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Dengue: "A ideia de soberania sanitária pode ter efeitos contraproducentes", diz Bruno Filardi

Além de membro do time de colunistas do Instituto Millenium, Bruno Filardi é especialista em Oncologia e Oncogenética pelo HC/USP de Ribeirão Preto

Aedes aegypti dengue (Smith Collection/Getty Images)
Aedes aegypti dengue (Smith Collection/Getty Images)

À medida que o Brasil enfrenta um aumento significativo nos casos de dengue, colocando em evidência os desafios de saúde pública e a necessidade urgente de estratégias eficazes de vacinação, o Instituto Millenium realizou uma entrevista com Bruno Filardi, que além de oncologista e oncogeneticista da USP-Ribeirão, é colunista do instituto. Este diálogo ocorre em um contexto onde o Brasil se notabiliza por ser o primeiro país a ofertar no sistema público de saúde uma vacina contra a dengue. Com a vacina Qdenga aprovada pela Anvisa e a antecipação de uma nova vacina pelo Instituto Butantan, a entrevista com Filardi explora as decisões governamentais sobre a importação e distribuição das vacinas, bem como as expectativas para o futuro da imunização contra a dengue no país. 

Filardi discute aspectos críticos relacionados à campanha de vacinação, como a importância de acelerar a produção de vacinas e expandir seu acesso por meio da melhoria do ambiente de negócios, criando condições para uma atuação mais enérgica da iniciativa privada, considerando as limitações operacionais e logísticas de organizações estatais em prover as vacinas em quantidade necessária. A conversa também aborda o perigo da politização exacerbada do debate sobre saúde pública e a necessidade de estratégias baseadas em evidências para combater efetivamente a dengue. 

Instituto Millenium: Considerando a disponibilidade da vacina Qdenga, já aprovada pela Anvisa e com eficácia comprovada, e a vindoura vacina do Instituto Butantan, que expectativas você tem sobre o combate à dengue no Brasil nos próximos anos? 

Bruno Filardi: Sou bastante otimista, especialmente no curto a médio prazo, olhando para os próximos dois a três anos. Com a introdução da vacina Qdenga, desenvolvida pela Takeda, e a expectativa pela vacina do Instituto Butantan, temos razões para sermos esperançosos. A produção da vacina Qdenga, no entanto, enfrenta limitações de capacidade, com uma produção anual modesta e, até onde sabemos, não há acordos firmados para a transferência de tecnologia ou a instalação de uma fábrica no Brasil que poderia garantir uma disponibilidade mais ampla da vacina. 

A dengue permanece uma doença endêmica no Brasil, com surtos e picos epidêmicos recorrentes, afetando desproporcionalmente as áreas mais pobres e periféricas. Essas regiões sofrem não só com a doença mas também com o acesso limitado aos serviços de saúde, que é crucial para o tratamento eficaz da dengue, principalmente através da hiperhidratação, um método simples mas vital no manejo da doença. 

As vacinas representam uma esperança significativa, prometendo não apenas reduzir a incidência da dengue sintomática devido à sua alta eficácia, mas também potencialmente diminuir a transmissão do vírus. Isso é fundamental, especialmente para as populações mais vulneráveis que têm sido as mais afetadas pela doença. A eficácia semelhante das vacinas Qdenga e do Butantan, com intervalos de confiança que demonstram uma proteção substancial contra a dengue sintomática, é um indicativo promissor de que podemos estar no caminho certo para controlar, e possivelmente erradicar, a dengue como uma doença endêmica no Brasil. Portanto, as perspectivas para o controle da dengue são muito positivas, com a expectativa de que, em um futuro não muito distante, possamos ver a doença sendo significativamente mais controlada. 

IM: Apesar da disponibilidade da vacina Qdenga, o Ministério da Saúde inicialmente decidiu aguardar o desenvolvimento de uma vacina nacional. Diante do aumento significativo de casos e mortes por dengue nos últimos anos, qual sua avaliação sobre o risco da decisão do Ministério da Saúde de não incorporar a vacina Qdenga imediatamente ao SUS? 

BF: Sobre a alegada decisão do Ministério da Saúde de aguardar por uma vacina nacional em vez de incorporar imediatamente a vacina Qdenga ao SUS, há uma discussão baseada em informações que foram divulgadas pela imprensa em julho do ano passado. Após isso, algumas notícias sugeriram que o governo poderia ter reconsiderado essa posição diante do aumento de casos e mortes por dengue. No entanto, é importante notar que essa informação, veiculada por diferentes veículos de imprensa, foi seguida de uma onda de críticas ao governo que, muitas vezes, escondiam uma agenda político-ideológica. 

Uma nota oficial do governo, datada de 3 de julho e atualizada no dia seguinte, esclareceu que a estratégia de fortalecer a indústria nacional de vacinas não seria um impedimento para o acesso da população a imunizantes eficazes, incluindo os importados. A nota afirmava que a adoção de qualquer vacina contra a dengue se basearia em critérios científicos e tecnológicos, conforme definido pela legislação, para assegurar o acesso público. 

Essa posição oficial do governo contradiz as informações inicialmente divulgadas, negando que a priorização de uma vacina nacional sobre a Qdenga constitua uma barreira ao acesso a tratamentos eficazes contra a dengue. Dada essa negativa, e sem evidências concretas que comprovem o contrário, é preciso cautela antes de emitir um julgamento negativo sobre a decisão do Ministério da Saúde. A prioridade deve ser sempre a segurança e o bem-estar da população, livre de quaisquer considerações ideológicas ou partidárias. 

IM: A aposta na produção nacional de vacinas é uma estratégia para garantir o que o governo chama de "soberania" e "segurança" sanitária - além de que uma vacina como a Qdenga tem um preço alto. No contexto atual, como você vê a importância dessa política para o Brasil? 

BF: Sobre a política de apostar na produção nacional de vacinas como estratégia de soberania e segurança sanitária, há diversos pontos a considerar, especialmente levando em conta o custo elevado de vacinas como a Qdenga. É fundamental questionar se a produção nacional realmente garante essa soberania e segurança. A experiência com a Fiocruz, que teve dificuldades em cumprir a promessa de produção da vacina da AstraZeneca, levanta dúvidas sobre a eficácia dessa estratégia. 

Pessoalmente, acredito que poderia ser mais vantajoso criar um ambiente de negócios favorável que permita a várias empresas privadas produzir vacinas, possibilitando assim a existência de produtos nacionais sem que o governo tenha de intervir diretamente na produção. A falta de segurança jurídica e a negação de um ambiente competitivo livre podem ser prejudiciais para a indústria como um todo. 

Quanto ao preço, a comparação entre os custos das vacinas produzidas pelo Butantan e o valor pago pelo Ministério da Saúde pela vacina Qdenga sugere que, embora a Qdenga possa ser mais cara, a diferença de preço pode não ser tão significativa quanto se imagina. Isso sem considerar a possibilidade de negociações que poderiam reduzir o custo. 

A ideia de soberania sanitária, apesar de bem-intencionada, pode ter efeitos contraproducentes na prática. O alto custo de instituições como o Butantan e a Fiocruz, e a preferência do governo por essas entidades, podem limitar o desenvolvimento de pesquisa e biotecnologia no Brasil a universidades e fundações. Isso dificulta o surgimento de novas iniciativas no setor privado que poderiam contribuir para a produção nacional de vacinas, como a Qdenga. Portanto, vejo a necessidade de repensar essa política para favorecer um ambiente mais aberto e competitivo que possa, de fato, beneficiar a soberania e a segurança sanitária do país. 

IM: O processo de análise e aprovação de uma nova vacina pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) é conhecido por ser rigoroso e demorado. Como especialista, qual sua visão sobre esse processo, especialmente no contexto urgente de vacinação contra a dengue? O que poderia ser feito para tornar esse tipo de procedimento mais ágil? 

BF: A análise e aprovação de novas vacinas pela Conitec são conhecidas por sua rigidez e lentidão, um processo que, embora necessário para garantir segurança e eficácia, muitas vezes se torna um obstáculo em situações de urgência, como a vacinação contra a dengue. A discussão em torno dessa questão muitas vezes é influenciada por narrativas políticas, que buscam atribuir responsabilidades de acordo com interesses partidários, independentemente do governo em questão. 

Historicamente, a Anvisa leva anos para autorizar o uso de novas drogas no Brasil, mesmo aquelas comprovadamente eficazes em outros países. Após a aprovação pela Anvisa, a Conitec realiza uma avaliação de custo-efetividade antes de recomendar a incorporação pelo governo. No caso específico da vacina contra a dengue, a rapidez com que a Anvisa e a Conitec atuaram foi notável, desmentindo acusações de negligência por parte do Ministério da Saúde atual. 

Para aumentar a celeridade do processo, especialmente para vacinas, seria possível estabelecer mecanismos mais ágeis de incorporação, diferenciando-os dos aplicados a outras medicações. A experiência com a COVID-19 mostrou que é viável acelerar a aprovação de vacinas quando necessário. Assim, a reformulação dos processos da Conitec e da Anvisa, visando uma maior agilidade, especialmente em produtos de interesse nacional, é recomendável. 

Ademais, a promoção de um ambiente de negócios mais livre e a segurança jurídica são essenciais para fomentar o desenvolvimento de tecnologia nacional, incluindo a produção de vacinas. Isso não só aceleraria o processo de incorporação de novas tecnologias de saúde mas também contribuiria para a redução de custos, beneficiando o sistema de saúde como um todo. A criação de um ambiente que favoreça a inovação e a competição, sem protecionismos governamentais excessivos, permitiria que novas startups e empresas contribuíssem significativamente para o avanço tecnológico no Brasil. 

IM: Com a dengue representando uma crescente ameaça à saúde pública no Brasil, quais estratégias e prioridades você recomendaria para o Ministério da Saúde adotar nos próximos anos para a vacinação contra a dengue? 

BF: Para combater a dengue, a primeira recomendação é revisar a limitação de idade para a vacinação estabelecida pela Anvisa, que atualmente vai até os 60 anos. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA), por exemplo, não impõe um limite superior de idade, considerando a maior vulnerabilidade dos idosos à doença. Se necessário, sugiro a realização de um estudo de fase 4 no Brasil para validar a segurança e a imunogenicidade da vacina em idosos e, com isso, expandir a indicação etária da vacina, seguindo o exemplo da EMA. 

Além disso, é crucial acelerar a obtenção de mais doses de vacina, especialmente agora que temos a vacina do Butantan, equivalente em eficácia à Qdenga, mas com a vantagem de ser administrada em dose única. A estratégia de distribuir as doses disponíveis considerando fatores sociais foi acertada, mas é necessário aumentar a quantidade de doses para atender a demanda. 

As campanhas educativas sobre prevenção, como evitar água parada, apesar de importantes, mostraram ter eficácia limitada diante dos números de casos e mortes por dengue. Assim, a prioridade do governo deve ser assegurar a vacinação da população, explorando a capacidade de produção do Instituto Butantan para ampliar o acesso à vacina. 

Sobre a restrição de idade, a revisão dessa política é urgente. Não precisamos esperar por estudos extensos; um estudo menor, de curta duração, poderia rapidamente fornecer os dados necessários para a segurança da vacinação em pessoas acima de 60 anos. Se a EMA já adotou essa prática, poderíamos considerar uma abordagem similar, garantindo que mais brasileiros estejam protegidos contra a dengue.