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Mérito e confiança na nomeação de diretores de agências reguladoras

Tensão entre nomeações baseadas no mérito e considerações políticas reflete um conflito universal

Lula: presidente, em sua primeira gestão, também ameaçou a independência das agências (Thierry Monasse/Getty Images)
Lula: presidente, em sua primeira gestão, também ameaçou a independência das agências (Thierry Monasse/Getty Images)

O Tribunal de Contas da União (TCU) encontra-se diante de uma decisão que pode afetar a liderança de 5 das 11 agências reguladoras no Brasil. Esta disputa, concentrada na duração dos mandatos dos diretores-presidentes dessas agências, terá consequências significativas em seus trabalhos e autonomia. A decisão pode impactar a Aneel, Anatel, Anvisa, ANS e Ancine, influenciando potencialmente as atividades de controle e supervisão regulatória. O processo, iniciado sob Jair Bolsonaro, agora, sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pode ter consequências imediatas. 

A questão central é o mandato do presidente da Anatel, Carlos Baigorri, indicado por Bolsonaro. As objeções da Secretaria de Fiscalização do TCU trouxeram o caso à atenção pública. A decisão do TCU pode resultar em uma abreviação dos mandatos vigentes, algo que se crê favorecer o presidente Lula, abrindo espaço para negociações com o Centrão. É possível que o TCU module sua decisão, e que seus efeitos alcancem apenas futuros presidentes de agências reguladoras - uma clareza que virá com a publicação da decisão. 

Esta situação ilustra uma tensão no recrutamento e seleção de dirigentes de agências reguladoras no Brasil. Embora o marco jurídico relacionado à indicação e às competências desses dirigentes tenha sido aprimorado nos últimos anos, a decisão do TCU pode levantar suspeitas devido ao seu timing. O Projeto de Lei (PL 6621/2016), aprovado pelo Congresso em 2019, teria sido uma excelente contribuição ao aprimoramento dos mecanismos de nomeação. Se estivesse em vigor, poderia afastar eventuais temores quanto aos efeitos da decisão a ser tomada pelo TCU nas próximas semanas. A medida foi, no entanto, vetada por Bolsonaro, cuja razão alegada para o veto foi a percepção de que limitaria sua discricionariedade na escolha dos dirigentes. 

A busca dos presidentes por maior controle sobre a nomeação dos diretores de agências reguladoras não é nova. O presidente Lula, em sua primeira gestão, também ameaçou a independência das agências em episódios como a troca da presidência da Anatel em 2004 mediante decreto - uma medida criativa, mas potencialmente ilegal.  

Se promulgado em seu desenho original, o PL 6621/2016 poderia ter instituído um mecanismo transparente e meritocrático para a realização dos processos de recrutamento e seleção, aperfeiçoando o uso da discricionariedade do Executivo, ao invés de limitá-la. Se estivesse em vigor hoje, haveria menos desconfiança com relação ao impacto da decisão do TCU na influência que o governo exerce sobre o trabalho das agências. O veto de Jair Bolsonaro representou uma oportunidade perdida para tornar os procedimentos de nomeação mais profissionais, gerando confiança em torno do funcionamento de todo o sistema regulatório. Sem aperfeiçoar os mecanismos de seleção de diretores, o sistema atual torna-se muito vulnerável à influência política do governo de plantão, prejudicando a autonomia das agências. 

A decisão do ex-presidente pode ter sido decepcionante, mas dificilmente surpreendente. A literatura na área de profissionalização do serviço público frequentemente revela que as autoridades tendem a implementar práticas de seleção meritocrática apenas quando sentem ameaçada sua posição eleitoral. Isto ocorre porque a instituição de critérios baseados em competência pode ser vista como um método de prevenir que adversários políticos futuros explorem órgãos públicos como recursos político-eleitorais. Em outras palavras, ao vetar a lei que refinaria a governança das agências, Jair Bolsonaro possivelmente viu isso como uma limitação às suas próprias decisões futuras, não às de um rival. Essa percepção de invulnerabilidade pode ter pavimentado o caminho para a situação atual. 

A decisão do TCU, portanto, não é um problema em si. O cerne da questão reside na ausência de um mecanismo que regule a influência do presidente na definição dos diretores. Todavia, ao ampliar as nomeações a serem feitas por Lula em um momento no qual o governo reestrutura seu desenho ministerial para ampliar sua base de apoio no Congresso, a decisão do TCU pode ser interpretada como uma medida em favor do governo.  

A falta de um sistema transparente de nomeação dos dirigentes da alta administração pública no Brasil é um sintoma da dificuldade de gerar consensos em torno de uma governança eficaz. Estudos indicam que reformas desse tipo requerem uma competição eleitoral saudável e um compromisso multipartidário com a produção de bens públicos no longo prazo, em detrimento dos benefícios pessoais que as nomeações de aliados políticos podem gerar no curto prazo. Vale lembrar, no entanto, que nem tudo é lamento: A falta de colaboração entre os partidos políticos aparenta ser uma barreira significativa para a melhoria da governança, mas não insuperável - basta lembrar que os mecanismos de aperfeiçoamento da escolha dos dirigentes das agências reguladoras foi aprovada pela maioria dos congressistas. 

A tensão entre nomeações baseadas no mérito e considerações políticas no Brasil reflete um conflito universal entre clientelismo e a profissionalização do serviço público. A complexidade dessa dinâmica exige uma abordagem mais cuidadosa para garantir a confiança no trabalho das agências reguladoras. A situação atual sublinha a necessidade premente de fortalecer os mecanismos de nomeação com transparência e mérito, garantindo que as agências reguladoras operem com autonomia. Essa mudança requer uma vontade política coletiva e um compromisso com a qualidade regulatória que ultrapassem as preocupações com o rendimento eleitoral de curto prazo.