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Ex-presidente argentino fala sobre o novo papel internacional brasileiro

Em entrevista ao “Valor Econômico”, o ex-presidente argentino Fernando de la Rúa fala sobre as novas responsabilidades do Brasil no atual quadro da política internacional. Confira abaixo os principais trechos da entrevista: “Valor: Qual é o novo papel do Brasil nas relações internacionais? Fernando de la Rúa: O extraordinário desenvolvimento do Brasil significa grandes possibilidades e grandes responsabilidades em relação à região. Uma delas é retomar o caminho do Mercosul, […] Leia mais

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Instituto Millenium

Publicado em 20 de outubro de 2010 às, 15h30.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 10h59.

Em entrevista ao “Valor Econômico”, o ex-presidente argentino Fernando de la Rúa fala sobre as novas responsabilidades do Brasil no atual quadro da política internacional. Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

“Valor: Qual é o novo papel do Brasil nas relações internacionais?
Fernando de la Rúa:
O extraordinário desenvolvimento do Brasil significa grandes possibilidades e grandes responsabilidades em relação à região. Uma delas é retomar o caminho do Mercosul, que hoje não é prioridade na agenda e tem de voltar a ser. Em relação aos países do Bric, o Brasil tem grandes vantagens: é uma democracia estável, não tem os problemas sociais da Índia, não se limita a exportar armas e petróleo, como a Rússia. Mas tem outra vantagem: integra uma regiãode países emergentes produtores de alimentos e recursos naturais, o que aumenta o seu potencial. Por isso, acho que o Brasil deve olhar mais para a região.

Valor: O Brasil não faz isso?
De la Rúa:
Há gestos amáveis, amistosos, e nada mais. Já nos esquecemos do processo de integração. O Mercosul não é tema da campanha eleitoral no Brasil. Isso significa perder uma oportunidade, pois juntos podemos crescer mais. Fortalecer a região fortalece o Brasil. O Brasil está sendo a grande locomotivado crescimento regional. A importação de carros e autopeças feitos na Argentina ajuda o nosso PIB, de modo que o Brasil tem uma grande importância para todos os países da América Latina. O Brasil quer dar um salto para ocupar uma posição mais preponderante noplano internacional. Pelo seu modelo, baseado na democracia, na previsibilidade, na inclusão social, é um exemplo.

Valor: Esse salto internacional reduz o interesse pelo Mercosul?
De la Rúa
: O problema do Mercosul vem de antes. É uma grande ideia, mas resumir-se numa união aduaneira trouxe dificuldades. Ficamos parados em disputas de autopeças e frangos, e não avançamos na integração política, cultural, institucional. Falto ao Mercosul um marco institucional. E sobretudo falta uma maior vontade integradora.

Valor: Da parte de quem?
De la Rúa:
Dos dois países. Criaram-se situações de desconfiança por problemas práticos de comércio, mas agora a grande expansão brasileira diminui o fator concorrência que nos afetava antes e permite avançar mais rapidamente. Essa situação excepcionaldo Brasil marca a hora em que se deve reforçar o Mercosul. Na prática, estamos superando essa barreira pela iniciativa privada. Mais de 400 empresas brasileiras investiram já na Argentina, e muitas empresas argentinas investiram no Brasil.

Valor: O Mercosul é um tema importante na Argentina?
De la Rúa:
Quase não se fala do Mercosul na Argentina. Fala-se mais da Unasul, que é uma ferramenta política criada pelo Brasil para uso do Brasil, para resolver problemas políticos passando ao largo do Mercosul. Em maio falou-se muito, pois tivemos um problema aduaneiro, quando a Argentina anunciou restrições a importações brasileiras. Isso foi superado, mas esse tipode conflito é um tema menor em relação ao grande desafio do crescimento. Esta é uma época excepcional para a América Latina. A crise nos países mais ricos faz crescer os fluxos de capitais para os emergentes. E nisso, a presença do Brasil, a situação do Brasil joga um papel importante. A imagem do Brasil reforça a confiança no resto da América Latina. Se o Brasil está bem, estamos bem todos. Mas se algo acontecer ao Brasil, criaria problemas para todos.

Valor: Este novo papel do Brasil é visto com naturalidade na Argentina, após décadas de desconfiança mútua e concorrência?
De la Rúa:
Sim, com admiração e até com orgulho, pois o Brasil é parte da América Latina e somos associados no Mercosul. Fico feliz por ver esse enorme crescimentodo Brasil. O Brasil era uma potência contida, mas 15 anos de estabilidade política e econômica permitiram esse desenvolvimento. Há grandes desafios: precisa acabar com o trabalho infantil, resolver o problema das favelas, da violência. E, com a Argentina, temos desafios comuns: a luta ao narcotráfico, ao terrorismo, à lavagemde dinheiro.

Valor: O sr. vê o risco de um excesso de triunfalismo no Brasil?
De la Rúa:
Alguns dizem que sim. O Brasil tem de dar o grande salto, mas se o fizer com soberba e triunfalismo, pode saltar no vazio. Acho que o Brasil vem crescendo com sensatez, com políticas gradualistas, sem choques abruptos, sem dar passos para trás. Isso significa que avançará bem.

Valor: Existe na região a percepção de imperialismo brasileiro?
De la Rúa:
Não percebemos isso. Por anos, houve uma concorrência entre Argentina e Brasil pela primazia. Na crise de 2001, quando jogaram contra nós todos os fatores internacionais adversos, o FMI negou apoio à Argentina, mas deu apoio ao Brasil. Isso foi fundamental, é o que marca os caminhos e as diferenças [entre os dois países].

A Argentina teve a crise política e declarou default, o que condicionou depois a confiança internacional para investir no país. O Brasil não teve crise política, evitou o default e virou um grande receptor de investimentos. Por isso, o Brasil atrai hoje 60% dos investimentos que chegam à América Latina, e a Argentina atrai só 3%.

Mas liderança tem um preço, quem exerce a liderança tem a responsabilidade de ajudar os outros. Não creio que haja uma reivindicação de liderança, mas sim um efeito positivo do crescimento do Brasil que ajuda o resto da região.

Valor: Qual é essa responsabilidade para o Brasil?
De la Rúa:
Não obstruir as importações dos outros países. Abrir caminhos de cooperação tecnológica – Brasil e Argentina precisam de desenvolvimento tecnológico e poderiam fazer acordos para isso. O Brasil pode facilitar, com investimentos, o desenvolvimento dos outros paísesdo Mercosul, em vez de competir com eles. É a atitude. O Brasil, com seu grande poder econômico, se competir com os outros países [da região] e fizer umapolítica contra eles, está renegando o seu papel latino-americano. Por outro lado, se ajudar no desenvolvimento e no crescimento, beneficia a si mesmo. Ser a oitavaeconomia mundial e estar numa região em crescimento é o melhor cenário possível para o Brasil.

Coordenar os programas de infraestrutura com os outros países é outra forma de integração. É preciso avançar nos mecanismos para compensar as diferenças, sobretudo entre Brasil e Paraguai.

Valor: A eleição no Brasil muda alguma coisa para a Argentina?
De la Rúa:
Nada sugere uma mudança abrupta das políticas em andamento no Brasil. Haverá continuidade, ainda que não continuísmo, mesmo que um possa ser mais estatista, o outro maisliberal.

Prova disso é que o debate neste surpreendente segundo turno, que ninguém esperava, deslocou-se para o aborto, para a questão religiosa. Não se discutem temas econômicos. O governo que vier teráde tomar algumas medidas sobre a taxa de câmbio, a taxa de juros, mas nada que provoque sobressaltos. Haverá definições sobre o que fazer a respeito da “guerra cambial”, como definiu o ministro Guido Mantega. Isso gera tensões no comércio internacional.

Valor: O câmbio preocupa?
De la Rúa
: No Brasil, após as eleições, haverá mais pressão do setor produtivo e dos exportadores para uma correção da taxa de câmbio. Isso é delicado. De um lado pode favorecer a produção, mas de outro vai afetar o poder de compra. Uma desvalorização no Brasil não é indiferente ao resto da região. Muitas vezes é necessário levar em conta esses interesses e se comunicar. Tivemos o grave problema da desvalorizaçãodo Brasil, em janeiro de 1999, que condicionou muito a situação da Argentina.

Há também preocupação na região por causa da grande entrada de capitais no Brasil, devido às taxas de juros. Se isso não for administrado adequadamente, pode criar uma situação de bolha.

(…)

Valor: Por que Brasil e Argentina seguiram rumos tão diferentes?
De la Rúa
: A Argentina, como o Brasil, foi favorecida pelos preços altos das commodities a partir de 2003. Eu tive isso contra no meu governo. A soja na época estava em US$ 70, US$ 80, e hoje passou para US$ 300. Se eu tivesse a soja a esse preço, a história teria sido diferente. Eu ainda sofri com a desvalorização no Brasil. Quando renunciei, estava começando a participação maior da China nos mercados. Menosde um ano depois, o cenário era outro.

Teria sido diferente se a Argentina tivesse evitado o default, um erro enorme contra o qual lutei fortemente e que foi o esforço principaldo meu governo, até me derrubarem, pois sofri um golpe civil. Aí veio o default e a desvalorização. Isso ainda conspira contra a confiança na Argentina. Já o Brasil, que não foi ao default, teve toda a confiança dos mercados para se desenvolver. Quando tivermos novamente a confiança internacional, os investimentos voltarão.

Valor: A atuação do governo hoje ajuda a volta da confiança no país?
De la Rúa:
Há um esforço nesse sentido, com o pagamento da dívida, ainda que com o forte desconto. Depois se questionou a dívida com o Clubede Paris e há um conflito com o FMI, pois o governo se opõe a que o FMI faça auditoria da economia como parte do processo de acerto da dívida com o Clube de Paris. Estamos travados por isso, um conflito que freia os investimentos dos principais países credores, como a Alemanha. A administração mais conflituosa dessa questão inibiu o desenvolvimento. Já o Brasil, com Cardoso e com Lula, se moveu por consenso. Quando Cardoso terminou o seu mandato, havia uma grande dívidaexterna, havia problemas internacionais, mas não houve ruptura com Lula. No meu caso, o Partido Justicialista atuou para me derrubar.”

Assinantes do “Valor Econômico” podem ler a entrevista na íntegra aqui.