Estado Oculto: o desafio de determinar a quantidade de servidores públicos
Interpretações dos dados publicados pelo República.org fomentam alegações imprecisas, como a de que o Brasil não tem servidores públicos em excesso
Colunista - Instituto Millenium
Publicado em 3 de agosto de 2023 às 14h05.
Última atualização em 3 de agosto de 2023 às 15h38.
Uma nova conversa está no centro do debate público brasileiro desde o lançamento do " República em Dados ", do Republica.org. A plataforma congrega e organiza informações pertinentes sobre o setor público brasileiro, além de oferecer análises descritivas sobre a distribuição regional, perfil de gênero, faixa etária, entre outras variáveis cruciais. As interpretações desses dados provocaram várias alegações questionáveis, uma das quais merece um exame detalhado: a noção de que o Brasil não tem um excesso de servidores públicos.
A referida avaliação se baseia na proporção de servidores públicos em relação à força de trabalho total do país,. Na comparação, o quadro de servidores no Brasil aparece relativamente menor do que em países com níveis de desenvolvimento semelhantes, e significativamente menor do que nos países mais ricos e membros da OCDE. A partir desse comparativo, fica implícita a sugestão de que precisamos de um número bem maior de concursos para compor a máquina pública. No entanto, essa conclusão é, na melhor das hipóteses, precipitada. A simples comparação entre o quantitativo de servidores públicos, é uma métrica que pode ser enganosa e suscetível a distorções por uma variedade de fatores.
Em primeiro lugar, a mensuração exata do número de servidores públicos é problemática. Diferentes formas de contratação e diversas formas de vínculos de trabalho tornam complexa a comparação do número de servidores públicos em diferentes governos.
O exemplo elucidativo da rede de saúde da prefeitura São Paulo revela que 76% dos trabalhadores da saúde municipais são contratados por Organizações Sociais, e portanto não são computados como servidores públicos. Isso se aplica também aos participantes do programa Mais Médicos, que são contratados mediante o pagamento de "bolsas". Esses casos são exemplos de como o número oficial de servidores públicos pode subestimar o verdadeiro tamanho da força de trabalho à disposição do setor público.
Arranjos similares são comuns em outros países. Tomemos a Alemanha e a França como exemplo: ambos países financiam seus sistemas de saúde em proporções equivalentes, mas a Alemanha emprega um número muito inferior de funcionários públicos no setor, optando por contratos com organizações privadas. Diferenças desta natureza distorcem as comparações entre governos. A situação se repete nos Estados Unidos. O estado de Wyoming conta com mais que o dobro de funcionários públicos per capita que estados como Michigan ou Nevada por administrar uma rede de hospitais públicos.
Ainda mais desafiador é a mensuração de contratos "quase-públicos". No Brasil, a Fundação Butantan, uma entidade de direito privado que apoia o Instituto Butantan é um exemplo de como a força de trabalho "oculta" do setor público pode ser significativa. A Fundação é responsável por contratar uma parcela considerável da força de trabalho disponível para o Instituto. Conforme dados de 2021, enquanto o Instituto conta com 461 funcionários, a Fundação emprega 2828. Contudo, os profissionais contratados pela Fundação não são incorporados nas estatísticas oficiais de emprego público.
Este fenômeno foi destacado por Paul Light (autor de " O verdadeiro tamanho do governo ", lançado em 1999), que argumentou que as estatísticas oficiais de emprego público nos EUA falham em contabilizar a força de trabalho contratada por agências semiautônomas, quase públicas, ou mesmo por empresas e organizações da sociedade civil responsáveis pela prestação de serviços públicos terceirizados. Light sugeriu que o tamanho real do setor público americano pode ser até três vezes maior do que as estatísticas oficiais sugerem.
Outra faceta importante a ser considerada é o financiamento indireto do setor público, que ocorre através de reembolsos ou subsídios governamentais a cidadãos para cobrir custos iniciais assumidos por eles. Este é um método comum em países como a Holanda, onde os cidadãos pagam antecipadamente por consultas médicas em prestadores privados, mas são posteriormente reembolsados pelo governo. No Brasil, uma política semelhante é observada em áreas como saúde e educação, onde o governo financia gastos privados por meio de deduções de imposto de renda. Mecanismos dessa natureza ampliam o acesso a serviços, mas reduzem as estatísticas de emprego público ao não envolver a contratação direta ou indireta de mão de obra.
Dadas estas complexidades, como podemos avaliar de maneira precisa a dimensão do setor público? A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu uma metodologia de coleta de dados que visa permitir comparações mais precisas dos indicadores de emprego público entre os países membros. Denominada " Comparação do Emprego no Domínio Público " (CEPD), a metodologia abrange tanto as organizações estatais que produzem bens e serviços públicos quanto organizações privadas financiadas por recursos públicos para o mesmo fim.
Com base na metodologia CEPD, o que importa não é apenas o número de servidores públicos, mas o custo total assumido pelos governos relacionado ao emprego de pessoal em serviços "administrados". Essa abordagem nos permite ver além dos números de servidores públicos e considerar o verdadeiro alcance e custo do setor público. Infelizmente, o Brasil carece de uma base de dados que organize informações dessa natureza, mas a metodologia aponta um caminho a seguir.
Então, o Brasil possui servidores públicos demais? Os dados disponíveis não permitem elaborar uma resposta precisa. A diversidade de formas de contratação e a falta de indicadores comparáveis tornam difícil chegar a uma conclusão definitiva. O que se pode afirmar é que a massa salarial do setor público brasileiro é elevada em comparação aos padrões internacionais, superando as médias em todas as categorias de renda. Proporcionalmente ao PIB, o gasto com salários no setor público ultrapassa todas as médias regionais e alcançou 13,1% em 2015, superando países como Portugal e França.
Para avançar nesse debate, precisamos não apenas de mais dados, mas de uma melhor compreensão de como interpretá-los. Devemos olhar além dos números brutos e procurar entender as ambiguidades e dilemas das estatísticas de emprego no setor público. A estreia da plataforma "República em Dados" representa uma oportunidade valiosa para enriquecer o debate público com mais informações. Ela também serve como lembrete de que, para entender a real dimensão do Estado, é preciso atentar para as nuances, onde a realidade frequentemente se oculta.
Uma nova conversa está no centro do debate público brasileiro desde o lançamento do " República em Dados ", do Republica.org. A plataforma congrega e organiza informações pertinentes sobre o setor público brasileiro, além de oferecer análises descritivas sobre a distribuição regional, perfil de gênero, faixa etária, entre outras variáveis cruciais. As interpretações desses dados provocaram várias alegações questionáveis, uma das quais merece um exame detalhado: a noção de que o Brasil não tem um excesso de servidores públicos.
A referida avaliação se baseia na proporção de servidores públicos em relação à força de trabalho total do país,. Na comparação, o quadro de servidores no Brasil aparece relativamente menor do que em países com níveis de desenvolvimento semelhantes, e significativamente menor do que nos países mais ricos e membros da OCDE. A partir desse comparativo, fica implícita a sugestão de que precisamos de um número bem maior de concursos para compor a máquina pública. No entanto, essa conclusão é, na melhor das hipóteses, precipitada. A simples comparação entre o quantitativo de servidores públicos, é uma métrica que pode ser enganosa e suscetível a distorções por uma variedade de fatores.
Em primeiro lugar, a mensuração exata do número de servidores públicos é problemática. Diferentes formas de contratação e diversas formas de vínculos de trabalho tornam complexa a comparação do número de servidores públicos em diferentes governos.
O exemplo elucidativo da rede de saúde da prefeitura São Paulo revela que 76% dos trabalhadores da saúde municipais são contratados por Organizações Sociais, e portanto não são computados como servidores públicos. Isso se aplica também aos participantes do programa Mais Médicos, que são contratados mediante o pagamento de "bolsas". Esses casos são exemplos de como o número oficial de servidores públicos pode subestimar o verdadeiro tamanho da força de trabalho à disposição do setor público.
Arranjos similares são comuns em outros países. Tomemos a Alemanha e a França como exemplo: ambos países financiam seus sistemas de saúde em proporções equivalentes, mas a Alemanha emprega um número muito inferior de funcionários públicos no setor, optando por contratos com organizações privadas. Diferenças desta natureza distorcem as comparações entre governos. A situação se repete nos Estados Unidos. O estado de Wyoming conta com mais que o dobro de funcionários públicos per capita que estados como Michigan ou Nevada por administrar uma rede de hospitais públicos.
Ainda mais desafiador é a mensuração de contratos "quase-públicos". No Brasil, a Fundação Butantan, uma entidade de direito privado que apoia o Instituto Butantan é um exemplo de como a força de trabalho "oculta" do setor público pode ser significativa. A Fundação é responsável por contratar uma parcela considerável da força de trabalho disponível para o Instituto. Conforme dados de 2021, enquanto o Instituto conta com 461 funcionários, a Fundação emprega 2828. Contudo, os profissionais contratados pela Fundação não são incorporados nas estatísticas oficiais de emprego público.
Este fenômeno foi destacado por Paul Light (autor de " O verdadeiro tamanho do governo ", lançado em 1999), que argumentou que as estatísticas oficiais de emprego público nos EUA falham em contabilizar a força de trabalho contratada por agências semiautônomas, quase públicas, ou mesmo por empresas e organizações da sociedade civil responsáveis pela prestação de serviços públicos terceirizados. Light sugeriu que o tamanho real do setor público americano pode ser até três vezes maior do que as estatísticas oficiais sugerem.
Outra faceta importante a ser considerada é o financiamento indireto do setor público, que ocorre através de reembolsos ou subsídios governamentais a cidadãos para cobrir custos iniciais assumidos por eles. Este é um método comum em países como a Holanda, onde os cidadãos pagam antecipadamente por consultas médicas em prestadores privados, mas são posteriormente reembolsados pelo governo. No Brasil, uma política semelhante é observada em áreas como saúde e educação, onde o governo financia gastos privados por meio de deduções de imposto de renda. Mecanismos dessa natureza ampliam o acesso a serviços, mas reduzem as estatísticas de emprego público ao não envolver a contratação direta ou indireta de mão de obra.
Dadas estas complexidades, como podemos avaliar de maneira precisa a dimensão do setor público? A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu uma metodologia de coleta de dados que visa permitir comparações mais precisas dos indicadores de emprego público entre os países membros. Denominada " Comparação do Emprego no Domínio Público " (CEPD), a metodologia abrange tanto as organizações estatais que produzem bens e serviços públicos quanto organizações privadas financiadas por recursos públicos para o mesmo fim.
Com base na metodologia CEPD, o que importa não é apenas o número de servidores públicos, mas o custo total assumido pelos governos relacionado ao emprego de pessoal em serviços "administrados". Essa abordagem nos permite ver além dos números de servidores públicos e considerar o verdadeiro alcance e custo do setor público. Infelizmente, o Brasil carece de uma base de dados que organize informações dessa natureza, mas a metodologia aponta um caminho a seguir.
Então, o Brasil possui servidores públicos demais? Os dados disponíveis não permitem elaborar uma resposta precisa. A diversidade de formas de contratação e a falta de indicadores comparáveis tornam difícil chegar a uma conclusão definitiva. O que se pode afirmar é que a massa salarial do setor público brasileiro é elevada em comparação aos padrões internacionais, superando as médias em todas as categorias de renda. Proporcionalmente ao PIB, o gasto com salários no setor público ultrapassa todas as médias regionais e alcançou 13,1% em 2015, superando países como Portugal e França.
Para avançar nesse debate, precisamos não apenas de mais dados, mas de uma melhor compreensão de como interpretá-los. Devemos olhar além dos números brutos e procurar entender as ambiguidades e dilemas das estatísticas de emprego no setor público. A estreia da plataforma "República em Dados" representa uma oportunidade valiosa para enriquecer o debate público com mais informações. Ela também serve como lembrete de que, para entender a real dimensão do Estado, é preciso atentar para as nuances, onde a realidade frequentemente se oculta.