Área é responsável pela gestão de linhas de metrô e trem em São Paulo, do VLT do Rio de Janeiro e do metrô de Salvador (CCR MOBILIDADE/Divulgação)
Sócio do Escritório Apparecido e Carvalho Pinto Advogados
Publicado em 12 de dezembro de 2025 às 20h13.
O Ciclo Vicioso do Rodoviarismo
Nada é mais importante no desenvolvimento urbano que os meios de transporte para os quais a cidade é planejada. As cidades do século XX foram estruturadas em torno do automóvel individual, com avenidas, viadutos e túneis conectando os bairros; casas isoladas no lote e prédios com garagens amplas. Esse modelo rodoviarista produziu espraiamento urbano e congestionamentos de trânsito, assim como poluição e emissão de gases de efeito estufa.
Criou-se um ciclo vicioso, em que as distâncias para trabalho, consumo e lazer são muito grandes para o pedestre e as densidades muito baixas para viabilizar o transporte coletivo, obrigando as pessoas com poder aquisitivo a adquirirem um automóvel como principal forma de deslocamento. Se por um lado o espraiamento propicia uma oferta de moradias mais espaçosas e baratas, por outro, ele compromete a qualidade de vida dos moradores, que passam muitas horas no trânsito e têm seu orçamento onerado pelo custo da gasolina e pela aquisição e manutenção do veículo.
Em contraposição ao modelo rodoviarista, há um movimento global em favor de cidades compactas, planejadas para as pessoas e não para os automóveis, em que a maior parte das atividades urbanas possa ser realizada a pé ou de bicicleta, e os deslocamentos maiores ocorram por transporte coletivo.
O desafio maior é sair do ciclo vicioso do rodoviarismo. Como convencer as pessoas a abrirem mão do carro, se não há transporte coletivo adequado? Como financiar o transporte coletivo em áreas de baixa densidade, que têm pouca demanda?
O Desenvolvimento Orientado ao Transporte
A principal aposta para a solução do problema é o Desenvolvimento Orientado ao Transporte, conhecido internacionalmente pela sigla TOD – Transit Oriented Development. O TOD consiste na integração entre urbanismo e mobilidade, de tal modo a produzir densidades populacionais maiores nas proximidades dos meios de transporte de massa, como BRTs, VLTs e Metrôs. O que se busca é viabilizar porções da cidade em que os moradores façam uso desses serviços e não do automóvel para se deslocarem. Para tanto, adota-se um potencial construtivo mais alto no entorno das linhas de transporte de massa, e mais baixo nas áreas menos servidas por transporte coletivo.
Muitas cidades brasileiras já adotam esses princípios há muito tempo, antes, inclusive, da popularização internacional do conceito de TOD. Curitiba integrou mobilidade e adensamento ao adotar, desde o plano diretor de 1966, o tripé transporte coletivo–sistema viário–uso do solo, com eixos estruturais onde o BRT opera em corredores exclusivos e o zoneamento prevê adensamento com maior verticalização e uso misto. São Paulo adotou há décadas coeficientes de aproveitamento mais altos na zona de influência do Metrô. Apesar disso, os resultados são positivos, mas insatisfatórios, parcela significativa do entorno das estações ainda ocupada por casas de baixa densidade.
O Problema da Fragmentação Fundiária
O fator crítico, em que o Brasil ficou para trás em comparação com a experiência internacional, é a fragmentação fundiária. As linhas de metrô são implantadas em bairros preexistentes, ocupados por casas em lotes pequenos. Os planos diretores, por sua vez, exigem recuos laterais, frontais e de fundos na ocupação dos lotes por edificações. Isso faz com que uma incorporadora tenha que adquirir muitos imóveis contíguos, para posterior demolição das casas e remembramento dos lotes, como condição para a construção de prédios que atendam às exigências urbanísticas. Essa negociação apresenta um custo de transação muito alto, pois basta um proprietário recusar-se a vender para inviabilizar o empreendimento. A situação é agravada pela existência de muitos imóveis com pendências jurídicas, como inventários não concluídos, contratos de gaveta, empresas em falência ou recuperação judicial, execução fiscal etc., que inviabilizam uma aquisição segura.
Soluções Internacionais
Em muitos países, há instrumentos de política urbana aptos a superar essas situações. O reparcelamento do solo, ou reajuste de terrenos, técnica amplamente empregada em países como Japão e Espanha, permite que lotes antigos sejam substituídos por terrenos novos, adequados ao novo padrão urbanístico, sem que a propriedade seja alterada. Via de regra, os novos imóveis são menores, mas mais valorizados que os originais, devido aos investimentos na requalificação do bairro e à proximidade do transporte de massa. Para financiar as obras de reurbanização, reservam-se alguns terrenos novos para revenda no mercado.
Outra técnica muito adotada é a criação de uma empresa (pública, privada ou de economia mista) incumbida de realizar a reurbanização dessas áreas, com poderes para negociar com os proprietários de imóveis e para desapropriar aqueles que não possam ser adquiridos voluntariamente.
Em alguns países, as próprias companhias ferroviárias adquirem os terrenos e executam a reurbanização, capturando, assim, a valorização imobiliária por elas gerada. Não são mais empresas apenas de transportes, mas de transporte e desenvolvimento urbano. O modelo de maior sucesso é o de Hong Kong, conhecido como R+P (rail + property), em que o metrô constrói e explora economicamente prédios de alta densidade sobre e no entorno das estações. Os imóveis residenciais são vendidos, para financiar as despesas de capital; os comerciais, alugados, para cobrir despesas correntes. As receitas imobiliárias respondem por aproximadamente 66% das receitas da MTR, sociedade de economia mista de capital aberto, viabilizando a expansão das linhas e distribuição de dividendos, sem subsídios orçamentários. No Japão, as companhias ferroviárias também atuam diretamente no desenvolvimento urbano, com receitas imobiliárias que representam de 20 a 60% do total.
Outro elemento fundamental no TOD é o aproveitamento urbanístico do espaço aéreo e do subsolo das infraestruturas ferroviárias. Sobre as estações de passageiros são construídos shopping centers e edifícios de escritórios e residências, que pagam aluguéis para o operador ferroviário.
Um dos projetos mais recentes foi o da Elizabeth Line, do metrô de Londres, que construiu 10 novas estações, remodelou outras 31 e teve 26% do seu custo coberto por receitas imobiliárias diversas. Nos Estados Unidos, a ferrovia privada Brightline liga Miami a Orlando por trem de alta velocidade, com 6 estações, todas com projetos imobiliários integrados. O maior projeto metroviário em execução da Europa é o Grand Paris Express, que terá 200 km de extensão, 68 novas estações e 100 projetos imobiliários, com 8 mil unidades habitacionais.
Uma evolução mais recente é o aproveitamento urbanístico dos pátios ferroviários, sobre os quais são erguidas lajes, que passam a ser usadas como verdadeiras quadras, onde são construídos empreendimentos imobiliários e equipamentos coletivos. O exemplo mais impressionante é o do Hudson Yards, em Nova Iorque, que é o maior empreendimento imobiliário da história dos Estados Unidos. Trata-se de um conjunto de torres residenciais e de escritórios, shopping center, hotel, centro de artes e praça pública, construído sobre uma laje de quatro hectares, erguida sobre um pátio com 30 trilhos ferroviários em atividade.
O TOD abrange, ainda, a requalificação dos espaços públicos de acesso às estações de passageiros, de modo a torná-los atrativos a pedestres e ciclistas. A ideia é garantir que a “última milha”, ou seja, o descolamento entre a estação de metrô e a origem ou destino da viagem, seja o mais seguro e confortável possível, com a construção de praças agradáveis, calçadas amplas e ciclovias. Na Holanda, a bicicleta é tratada como alimentadora oficial do transporte público (modelo “bike-and-ride”): cerca de 40% dos usuários chegam às estações de bicicleta, apoiados por ciclovias contínuas e bicicletários seguros diretamente integrados às estações. Na Dinamarca, a integração se dá pelo alto padrão de ciclovias e pela possibilidade de se levar a bicicleta dentro dos trens urbanos fora dos horários de pico.
Outra política que deve ser integrada ao TOD é a habitacional. Singapura integrou política habitacional e mobilidade ao planejar e construir novos bairros de habitação pública (HDB new towns) sempre acopladas a linhas de metrô e ônibus, com adensamento e mix de usos maiores junto às estações.
Situação Brasileira
O contraste com a situação do Brasil não poderia ser maior. Aqui, as estações dos metrôs não estão associadas a nenhum empreendimento imobiliário, seu entorno não é reurbanizado, as calçadas são muitas vezes estreitas e inacessíveis para pessoas com mobilidade reduzida e não há ciclovias de acesso ou bicicletários. As linhas de superfície geram incômodos para a vizinhança, como ruído, vibração e muros, constituindo-se em obstáculos para a circulação de pedestres e fonte de degradação - verdadeiras cicatrizes urbanas. Os pátios ferroviários ocupam amplas áreas, muitas vezes bem localizadas, sem qualquer aproveitamento urbano.
Como não há captura da valorização imobiliária, a mobilidade urbana tem que receber subsídios para manter as tarifas módicas, exigindo carga tributária alta ou sacrifício de outras políticas sociais. As novas linhas são financiadas com recursos orçamentários ou dívida e sua expansão é lenta e deficitária.
A política habitacional, por sua vez, contribui para ampliar o problema, com a construção de empreendimentos distantes não apenas do transporte de massa, mas da própria área urbana, formando bairros sem equipamentos sociais, serviços públicos, mobilidade, comércio e empregos. Isso foi historicamente incentivado por programas federais, como o Minha Casa, Minha Vida, reforçando o espraiamento urbano.
Uma iniciativa importante foi o projeto CURA, implementado pela Emurb (atual SP Urbanismo) do Município de São Paulo na década de 1970, que reurbanizou o entorno de algumas estações de metrô em São Paulo, com apoio do BNH. As desapropriações realizadas foram objeto de contestação jurídica, o que resultou em acórdão do STF, que considerou constitucional a desapropriação urbanística, com revenda dos imóveis decorrentes da reurbanização.
A Lei das Ferrovias: o caminho para o TOD
A Lei das Ferrovias, de 2021, oferece um modelo institucional moderno, apto a reverter o quadro da fragmentação fundiária e viabilizar a implementação do TOD no país. Seu capítulo sobre “Operações Urbanísticas” estabelece um modelo institucional moderno, apto a viabilizar a implementação do TOD no país, em projetos metroviários ou de transporte regional. A Lei prevê que a implantação de linhas inclua o reparcelamento do entorno, para minimizar impactos negativos, propiciar um aproveitamento eficiente do solo e maximizar os efeitos positivos para a mobilidade urbana. O projeto deverá ser aprovado pelo município e poderá incluir tanto requalificação de espaços públicos, com ampliação de calçadas e ciclovias, quanto a reconfiguração de imóveis privados, com retrofit de edificações ociosas, remembramento de lotes e construção de empreendimentos sobre estações e pátios.
Esse projeto poderá ser executado pelo próprio operador, que deverá constituir uma sociedade de propósito específico (SPE), com poderes para adquirir terrenos, inclusive por desapropriação, realizar empreendimentos imobiliários, explorá-los comercialmente e receber contribuição de melhoria decorrente da valorização dos imóveis próximos gerada por seus investimentos. Os proprietários afetados poderão optar por se tornar sócios da SPE mediante entrega de seus imóveis a título de integralização de capital. Os entes públicos, por sua vez, podem contribuir para a operação cedendo imóveis para a SPE e integralizando seu capital com dinheiro ou potencial construtivo. Do ponto de vista econômico, essas operações são tratadas como investimentos associados, cuja duração pode exceder o prazo da concessão do serviço público, de modo a garantir segurança jurídica aos empreendimentos imobiliários.
A Lei das Ferrovias também autoriza o aproveitamento urbanístico do espaço aéreo sobre as linhas, estações e pátios, inclusive com a constituição de direitos reais que poderão ser negociados junto a incorporadores imobiliários.
Essas inovações já estão sendo adotadas pelas novas linhas de transportes ferroviário regional que estão sendo estruturadas por operadores privados, como o Trem de Alta Velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo e a linha entre Porto Alegre e Gramado.
Condições para a Implementação da Lei
O principal impacto da Lei virá da sua aplicação pelos metrôs e trens suburbanos, adotem o modelo TOD, beneficiando, assim, milhões de pessoas que poderão morar nas proximidades de suas estações. Todas as esferas de governo têm um papel a cumprir para que isso aconteça.
Além de incorporar o TOD aos metrôs sob responsabilidade da CBTU e da Trensurb, empresas públicas federais, a União deve adotá-lo como critério não apenas para os projetos de mobilidade, mas também de habitação. O financiamento de projetos de transporte coletivo deve exigir o aproveitamento do entorno das estações como condicionalidade. A produção de moradias, por sua vez, deve ser feita apenas em áreas próximas aos meios de transporte de massa. O financiamento habitacional poderia ser um componente, inclusive, do financiamento das operações urbanísticas promovidas pelas SPEs criadas pelos operadores ferroviários, permitindo que os beneficiários tivessem acesso imediato ao transporte coletivo e consequentemente a maiores oportunidades de emprego.
Os estados devem estabelecer as linhas de metrô e respectivas áreas de influência nos planos de desenvolvimento urbano integrado (PDUIs), orientar suas empresas metroviárias a implementar a Lei e criar incentivos, por meio das agências reguladoras, para realização de operações urbanísticas pelos concessionários privados. É fundamental que o concessionário possa reter uma parcela significativa do lucro das operações, de modo a despertar seu interesse pelas operações urbanísticas.
Os municípios precisam estabelecer o potencial construtivo sobre os pátios e estações, disciplinar a forma de elaboração e aprovação dos projetos urbanísticos, delegar poderes de reparcelamento do solo para o operador ferroviário, e eventualmente participar do capital da SPE com terrenos e potencial construtivo.
Os metrôs organizadores são a melhor maneira de se romper o ciclo vicioso de espraiamento e dependência do automóvel. O marco regulatório está pronto. É chegada a hora de colocá-lo em prática.