Exame.com
Continua após a publicidade

'Inverno cripto' como uma oportunidade de construir

Na coluna desta semana, o Instituto Millenium entrevistou Camila Rioja, empresária e pioneira em web3

Camila Rioja, empresária e pioneira em web3 no país (Arquivo Pessoal/Divulgação)
Camila Rioja, empresária e pioneira em web3 no país (Arquivo Pessoal/Divulgação)
I
Instituto Millenium

Publicado em 28 de março de 2023 às, 17h25.

Conhecido como “inverno cripto”, o período prolongado de baixa nos criptoativos pode servir como uma oportunidade institucional para testar regulações e amadurecer um projeto sobre o assunto, sem gerar grande alarde, e avançar a sociedade aberta em economias emergentes, como a do Brasil. Para falar sobre o tema, o Instituto Millenium entrevistou Camila Rioja, empresária e pioneira em web3 no país. Ela comentou sobre as causas e prognósticos do inverno cripto, o papel da web3 na expansão das possibilidades de troca e co-criação de valor na internet, e como aproveitar o período de baixa em nosso favor. Rioja também explicou porque não acredita que o melhor caminho seja copiar regulações de outros países, mas construir uma nossa, que contemple as peculiaridades do mercado brasileiro. Confira abaixo a entrevista completa:

1) O período de longo declínio no preço e nas atividades de criptoativos foi apelidado de inverno cripto. O que vem causando este fenômeno?

Camila Rioja - O termo "inverno cripto" é utilizado no segmento de ativos digitais em referência a um período prolongado de baixa, com efeitos conhecidos e similares ao mercado de ações tradicionais. Neste último, o termo que define a situação é "bear market". Em ambos, os períodos de baixa são caracterizados pela instabilidade no mercado, crise de confiança, volume tímido de trading, excesso de oferta e baixa procura, entre outros. Alguns utilizam ambos os termos de forma intercambiável, enquanto outros sustentam que o inverno crypto tem duração mais prolongada em relação ao bear market; outros, discordam sobre estarmos experienciando o quarto ou quinto bear market crypto. O fato é que diferentes conjunturas e razões levaram ao início destes processos: ataques e roubos a exchanges, mudanças regulatórias e banimento do Bitcoin na China, questões macroeconômicas como o aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, hype de projetos fraudulentos e, mais recentemente, implosão da stablecoin Terra, bancarrota do hedge fund Three Arrows Capital, os problemas com estratégias de retorno arrojadas e altamente alavancadas como o caso da Celsius e o fiasco da FTX estão entre os maiores acontecimentos do último ano.

Talvez a grande novidade negativa deste ciclo tenha sido o efeito sistêmico, uma vez que os projetos envolvidos eram interconectados pela sua natureza ou estratégia de negócios. Caso o cenário dos últimos 15 anos tenha servido de laboratório e aprendizado, este momento poderia (em um tom bastante otimista) ser de fato um ponto de inflexão, que catapulta o setor para um novo patamar, baseado na possibilidade de regenerar sistemas deficitários do legado que de forma contundente fracassaram em ser implementados na web3.

2) Acredita que o inverno cripto já passou, ou está passando?

CR - Prever o início e o fim dos invernos-cripto se aproxima mais de um exercício de futurologia do que de uma ciência baseada em análise de gráficos e dados. Primeiro porque a indústria ainda está em fase de amadurecimento e evolução tecnológica acentuada. Segundo, porque a cada ciclo, as condições macroeconômicas e seus desafios são bastante particulares. Além disso, a adoção em massa para casos de uso no mundo real (para além do trading, como por exemplo tokenização de ativos e CBDCs), e que poderiam em tese garantir mais previsibilidade e estabilidade ao mercado, depende da transposição de desafios tecnológicos, regulatórios e product market fit.

Entretanto, assim como as razões para o início de cada um dos períodos de baixa foram diversas, ao longo dos anos as razões para o término dos ciclos também variaram desde questões técnicas como o halving do Bitcoin à criação do Ethereum, a adoção como reserva de valor por players institucionais, reforço do trading e surgimento de novos casos de uso. Destaco, pois, dois fatores que podem ser relevantes na virada (perene) de chave: O reforço da credibilidade na tese de base do Bitcoin e a expansão de casos de uso para aplicações construídas em blockchain por players institucionais. Explico.

O blockchain surgiu em 2008, como uma resposta à grave crise econômica mundial, cujo epicentro foi os Estados Unidos, e sob o fundamento máximo de um sistema de transferência de valor sem a dependência de intermediários. Há poucos dias, os Estados Unidos e o mundo passaram a (re)reviver uma crise bancária envolvendo o SVB, Signature Bank, Credit Suisse e outros. Sem alongar nas razões para este colapso, é de se atentar para a forma com a qual as instituições e os indivíduos percebem e recepcionam a tese do Bitcoin nesse momento. Outro ponto interessante é observar as novas teses e tecnologias que estão se firmando neste momento. Na minha opinião, o conceito e aplicações de Finanças Regenerativas merecem atenção e destaque, o que também se relaciona com o segundo ponto de atenção acima, qual seja, a adoção e implementação de fato da tecnologia por players institucionais e governos (como no caso do Brasil para tokenização e CBDC).

A minha opinião pessoal é que o reaquecimento do mercado relacionado a projetos mais maduros e com aplicação real para além da especulação sob uma ótica de externalidades positivas para o ecossistema pode ser uma tônica interessante e com chances de sucesso para um novo momento da sociedade. Quando a inovação resolve problemas macro que são experienciados pela população desde a sua base, os efeitos econômicos têm a tendência de ser positivos e com efeitos sistêmicos.

3) Como você vê a web3 como uma alternativa ao modelo atual da internet?

CR - A web3 é um novo momento da internet que tem a sua base sendo construída através da tecnologia Blockchain, algo especialmente interessante quando se leva em consideração os atores envolvidos na construção. Sabemos que a internet não tem, salvo limitadas exceções, barreira geográfica, e é a maior agente catalisadora para o alcance e crescimento exponencial de qualquer negócio, marca ou indivíduo. Por essa razão, revolucionou a conexão entre pessoas e a disseminação de informações. Uma das grandes diferenças com relação a web3, é a expansão das possibilidades de troca e participação em uma nova dimensão: a da co-criação de valor (inclusive monetário) e a sua disseminação com menores barreiras ou limites. Um dos motivos pelos quais a formação de comunidades na Web3 é relevante é exatamente pela possibilidade dessas redes criarem novas oportunidades e arranjos, monetizarem essas práticas e colaborarem com seu crescimento em rede. Outra coisa importante é como essa possibilidade pode ser um combustível para o desenvolvimento econômico e social. Nesse novo momento da internet, tenho percebido um apetite de empresas da web2 em migrar para web3, ou ao menos explorar possibilidades, novos produtos e serviços.

Estamos como comunidade, indústria e governo avançando nesse caminho de inovação em blockchain, e ainda há muito o que ser testado. Nesse sentido, ter ambientes controlados que propiciem a inovação se faz mister para o desenvolvimento econômico e social de qualquer nação.

4) Acredita que esse período, no qual as criptos estão mais abaixo do radar, seria uma boa oportunidade de testar regulações e amadurecer um projeto sobre o assunto?

CR - Esse é um período que é notoriamente conhecido, pelas pessoas na indústria como um momento de construção. As condições externas são de retração do capital disponível e uma barreira mais alta de exigência do ponto de vista de qualidade e requisições para aporte de investimento ou recebimento de bolsas (grants). Muitos dos maus atores – e também bons atores que infelizmente não conseguem resistir às condições adversas – quebram nesse processo. Em que pese o cenário de grandes desafios, quem consegue utilizar do período que tem menos ruído de projetos de baixa qualidade ou golpes e especuladores para construir base sólida e fortalecer sua atuação tem um posicionamento único para o sucesso no próximo ciclo de "bull market". O momento é propício para testar a resiliência de teses e a viabilidade de produtos. No mesmo sentido, aproveitar a oportunidade para estreitar diálogo e testes com players institucionais e reguladores é uma estratégia que em tese posiciona não somente a startup, mas uma parte relevante do ecossistema com melhores chances de sucesso.

Na minha opinião, para um bom equilíbrio, seria também interessante um melhor direcionamento das soluções em blockchain para problemas de impacto real, com vistas a dar maior suporte às comunidades, à economia e ao desenvolvimento de bens públicos. Um diálogo multi (lateral e disciplinar) neste momento têm um papel fundamental na construção de soluções criativas. Esse pode ser, sim, um momento muito relevante pro Brasil, para economia brasileira e para os criadores e desenvolvedores brasileiros, e para o desenvolvimento do país.

5) Sobre as regulações de criptos pelo mundo, há algum modelo que você acredite que poderia ser importado pro Brasil?

CR – Talvez, o maior motivo pelo qual eu entrei nesse mundo blockchain foi porque eu sou fascinada por uma área de estudo que se chama Computational Law. E ela está relacionada à construção de sistemas, através de diferentes tecnologias que tenham como alvo trazer soluções para questões de cunho legal ou que tangenciam a criação, aplicação, respeito ou melhoria de leis e questões relevantes para o funcionamento da sociedade. Quando eu olho para questões sociais, econômicas, educacionais, tecnológicas - via de regra, olho sob esse prisma de sistemas tecnológicos que geram externalidades positivas e quantificáveis para problemas reais. Nesse sentido, acho que o Brasil tem a possibilidade de alcançar um pioneirismo relevante ao não copiar ou adaptar legislações que tenham pouca relação com a situação fática do Brasil e talvez ir além: criando sistemas e condições de auferir o impacto das determinações legais para o fim ao qual a legislação se destina. Nesse sentido, perante a um possível conflito sobre superregular e estrangular a inovação, ou abstrair do controle e talvez abrir espaço para maus atores e riscos sistêmicos, uma saída pode ser criar mais ambientes de teste em que riscos controlados sejam parte de um processo relevante de inovação aberta. Em um cenário de rápida transformação, ter espaços que propiciem a inovação de forma segura é grande vantagem competitiva.

Colaboração público privada - nacional e internacional -, laboratórios de inovação aberta, hackathons, sandbox, tokenização de ativos: mais do que palavras de impacto, caso organizadas em prol do desenvolvimento social, econômico e regulatório do Brasil podem ser a chave para avançar as pautas relevantes para os brasileiros. Portanto, eu não falaria, necessariamente, em copiar ou espelhar uma legislação, mas sim destrinchar a tecnologia, os problemas ou as oportunidades do mercado brasileiro, e a partir disso, desenhar um sistema que seja único, com o fito de o desenvolver o país. É a melhor forma que consigo pensar de fazer com que leis, tecnologia e oportunidades beneficiem o Brasil e os Brasileiros.