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Estado Oculto: o desafio de determinar a quantidade de servidores públicos

Interpretações dos dados publicados pelo República.org fomentam alegações imprecisas, como a de que o Brasil não tem servidores públicos em excesso

Médica segura vacina: 76% dos trabalhadores da saúde municipais em SP são contratados por Organizações Sociais (Louis GENOT, Joshua Howat BERGER/AFP)
Médica segura vacina: 76% dos trabalhadores da saúde municipais em SP são contratados por Organizações Sociais (Louis GENOT, Joshua Howat BERGER/AFP)

Uma nova conversa está no centro do debate público brasileiro desde o lançamento do "República em Dados", do Republica.org. A plataforma congrega e organiza informações pertinentes sobre o setor público brasileiro, além de oferecer análises descritivas sobre a distribuição regional, perfil de gênero, faixa etária, entre outras variáveis cruciais. As interpretações desses dados provocaram várias alegações questionáveis, uma das quais merece um exame detalhado: a noção de que o Brasil não tem um excesso de servidores públicos. 

A referida avaliação se baseia na proporção de servidores públicos em relação à força de trabalho total do país,. Na comparação, o quadro de servidores no Brasil aparece relativamente menor do que em países com níveis de desenvolvimento semelhantes, e significativamente menor do que nos países mais ricos e membros da OCDE. A partir desse comparativo, fica implícita a sugestão de que precisamos de um número bem maior de concursos para compor a máquina pública. No entanto, essa conclusão é, na melhor das hipóteses, precipitada. A simples comparação entre o quantitativo de servidores públicos, é uma métrica que pode ser enganosa e suscetível a distorções por uma variedade de fatores. 

Em primeiro lugar, a mensuração exata do número de servidores públicos é problemática. Diferentes formas de contratação e diversas formas de vínculos de trabalho tornam complexa a comparação do número de servidores públicos em diferentes governos. 

O exemplo elucidativo da rede de saúde da prefeitura São Paulo revela que 76% dos trabalhadores da saúde municipais são contratados por Organizações Sociais, e portanto não são computados como servidores públicos. Isso se aplica também aos participantes do programa Mais Médicos, que são contratados mediante o pagamento de "bolsas". Esses casos são exemplos de como o número oficial de servidores públicos pode subestimar o verdadeiro tamanho da força de trabalho à disposição do setor público.  

Arranjos similares são comuns em outros países. Tomemos a Alemanha e a França como exemplo: ambos países financiam seus sistemas de saúde em proporções equivalentes, mas a Alemanha emprega um número muito inferior de funcionários públicos no setor, optando por contratos com organizações privadas. Diferenças desta natureza distorcem as comparações entre governos. A situação se repete nos Estados Unidos. O estado de Wyoming conta com mais que o dobro de funcionários públicos per capita que estados como Michigan ou Nevada por administrar uma rede de hospitais públicos. 

Ainda mais desafiador é a mensuração de contratos "quase-públicos". No Brasil, a Fundação Butantan, uma entidade de direito privado que apoia o Instituto Butantan é um exemplo de como a força de trabalho "oculta" do setor público pode ser significativa. A Fundação é responsável por contratar uma parcela considerável da força de trabalho disponível para o Instituto. Conforme dados de 2021, enquanto o Instituto conta com 461 funcionários, a Fundação emprega 2828. Contudo, os profissionais contratados pela Fundação não são incorporados nas estatísticas oficiais de emprego público. 

Este fenômeno foi destacado por Paul Light (autor de "O verdadeiro tamanho do governo", lançado em 1999), que argumentou que as estatísticas oficiais de emprego público nos EUA falham em contabilizar a força de trabalho contratada por agências semiautônomas, quase públicas, ou mesmo por empresas e organizações da sociedade civil responsáveis pela prestação de serviços públicos terceirizados. Light sugeriu que o tamanho real do setor público americano pode ser até três vezes maior do que as estatísticas oficiais sugerem. 

Outra faceta importante a ser considerada é o financiamento indireto do setor público, que ocorre através de reembolsos ou subsídios governamentais a cidadãos para cobrir custos iniciais assumidos por eles. Este é um método comum em países como a Holanda, onde os cidadãos pagam antecipadamente por consultas médicas em prestadores privados, mas são posteriormente reembolsados pelo governo. No Brasil, uma política semelhante é observada em áreas como saúde e educação, onde o governo financia gastos privados por meio de deduções de imposto de renda. Mecanismos dessa natureza ampliam o acesso a serviços, mas reduzem as estatísticas de emprego público ao não envolver a contratação direta ou indireta de mão de obra.  

Dadas estas complexidades, como podemos avaliar de maneira precisa a dimensão do setor público? A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu uma metodologia de coleta de dados que visa permitir comparações mais precisas dos indicadores de emprego público entre os países membros. Denominada "Comparação do Emprego no Domínio Público" (CEPD), a metodologia abrange tanto as organizações estatais que produzem bens e serviços públicos quanto organizações privadas financiadas por recursos públicos para o mesmo fim. 

Com base na metodologia CEPD, o que importa não é apenas o número de servidores públicos, mas o custo total assumido pelos governos relacionado ao emprego de pessoal em serviços "administrados". Essa abordagem nos permite ver além dos números de servidores públicos e considerar o verdadeiro alcance e custo do setor público. Infelizmente, o Brasil carece de uma base de dados que organize informações dessa natureza, mas a metodologia aponta um caminho a seguir. 

Então, o Brasil possui servidores públicos demais? Os dados disponíveis não permitem elaborar uma resposta precisa. A diversidade de formas de contratação e a falta de indicadores comparáveis tornam difícil chegar a uma conclusão definitiva. O que se pode afirmar é que a massa salarial do setor público brasileiro é elevada em comparação aos padrões internacionais, superando as médias em todas as categorias de renda. Proporcionalmente ao PIB, o gasto com salários no setor público ultrapassa todas as médias regionais e alcançou 13,1% em 2015, superando países como Portugal e França.  

Para avançar nesse debate, precisamos não apenas de mais dados, mas de uma melhor compreensão de como interpretá-los. Devemos olhar além dos números brutos e procurar entender as ambiguidades e dilemas das estatísticas de emprego no setor público. A estreia da plataforma "República em Dados" representa uma oportunidade valiosa para enriquecer o debate público com mais informações. Ela também serve como lembrete de que, para entender a real dimensão do Estado, é preciso atentar para as nuances, onde a realidade frequentemente se oculta.