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Internet aberta para todos

Problemas persistem, seja na educação, no saneamento ou, mais recentemente, no debate sobre a economia digital brasileira

(Getty Images/Getty Images)
Thiago Camargo

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 2 de janeiro de 2024 às 09h52.

De todas as frases falsamente atribuídas a Einstein, a minha preferida é: 'Insanidade é continuar fazendo as mesmas coisas esperando resultados diferentes'. Gosto dessa frase, pois ela aborda algo que enfrentamos todos os dias. Sempre há alguém com uma proposta antiga para combater um problema novo ou com uma solução inadequada para um problema mal compreendido. O resultado é que os problemas persistem, seja na educação, no saneamento ou, mais recentemente, no debate sobre a economia digital brasileira.

No início de dezembro de 2023, devido ao lançamento da Aliança por uma Internet Aberta, ganhou tração um debate sobre a instituição de uma taxa obrigatória para uso de rede, apelidada pelo lobby de ' fair share ', que foi instituída na Coreia do Sul e passou a ser debatida na Europa. Esse é um erro que temos cometido com frequência: importar qualquer regulamentação europeia para a economia digital. A cobrança do tal 'fair share' poderia ocorrer, hipoteticamente, de duas maneiras. Na Coreia - assim como na iniciativa do lobby das teles na Europa - a cobrança é feita para que o conteúdo das grandes plataformas chegue ao usuário final. Como isso claramente entra em conflito com o princípio da neutralidade de rede, no Brasil existe outra possibilidade: que essa taxa de rede seja cobrada na forma de contribuição para o FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações).

É aqui que entra a parte de repetir os erros, pensando que tudo vai dar certo. Na Coreia, os resultados não foram bons, aumentou o custo da operação das plataformas, resultando em prejuízo à concorrência dos provedores de conexão de pequeno porte e à inovação na internet, de acordo com o BEREC (entidade que representa as agências reguladoras de telecomunicações na Europa). Já o FUST, criado há 23 anos, recebe 1% sobre a receita operacional bruta das empresas de telecomunicações. São algumas dezenas de bilhões arrecadados desde sua criação e os primeiros projetos para aplicação só foram aprovados no ano passado. De acordo com a PNAD 2021, 90% dos domicílios brasileiros já tinham acesso à internet e nenhum desses domicílios foi conectado graças aos recursos do FUST. Ou seja: uma proposta pode fazer com que os usuários não tenham mais acesso a todas as plataformas - como aconteceu na Coreia com a saída da Twitch do país -, a outra proposta é dar mais dinheiro para o governo fazer o que não fez por mais de 20 anos, tendo bilhões de reais na conta. É realmente possível que alguma funcione?

A problemática da possível cobrança da taxa de uso de rede não reside apenas na questão de aplicabilidade, mas também de premissas. Vou tentar delinear aqui alguns dos problemas.

1) A Anatel, na Tomada de Subsídios 13/2023, que iniciou esse debate no Brasil, parte do pressuposto de que se trata de regular o dever dos usuários de utilizar adequadamente as redes de telecomunicações, conforme estipulado na Lei Geral das Telecomunicações. Eu nem vou tentar entender o que o legislador tinha em mente ao utilizar o termo "adequado", mas aparentemente tem gente que não considera adequado usar a internet para aquilo que ela foi feita: tráfego de dados. O equívoco é a Anatel considerar aplicações de internet como usuários da rede. O usuário da rede é o assinante do serviço de banda larga ou celular, a plataforma de internet é apenas um serviço que o usuário acessa através da rede.

Para exemplificar: é como se a ANTT obrigasse a Volvo e a Volkswagen (maiores vendedoras de caminhões no Brasil) a pagar pedágio, pois os caminhoneiros usam seus produtos para andar na estrada. Além disso, se o tratamento de usuário for aplicado a quem quer que ofereça aplicações que podem ser acessadas pela internet, o maior usuário de internet seria o próprio governo, já que o Gov.BR tem mais usuários cadastrados que o Facebook. O Banco Central é usuário por todas as transações de PIX, a Receita Federal é usuária por todas as transmissões de imposto de renda, os governos estaduais e municipais por todas as emissões de nota fiscal. Os governos vão ter que pagar a taxa de rede para as empresas ou contribuir para o FUST também?

2) Parte do debate se ancora na insustentabilidade do investimento em rede de infraestrutura que seria feito unicamente pelas empresas de telefonia. Mais uma vez a premissa não é verdadeira. O investimento na infraestrutura de rede no Brasil não é feito só pelas empresas de telefonia, mas também pelas plataformas de internet (com data centers e cabos submarinos, por exemplo), além dos provedores de serviços de internet. São mais de 20 mil provedores de acesso à internet no Brasil com investimentos em infraestrutura de conectividade. Além disso, se esse investimento é realmente insustentável, alguém vai ter que explicar por que as empresas pagam tão caro para ter o direito de explorar o serviço de telefonia. Foram quase R$ 6 bilhões em 2014 e R$ 47 bilhões em 2021. Como as empresas vão explicar para os seus acionistas que assumiram obrigações bilionárias que não possuem um retorno financeiro sustentável?

3) Sim, o peso para investimento em infraestrutura de comunicação no Brasil é desproporcionalmente maior para as empresas de telefonia. Mas os causadores desse peso são as próprias empresas e o governo. Foram as empresas que decidiram adotar " zero rating " para as aplicações de internet e passaram a oferecer planos em que as redes sociais e plataformas de streaming não seriam descontados do plano de dados. A decisão foi delas e elas podem simplesmente deixar de oferecer isso. Vai prejudicar o usuário? Provavelmente não, pois daria a possibilidade de usuários que não fazem uso massivo de dados de contratar planos mais baratos, enquanto os chamados heavy users (meu caso) poderiam comprar planos mais caros, mas com maiores franquias.

Na outra ponta, o governo sempre tratou errado a questão da infraestrutura de comunicações. Em todos os outros setores de infraestrutura, o governo constrói e concede para alguém operar. É assim com estradas, ferrovias, portos e aeroportos. Mas na infraestrutura de telecomunicações o governo faz com que as empresas tenham que pagar caro pelo direito de construir essa infraestrutura. E não adianta falar que o leilão de 5G não foi arrecadatório, pois foram só para investimentos, já que uma enorme parte dos recursos foram só para pagar por programas e projetos do governo. Foram dezenas de bilhões de reais para construir rede privativa, conectividade na Amazônia, conectividade nas escolas e troca de parabólicas. Alguns com mais e outros com menos mérito, mas tudo isso era obrigação do próprio governo, que já tinha dinheiro para fazer isso. Sabe onde estava o dinheiro? No FUST.

4) Existem soluções mais inteligentes e ainda não exploradas. Seria positiva uma mudança na lei do SEaC, que cria vedações para empresas de telecomunicações explorarem outros serviços. Seria interessante a criação de instrumentos financeiros isentos de imposto para captação de dinheiro no mercado, para financiamento dos investimentos em TIC, como já acontece para financiar o crédito imobiliário e o agronegócio. O governo poderia diminuir o peso regulatório e tributário sobre o setor. Mas, no Brasil, qualquer proposta de solução de um problema passa por criar um jeito de fazer o governo receber mais dinheiro.

5) Alguém vai ter que pagar a conta. É risível a ideia de que você pode taxar as empresas (seja para uso da rede ou seja para compras na internet) e quem vai pagar a conta é só a empresa, o usuário não vai pagar nada a mais. Se aumentar muito o custo da operação da plataforma, só existem dois caminhos possíveis: ou a plataforma encerra as operações no país, como foi o caso da Twitch na Coreia do Sul, ou a plataforma vai repassar os custos para seus clientes. Então, o marketplace vai cobrar um percentual maior das vendas feitas ali ou os anúncios vão ficar mais caros e esses custos vão se refletir no preço dos produtos. Não vai pegar bem para o governo quando as mensalidades da Netflix e do Spotify ficarem mais caras. A verdade é que o usuário (o usuário de verdade e não a interpretação freestyle da Anatel) vai pagar duas vezes: vai pagar pelo plano de celular ou banda larga e vai pagar essa taxa de rede que vai ser embutida no preço dos produtos e serviços que ele adquire pela internet.

6) Todo aumento de barreira regulatória sempre causa concentração do mercado. Essa taxa inibe a inovação, pois os custos de escalar uma plataforma ou aplicativo aumentariam demais. Isso já acontece com os provedores de internet que preferem abrir outro CNPJ ou reportar números menores de clientes para não perderem o status de pequeno provedor, assim como acontece nas empresas que preferem abrir outro CNPJ para não sair do SIMPLES. Qualquer aplicação que estiver crescendo vai ter que tomar a decisão de parar de operar no país ou diminuir seu crescimento, para não inviabilizar o negócio com o aumento do custo operacional.

7) Vou encerrar por aqui com o último e mais preocupante: se todos os grandes provedores de serviços e aplicações forem considerados usuários e tiverem que pagar essa taxa, significa que, além das plataformas, as grandes plataformas de educação ou de informação também deverão pagar essa taxa de rede. Vai ficar mais caro exercer o seu direito fundamental à educação ou ao livre exercício do trabalho e, assim, a internet vai deixando de ser aberta para todos.

Cometer os mesmos erros esperando que a solução apareça pode até ser chamado de insanidade, mas também pode, aparentemente, ser chamado de governo.

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De todas as frases falsamente atribuídas a Einstein, a minha preferida é: 'Insanidade é continuar fazendo as mesmas coisas esperando resultados diferentes'. Gosto dessa frase, pois ela aborda algo que enfrentamos todos os dias. Sempre há alguém com uma proposta antiga para combater um problema novo ou com uma solução inadequada para um problema mal compreendido. O resultado é que os problemas persistem, seja na educação, no saneamento ou, mais recentemente, no debate sobre a economia digital brasileira.

No início de dezembro de 2023, devido ao lançamento da Aliança por uma Internet Aberta, ganhou tração um debate sobre a instituição de uma taxa obrigatória para uso de rede, apelidada pelo lobby de ' fair share ', que foi instituída na Coreia do Sul e passou a ser debatida na Europa. Esse é um erro que temos cometido com frequência: importar qualquer regulamentação europeia para a economia digital. A cobrança do tal 'fair share' poderia ocorrer, hipoteticamente, de duas maneiras. Na Coreia - assim como na iniciativa do lobby das teles na Europa - a cobrança é feita para que o conteúdo das grandes plataformas chegue ao usuário final. Como isso claramente entra em conflito com o princípio da neutralidade de rede, no Brasil existe outra possibilidade: que essa taxa de rede seja cobrada na forma de contribuição para o FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações).

É aqui que entra a parte de repetir os erros, pensando que tudo vai dar certo. Na Coreia, os resultados não foram bons, aumentou o custo da operação das plataformas, resultando em prejuízo à concorrência dos provedores de conexão de pequeno porte e à inovação na internet, de acordo com o BEREC (entidade que representa as agências reguladoras de telecomunicações na Europa). Já o FUST, criado há 23 anos, recebe 1% sobre a receita operacional bruta das empresas de telecomunicações. São algumas dezenas de bilhões arrecadados desde sua criação e os primeiros projetos para aplicação só foram aprovados no ano passado. De acordo com a PNAD 2021, 90% dos domicílios brasileiros já tinham acesso à internet e nenhum desses domicílios foi conectado graças aos recursos do FUST. Ou seja: uma proposta pode fazer com que os usuários não tenham mais acesso a todas as plataformas - como aconteceu na Coreia com a saída da Twitch do país -, a outra proposta é dar mais dinheiro para o governo fazer o que não fez por mais de 20 anos, tendo bilhões de reais na conta. É realmente possível que alguma funcione?

A problemática da possível cobrança da taxa de uso de rede não reside apenas na questão de aplicabilidade, mas também de premissas. Vou tentar delinear aqui alguns dos problemas.

1) A Anatel, na Tomada de Subsídios 13/2023, que iniciou esse debate no Brasil, parte do pressuposto de que se trata de regular o dever dos usuários de utilizar adequadamente as redes de telecomunicações, conforme estipulado na Lei Geral das Telecomunicações. Eu nem vou tentar entender o que o legislador tinha em mente ao utilizar o termo "adequado", mas aparentemente tem gente que não considera adequado usar a internet para aquilo que ela foi feita: tráfego de dados. O equívoco é a Anatel considerar aplicações de internet como usuários da rede. O usuário da rede é o assinante do serviço de banda larga ou celular, a plataforma de internet é apenas um serviço que o usuário acessa através da rede.

Para exemplificar: é como se a ANTT obrigasse a Volvo e a Volkswagen (maiores vendedoras de caminhões no Brasil) a pagar pedágio, pois os caminhoneiros usam seus produtos para andar na estrada. Além disso, se o tratamento de usuário for aplicado a quem quer que ofereça aplicações que podem ser acessadas pela internet, o maior usuário de internet seria o próprio governo, já que o Gov.BR tem mais usuários cadastrados que o Facebook. O Banco Central é usuário por todas as transações de PIX, a Receita Federal é usuária por todas as transmissões de imposto de renda, os governos estaduais e municipais por todas as emissões de nota fiscal. Os governos vão ter que pagar a taxa de rede para as empresas ou contribuir para o FUST também?

2) Parte do debate se ancora na insustentabilidade do investimento em rede de infraestrutura que seria feito unicamente pelas empresas de telefonia. Mais uma vez a premissa não é verdadeira. O investimento na infraestrutura de rede no Brasil não é feito só pelas empresas de telefonia, mas também pelas plataformas de internet (com data centers e cabos submarinos, por exemplo), além dos provedores de serviços de internet. São mais de 20 mil provedores de acesso à internet no Brasil com investimentos em infraestrutura de conectividade. Além disso, se esse investimento é realmente insustentável, alguém vai ter que explicar por que as empresas pagam tão caro para ter o direito de explorar o serviço de telefonia. Foram quase R$ 6 bilhões em 2014 e R$ 47 bilhões em 2021. Como as empresas vão explicar para os seus acionistas que assumiram obrigações bilionárias que não possuem um retorno financeiro sustentável?

3) Sim, o peso para investimento em infraestrutura de comunicação no Brasil é desproporcionalmente maior para as empresas de telefonia. Mas os causadores desse peso são as próprias empresas e o governo. Foram as empresas que decidiram adotar " zero rating " para as aplicações de internet e passaram a oferecer planos em que as redes sociais e plataformas de streaming não seriam descontados do plano de dados. A decisão foi delas e elas podem simplesmente deixar de oferecer isso. Vai prejudicar o usuário? Provavelmente não, pois daria a possibilidade de usuários que não fazem uso massivo de dados de contratar planos mais baratos, enquanto os chamados heavy users (meu caso) poderiam comprar planos mais caros, mas com maiores franquias.

Na outra ponta, o governo sempre tratou errado a questão da infraestrutura de comunicações. Em todos os outros setores de infraestrutura, o governo constrói e concede para alguém operar. É assim com estradas, ferrovias, portos e aeroportos. Mas na infraestrutura de telecomunicações o governo faz com que as empresas tenham que pagar caro pelo direito de construir essa infraestrutura. E não adianta falar que o leilão de 5G não foi arrecadatório, pois foram só para investimentos, já que uma enorme parte dos recursos foram só para pagar por programas e projetos do governo. Foram dezenas de bilhões de reais para construir rede privativa, conectividade na Amazônia, conectividade nas escolas e troca de parabólicas. Alguns com mais e outros com menos mérito, mas tudo isso era obrigação do próprio governo, que já tinha dinheiro para fazer isso. Sabe onde estava o dinheiro? No FUST.

4) Existem soluções mais inteligentes e ainda não exploradas. Seria positiva uma mudança na lei do SEaC, que cria vedações para empresas de telecomunicações explorarem outros serviços. Seria interessante a criação de instrumentos financeiros isentos de imposto para captação de dinheiro no mercado, para financiamento dos investimentos em TIC, como já acontece para financiar o crédito imobiliário e o agronegócio. O governo poderia diminuir o peso regulatório e tributário sobre o setor. Mas, no Brasil, qualquer proposta de solução de um problema passa por criar um jeito de fazer o governo receber mais dinheiro.

5) Alguém vai ter que pagar a conta. É risível a ideia de que você pode taxar as empresas (seja para uso da rede ou seja para compras na internet) e quem vai pagar a conta é só a empresa, o usuário não vai pagar nada a mais. Se aumentar muito o custo da operação da plataforma, só existem dois caminhos possíveis: ou a plataforma encerra as operações no país, como foi o caso da Twitch na Coreia do Sul, ou a plataforma vai repassar os custos para seus clientes. Então, o marketplace vai cobrar um percentual maior das vendas feitas ali ou os anúncios vão ficar mais caros e esses custos vão se refletir no preço dos produtos. Não vai pegar bem para o governo quando as mensalidades da Netflix e do Spotify ficarem mais caras. A verdade é que o usuário (o usuário de verdade e não a interpretação freestyle da Anatel) vai pagar duas vezes: vai pagar pelo plano de celular ou banda larga e vai pagar essa taxa de rede que vai ser embutida no preço dos produtos e serviços que ele adquire pela internet.

6) Todo aumento de barreira regulatória sempre causa concentração do mercado. Essa taxa inibe a inovação, pois os custos de escalar uma plataforma ou aplicativo aumentariam demais. Isso já acontece com os provedores de internet que preferem abrir outro CNPJ ou reportar números menores de clientes para não perderem o status de pequeno provedor, assim como acontece nas empresas que preferem abrir outro CNPJ para não sair do SIMPLES. Qualquer aplicação que estiver crescendo vai ter que tomar a decisão de parar de operar no país ou diminuir seu crescimento, para não inviabilizar o negócio com o aumento do custo operacional.

7) Vou encerrar por aqui com o último e mais preocupante: se todos os grandes provedores de serviços e aplicações forem considerados usuários e tiverem que pagar essa taxa, significa que, além das plataformas, as grandes plataformas de educação ou de informação também deverão pagar essa taxa de rede. Vai ficar mais caro exercer o seu direito fundamental à educação ou ao livre exercício do trabalho e, assim, a internet vai deixando de ser aberta para todos.

Cometer os mesmos erros esperando que a solução apareça pode até ser chamado de insanidade, mas também pode, aparentemente, ser chamado de governo.

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