Gentrificação reflete movimento natural de cidades vivas
O processo reflete a capacidade de reinvenção das cidades, atendendo a demandas em constante evolução e reafirmando sua vitalidade
Publicado em 5 de dezembro de 2024 às, 06h35.
Se você já ouviu falar em gentrificação, seu pensamento provavelmente está em imagens de bairros transformados, com antigos moradores e comércios tradicionais “abandonando” suas casas e empresas para serem substituídos por novos habitantes e negócios descolados. Descaracterização cultural e social, novos edifícios, preços elevados. A verdade é que essa imagem não está equivocada, mas gostaria de propor a observação desse processo por um ângulo positivo e pouco abordado: a impossibilidade de controle de uma cidade viva.
Dizem que tudo começa com os artistas e hipsters, que veem graça nos bairros e ruas com um charme escondido, normalmente negligenciados e, por isso, de baixo custo. Pouco a pouco, outras pessoas começam a olhar para tais locais, e moradores recém-chegados trarão consigo novas demandas, influenciando na abertura de negócios, maior movimento, aumentando o interesse para investimentos. Todos querem participar das oportunidades que podem surgir desse desenvolvimento, resultando em uma valorização imobiliária e, pouco a pouco, em uma mudança socioeconômica da região, com o deslocamento da população de baixa renda, que já não consegue arcar com os novos custos.
Embora os críticos apontem que tal deslocamento tenha um impacto negativo, é importante entender que esse processo não é imposto por agentes externos. Ao contrário, surge de mudanças espontâneas impulsionadas por livres decisões de pessoas, escolhas individuais que formam o mercado. O processo reflete a capacidade de reinvenção das cidades, atendendo a demandas em constante evolução e reafirmando sua vitalidade.
Esse processo de gentrificação é, em sua essência, positivo, pois reflete o dinamismo e a capacidade de adaptação das cidades que prosperam. Contudo, seus benefícios se manifestam plenamente apenas quando ocorre de forma espontânea, guiado por decisões livres e naturais no mercado, e não como resultado de intervenções impostas pelo Estado por meio de políticas públicas.
Jane Jacobs, uma das maiores pensadoras urbanas do século 20, argumentava que as cidades são organismos vivos, em constante transformação, e que sua força se encontra na capacidade de abraçar essas mudanças espontâneas. Para ela, bairros que passam por renovação, como ocorre na gentrificação, refletem a vitalidade de uma cidade que se adapta às novas demandas sociais e econômicas. Ainda que as mudanças tragam tensões, o contrário seria a estagnação ou o abandono de áreas urbanas, indicativos de um ciclo de declínio que leva a aumento de desemprego, criminalidade e fuga de capital humano, extremamente prejudicial ao tecido social.
Uma crítica frequente à gentrificação é seu impacto nos custos de moradia, perspectiva que ignora a situação dos proprietários. Em bairros que se valorizam, os donos de imóveis – muitos deles de baixa renda – têm a oportunidade de vender suas propriedades por valores substancialmente maiores, permitindo ascensão econômica e mobilidade social. Aqueles que optam por permanecer podem lucrar com aluguéis mais altos ou aproveitar os serviços e a infraestrutura aprimorados que acompanham o processo.
Edward Glaeser, autor de “O Triunfo da Cidade”, argumenta que a valorização imobiliária é um sinal de sucesso urbano: em mercados dinâmicos, os ganhos econômicos da gentrificação podem ser amplamente distribuídos, desde que sejam removidas barreiras à construção de novas moradias e negócios.
Os inquilinos, por sua vez, desempenham um papel essencial na dinâmica urbana e, naturalmente, são parte do espírito do bairro. Sua permanência em um imóvel, no entanto, está vinculada a contratos de aluguel que preveem uma limitação de tempo, uma escolha que parte dos proprietários. Os moradores que se sentirem pressionados a buscar alternativas mais acessíveis tendem a ir para as bordas de seu antigo bairro, com semelhanças com o anterior e custos viáveis. Além de inevitável, o movimento fortalece a teia urbana, que reativará e interligará os novos bairros escolhidos, talvez antes esquecidos, promovendo uma cidade mais dinâmica e resiliente. Enquanto isso, o bairro “original” se renova, atrai novos investimentos e empregos para seu entorno. Os comerciantes que ficam, por sua vez, têm a oportunidade de ver suas vendas aumentarem, gerando mais empregos e mobilidade social.
As cidades são reflexo de nossa capacidade de adaptação, inovação e crescimento em comunidade. A Europa, com seus exemplos tão admirados de vielas charmosas e avenidas exuberantes, nem sempre foi assim. Para atingir a vitalidade e beleza que experimentamos hoje, aquelas ruas já tiveram muitas identidades e personalidades, não apenas no uso, mas também em termos de renovação de edificações, que se adaptaram ao espírito do tempo e à ordem espontânea dos usuários. Longe de um processo a ser temido, a gentrificação nos convida a refletir sobre o equilíbrio entre tradição e modernidade, pertencimento e progresso.
*Por Barbara Perin Remussi, arquiteta e urbanista, associada do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)