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Minirreforma eleitoral traz retrocessos em relação à transparência, diz Bruno Carazza

Instituto Millenium entrevistou o especialista sobre o texto que foi aprovado na semana passada, pela Câmara dos Deputados

 (Instituto Millenium/Reprodução)
(Instituto Millenium/Reprodução)

Com 367 deputados favoráveis e 86 contrários, a Câmara dos Deputados aprovou, na semana passada, o texto de uma nova  "minirreforma eleitoral". Entre os pontos mais polêmicos, a proposta permite que o fundo eleitoral seja usado em despesas pessoais dos candidatos, tais como compra de embarcações e aeronaves, flexibiliza e dificulta punições eleitorais e permite que candidatos homens também possam usufruir dos recursos destinados às candidaturas de mulheres. O texto segue agora para o Senado, onde não deve demorar para ser votado, uma vez que a proposta precisa ser aprovada até o dia 5 de outubro, para que possa valer já para as próximas eleições. 

Para entender melhor as implicações desta reforma, o Instituto Millenium entrevistou Bruno Carazza, Doutor em Direito, mestre em Economia e professor associado da Fundação Dom Cabral. Confira! 

Instituto Millenium: A Câmara dos Deputados aprovou na última quinta-feira uma minirreforma eleitoral. Quais são as mudanças mais significativas propostas, e como elas podem impactar o sistema político atual? 

Bruno Carazza: Houve muito pouco debate sobre as propostas, e ele foi conduzido não por uma comissão na Câmara, mas por um grupo de trabalho, com pouca transparência. Poucos especialistas foram consultados, houve pouco debate na sociedade e, salvo um ou outro ponto de melhoria, a reforma traz vários retrocessos em relação à transparência e ao bom uso de recursos públicos nas campanhas. 

IM: Uma das mudanças propostas permite que os recursos dos fundos partidário e eleitoral que hoje são exclusivos em campanhas femininas possam ser usados também para despesas comuns com candidatos homens. Outro item flexibiliza a cota de gênero nas federações, permitindo que uma sigla compense a outra nesta obrigação. Você acredita que isso afetará a representatividade de mulheres no sistema eleitoral? 

BC: O propósito da minirreforma, oficialmente, é esclarecer dúvidas, mas na verdade houve um retrocesso nessa questão. Houve uma flexibilização no uso dos recursos, na cota de recursos para candidaturas femininas e de pessoas negras, que agora podem ser compartilhados com dobradinhas com candidatos brancos e homens, o que vai representar uma diminuição dos recursos ou mau uso de recursos para essas candidaturas. Também houve uma flexibilização na cota partidária de candidaturas. No caso das federações, o percentual de 30% deixa de ser computado individualmente por cada partido, mas pela federação como um todo.  

Com essa mudança de regras, há um incentivo para que os partidos grandes, que têm mais estrutura e mais dinheiro, lancem candidatos homens e deixem a cota da federação ser preenchida pelos partidos menores, que são menos estruturados e têm menos recursos. Então também é uma medida contra as candidaturas femininas. Também tem uma mudança de entendimento, na qual se coloca condições cumulativas para configurar um crime ou uma sanção pelas candidaturas laranjas de mulheres. Agora você tem que comprovar que o partido não realizou atos de campanha e a mulher teve uma votação insignificante, o que vai tornar mais difícil a penalização dos partidos que não promoverem as candidaturas femininas. 

IM: O que achou da mudança no cálculo das sobras? 

BC: Nesse caso eu não tenho muitas oposições à medida. É uma medida feita para incentivar a consolidação dos partidos grandes, e isso, a meu ver, faz sentido. É algo que é coerente com outras medidas que foram adotadas nos últimos tempos, como o fim das coligações e a cláusula de desempenho. Então, a mudança do cálculo de sobras, apesar de ser polêmico, apesar de que seria desejável que tivesse mais debate, eu acho que vai no sentido que é louvável, para a consolidação do sistema partidário eleitoral brasileiro nos partidos maiores. 

IM: A minirreforma também elimina a prestação parcial de contas, torna os recursos do fundão eleitoral impenhoráveis e reduz o período de inelegibilidade para candidatos condenados. Existe alguma razoabilidade nessas mudanças? 

BC: Ela fragiliza bastante toda a estrutura de transparência e controle sobre o bom uso de recursos públicos e privados durante as campanhas eleitorais. Eliminou a prestação parcial de contas, dispensou a apresentação de comprovantes, de recibos para uma série de despesas, tirou algumas despesas da obrigatoriedade, permitiu o uso de fundo partidário para a compra de aviões e de embarcações...  É mais uma estratégia dos partidos para terem maior liberdade para usar os recursos, que foram turbinados nos últimos anos.  

Nas eleições passadas nós tivemos R$ 1 bilhão de fundo partidário e praticamente R$ 5 bilhões de fundo eleitoral. É muito recurso público sendo destinado aos partidos, e a cada ciclo de reformas eleitorais, essas regras de transparência e de controle vêm sendo fragilizadas. Não há justificativa, não há razoabilidade para isso. O projeto argumenta que é para simplificar, que é para desburocratizar, mas na verdade isso é para permitir que os partidos e os candidatos tenham maior flexibilidade para gastar, e muitas vezes de forma não idônea, esses recursos públicos que são destinados à promoção das campanhas. 

IM: No contexto brasileiro, temos visto uma atuação bastante proativa da justiça eleitoral, que muitas vezes adota uma postura criativa na interpretação da legislação em vigor. Nesse cenário, como você enxerga a dinâmica entre as constantes mudanças nas regras eleitorais promovidas pelo legislativo e o papel ativo da justiça eleitoral? Seria esta uma causa ou consequência das frequentes modificações legislativas? 

BC: Isso é algo que é inerente ao sistema. Nós temos um sistema eleitoral que é realmente muito complexo, e como a gente tem um legislativo que altera muito essas regras, você não tem estabilidade delas. Praticamente a cada dois anos a gente tem uma minirreforma eleitoral que muda as regras, abre novas possibilidades, fecha outras. Isso acaba demandando um ativismo forte por parte da justiça eleitoral. Então, não vejo algo como abusivo sendo realizado pela justiça eleitoral, ela tenta cobrir lacunas que a frequente mudança de legislação deixa. 

IM: Na sua opinião, que outras mudanças seriam efetivas para, de fato, melhorar nosso sistema eleitoral? 

BC: A gente deveria, na verdade, encaminhar para um sistema mais simples, mais efetivo, que fosse mais claro também para o eleitor. Mas a gente não tem clima político e nem interesse no nosso sistema político para atacar problemas que a gente tem, que são mais crônicos, como a falta de coerência ideológica dos partidos. Temos muitos partidos, que lançam muitos candidatos. Temos um sistema de financiamento eleitoral muito ruim, os partidos agora ficam extremamente dependentes de recursos públicos, estão viciados no fundo eleitoral e no fundo partidário, dado o volume desses recursos.  

Temos uma eleição que é disputada em regiões muito grandes, no âmbito dos estados, então a gente precisaria fazer uma discussão sobre tamanho de distritos eleitorais, sobre lista aberta e lista fechada, sobre sistema proporcional ou não. Mas são discussões muito mais estruturais, e a gente sabe que não há interesse político nem da direita, nem da esquerda, nem de partidos grandes nem pequenos para alterarem isso, então a gente acaba ficando refém dessas minirreformas eleitorais que acabam, de uma forma geral, mais prejudicando do que contribuindo para um bom sistema eleitoral aqui no Brasil.