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João Mauad: A desonestidade intelectual de Paul Krugman

Mauad: "Os liberais vislumbram uma sociedade na qual muitas das atividades exercidas pelos governos poderiam ser transferidas para empresas"

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Instituto Millenium

Publicado em 16 de janeiro de 2019 às, 11h36.

*Por João Luiz Mauad

Com a paralisação do governo federal americano entrando agora em sua quarta semana, os analistas políticos e econômicos estão atrás de bons argumentos para livrar a culpa de seus partidos de estimação pela situação. No vale-tudo da ginástica mental sobram sofismas e falta um mínimo de compostura intelectual.

O exemplo mais flagrante disso é a recente coluna de Paul Krugman no New York Times: “O Grande Experimento Libertário de Trump”. Desde que abraçou o partidarismo pelos Democratas, o ganhador do Prêmio Nobel não esconde seu desprezo em relação às ideias liberais, mas esse artigo em particular é de dar azia em copo de bicarbonato, tal a quantidade de falácias e sofismas. Leiam o que ele escreveu:

"Se o desligamento (shutdown) se arrastar por meses - o que parece bem possível -, teremos a chance de ver como a América se parece sem uma série de programas públicos que a direita há muito insiste que não precisamos. Esqueça o muro. Pense no que está acontecendo como um grande e belo experimento libertário.

Sério, é impressionante a quantidade de pagamentos que o governo federal está deixando de fazer, ou que em breve não mais fará, em relação a coisas que os libertários insistem que não devíamos gastar os dólares do contribuinte.

Por exemplo, cheques federais para produtores agrícolas que não estão saindo - algo que organizações libertárias, como o Instituto Cato, denunciam como subsídio e uma forma de capitalismo de compadrio.

Os (pequenos) empresários estão furiosos porque a 'Administração de Pequenas Empresas' não está fazendo empréstimos - mas os libertários querem ver toda a agência abolida.

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Se o desligamento se estender até março - o que, de novo, parece inteiramente possível - o dinheiro para vales-refeição (food stamps) irá secar. Mas os republicanos há muito são profundamente hostis ao programa de cupons de alimentação. Mitch McConnell, o líder da maioria no Senado, denunciou o programa por "tornar excessivamente fácil ser improdutivo".

A paralisação reduziu drasticamente o trabalho na 'Food and Drug Administration' (FDA), que, entre outras coisas, tenta evitar a contaminação de alimentos: inspeções de rotina de frutos do mar, legumes, frutas e outros alimentos pararam. Mas há uma longa tradição conservadora, que remete a Milton Friedman, que condena a existência da FDA como uma interferência injustificada no livre mercado.

OK, não devemos ser completamente cínicos (cínicos, sim, mas não completamente ). Mesmo onde há uma solução livre de governo para um problema, você deve se preocupar que levaria tempo para configurar. Talvez você acredite que empresas privadas possam assumir o papel da FDA em manter a segurança dos alimentos, mas essas empresas não existem agora e não podem ser criadas em questão de semanas. Assim, mesmo os verdadeiros libertários não fariam necessariamente um desligamento repentino do governo.

Em todo caso, embora a distância entre a suposta ideologia dos republicanos e sua reação real ao fechamento seja compreensível, isso não a torna inocente. Se uma das partes pretende, ano após ano, acreditar que o governo é o problema, e não a solução, então se queixar amargamente quando o governo para de passar cheques, devemos prestar atenção.

E se você tem inclinações libertárias, deve perguntar se você está feliz com o que está acontecendo com o governo parcialmente fora da cena. Sabendo que a comida que você está comendo agora está mais propensa do que antes a ser contaminada, essa contaminação potencial cheira a você como liberdade?"

É muita desonestidade intelectual! Como o próprio Krugman parece reconhecer, num lapso de honestidade, quando admite seu cinismo parcial, a suspensão temporária de programas governamentais não é o mesmo que uma suspensão definitiva e planejada. Como os agentes econômicos sabem que, mais dia menos dia, o governo vai reabrir, de que vale os agricultores tomarem decisões de longo prazo sobre a produção agrícola sem subsídios, ou empresas privadas se planejarem para estabelecer agências de certificação de segurança alimentar que possam eventualmente substituir a FDA?

O caos e os danos causados por repentinas paralisações governamentais não provam que o modelo liberal funcionaria ou não. Krugman diz que muitos pequenos empresários estão enfurecidos porque a "Administração de Pequenas Empresas" (SBA) - uma organização que os liberais afirmam ser desnecessária - parou de fazer empréstimos. Ora, é claro que eles estão irados, pois esperavam por algo que de repente não veio, causando-lhes sérios problemas e prejuízos. Isso não tem absolutamente nada a ver com a necessidade ou não de uma agência como a SBA. Isso apenas demonstra que as pessoas ficam irritadas quando suas expectativas são repentinamente frustradas por culpa de terceiros. A paralisação não prova nada sobre como um mercado exclusivamente privado atuaria, se a SBA fosse extinta.

Um shutdown temporário é algo que apenas torna as coisas caóticas para muitas pessoas. É óbvio que os agentes econômicos agirão para mitigar os efeitos, mas sabendo que o governo voltará a operar em breve, há pouco ou nenhum incentivo para que novas instituições se desenvolvam ou para que empresas operem mudanças estruturais, o que seria normal caso o governo anunciasse a saída definitiva dessas atividades num prazo razoável.

Os liberais de fato vislumbram uma sociedade na qual muitas das atividades atualmente exercidas pelos governos ao redor do mundo poderiam ser transferidas para empresas privadas num modelo concorrencial, ou onde regulamentações excessivas encontrem substitutos nos contratos privados e soluções na lei (civil e criminal) comum. Porém, definitivamente, os liberais não acreditam em simplesmente implodir estruturas e instituições sociais de longa data sem aviso prévio, sem planejamento e sem um período mínimo de transição. Quem sugere isso, bom sujeito não é.

*Administrador de empresas formado pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (EBAP/FGV-RJ), João Luiz Mauad é articulista dos jornais “O Globo” e “Diário do Comércio”. Escreve regularmente para o site do Instituto Liberal.