação dispõe. Para Mises, o padrão-ouro é um sistema capaz de frear a emissão livre de moeda de um governo devido à sua característica de ser independente das políticas governamentais, removendo ou diminuindo o poder deste para gerar inflação. Keynes estava correto na época errada. O ouro é sim uma "relíquia bárbara", mas obteve esse título apenas após o advento do bitcoin.O bitcoin nada mais é do que um código com especificações estritamente definidas, permitindo que saibamos as regras  do jogo sem ter surpresas ao longo do caminho. Assim como o ouro, também é escasso pois está definido em seu código-fonte o limite de 21 milhões de bitcoins. A grande vantagem entre o bitcoin e o ouro se dá pelo fato do primeiro ser digital, isto é, as trocas acontecem em uma rede onde todas as transações são anônimas, porém rastreáveis.

Constantemente vemos, tanto pelo braço conservador quanto pela esquerda, a argumentação de que estamos vendendo nosso país ao permitir que estrangeiros invistam no Brasil. O primeiro despreza o capital chinês; já o segundo, o capital americano, carinhosamente chamando-o de imperialista. Mises, mais uma vez de maneira lúcida, apresenta a importância do capital estrangeiro para o desenvolvimento de uma nação. Países com maior montante de capital investido per capita são países com melhor qualidade de vida, independentemente da origem do dinheiro. A hostilidade ao investimento estrangeiro somente traz retrocesso. A Heritage Foundation publica anualmente o índice de liberdade econômica dos países e o resultado do Brasil é preocupante: dentre os membros do G20, o país ocupa a 16ª posição, ficando à frente apenas de Índia, Rússia, Argentina e China; no ranking global ocupa a 124ª posição, perdendo para países como Bangladesh e Angola.

Essas disparidades ficam mais claras quando vemos nos noticiários tentativas constantes do governo em buscar novas formas de arrecadação através de medidas protecionistas. O caso mais notório é o "Imposto das Blusinhas", que foi aprovado no dia 11 de junho pelo congresso nacional. Anteriormente, o governo federal criou um programa chamado Remessa Conforme, que garantia isenção de imposto sobre importação para compras de até US$50. Empresas como a Shein foram beneficiadas diretamente por esse programa, caindo nas graças dos consumidores brasileiros e abrindo um escritórios no país. Com a febre "das blusinhas", o governo passou a rever os benefícios concedidos, talvez por pressão dos competidores brasileiros, talvez por sua sede natural de arrecadação, o fato é que as blusinhas ficarão cerca de 20% mais caras para o consumidor. Sim, para o consumidor. Diferentemente do que a Primeira Dama explicou em um Twitter de uma página de fofoca, quando uma empresa é tributada, o custo do imposto é repassado ao consumidor, portanto, o indivíduo sempre será o prejudicado final.

A vida política é um emaranhado de grupos de pressão que buscam isoladamente defender os seus interesses, sejam eles congelamento de preços, aumento de salários, tarifas protecionistas ou qualquer outra forma que distorça a atuação de um livre mercado em detrimento de seu benefício. O governo longe está de defender os interesses de cidadãos: pelo contrário, é uma instituição cuja estrutura sistematicamente defenderá interesses de minorias com relacionamentos obscuros nas entranhas deste leviatã disfarçado de salvador dos fracos e indefesos.

Ao fim de suas palestras, Mises se mostra um otimista com o futuro da liberdade. Após essa aula espetacular aos argentinos, me pergunto: Por que a Argentina não ouviu Mises? Sua famosa frase, "Somente as boas ideias podem iluminar a escuridão" é uma verdade, mas talvez a escuridão seja maior do que Mises imaginava e precisemos de mais vetores de luz na sociedade.

* Thales Batiston Marques é associado do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL-SP).

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