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De cada qual, segundo sua capacidade

Modelo brasileiro busca promover certo equilíbrio, onde responsabilidades e competências são divididas de maneira igualitária

Brasilia - DF 

Foto: Leandro Fonseca
data: 16/08/2022 (Leandro Fonseca/Exame)
Brasilia - DF Foto: Leandro Fonseca data: 16/08/2022 (Leandro Fonseca/Exame)

O federalismo no Brasil se destaca por suas características únicas, especialmente pela inclusão dos municípios como entes federativos, além da União, os Estados e o Distrito Federal. Nossa configuração singular distribui a autonomia por todo o território nacional, sem estabelecer hierarquia entre os entes, conforme reforçado pela Constituição Federal do Brasil. É um modelo que busca promover certo equilíbrio, onde responsabilidades e competências são divididas de maneira igualitária. 

A prática do federalismo no Brasil, contudo, revela desafios significativos que evidenciam uma distância entre a autonomia legalmente prevista e a capacidade efetiva dos entes federativos de exercê-la. Os mais de cinco mil entes federativos do Brasil não possuem as mesmas capacidades, colocando em xeque o princípio de igualdade e responsabilidade compartilhada. Defensores do federalismo argumentam que tal desequilíbrio aponta para a necessidade de um modelo de federalismo cooperativo mais forte, que assegure os meios necessários para que os entes federativos possam cumprir suas funções eficientemente, garantindo não só autonomia de auto-organização e autogoverno, mas também alinhamento de recursos com responsabilidades. 

Devido à sua proximidade com as realidades enfrentadas pela população, os governos locais são vistos como essenciais para promover o bem-estar coletivo.. Eles teriam, assim, uma capacidade potencialmente maior de avaliar e usar recursos eficientemente, o que é fundamental para o desenvolvimento econômico e para enfrentar desafios sociais nas comunidades. O governo central, por outro lado, é frequentemente percebido como distante e menos apto a fornecer soluções precisas para as necessidades locais. 

Propostas para aprimorar o federalismo brasileiro tentam alinhar recursos e capacidades com as competências dos diferentes níveis de governo. Proponho inverter essa perspectiva: em vez de adaptar recursos a competências fixas, deveríamos alinhar as competências às capacidades e recursos reais. Teríamos assim uma distribuição mais justa e eficiente de responsabilidades, garantindo que cada ente federativo possa executar suas funções de forma eficaz e autônoma, o que representa um avanço importante para um federalismo que reflita melhor a realidade brasileira. É nesse contexto que advogo pela introdução do conceito de descentralização assimétrica no sistema de relações intergovernamentais. 

A reflexão sobre a descentralização assimétrica no Brasil questiona a uniformidade administrativa vigente, exemplificada pelo caso de Sobral e suas práticas educacionais inovadoras. Por que insistimos em tratar entidades tão distintas de maneira igual, quando exemplos como Sobral demonstram que abordagens flexíveis, como seu modelo de contratação de professores, podem levar a resultados notáveis? Esse questionamento desafia a noção de um "regime jurídico único" e sugere a eficácia de estratégias descentralizadas e adaptativas. 

O caso de Sobral evidencia que a descentralização assimétrica já ocorre na prática em várias áreas da administração pública brasileira, sem uma declaração formal dessa abordagem. Isso é observado no novo marco regulatório do saneamento básico e na gestão de resíduos sólidos, onde municípios menores têm permissão para desenvolver planos simplificados. Tal diferenciação reconhece, implicitamente, a diversidade de capacidades entre os municípios e sugere uma abordagem pragmática que valoriza adaptações locais, indicando um caminho para a expansão dessa flexibilidade para outras áreas governamentais. 

A premissa de igualdade entre municípios e estados no Brasil, apesar de aparentemente justa, falha em promover uma governança eficaz e adaptável às complexas realidades locais. A descentralização assimétrica surge como uma solução, convidando a uma reflexão crítica sobre a distribuição de competências e recursos, e sugerindo a necessidade de uma gestão mais ajustada às diversas realidades brasileiras. 

A descentralização assimétrica é uma tendência mundial. Um bom exemplo vem da França, que introduziu o "direito à diferenciação territorial" ao aprovar, em 2022, a Lei 3D, de descentralização, diferenciação e desconcentração. A lei institui mecanismos para que as regiões francesas adquiram competências específicas baseadas em suas capacidades, incentivando o ajuste de leis e regulamentos que façam com que estes reconheçam suas peculiaridades, valorizando a diversidade regional e buscando uma congruência entre competências e recursos. A reflexão provocada pelo ex-primeiro ministro francês Édouard Philippe, "a uniformidade não é mais a condição para nossa unidade", sugere a possibilidade de o Brasil seguir um caminho semelhante, priorizando a flexibilidade e adaptabilidade local em detrimento de uma uniformidade restritiva. A Lei 3D foi inspirada, entre diferentes iniciativas, pela Lei sobre Áreas Metropolitanas de 2014, que já distinguia cidades como Paris, Lyon e Aix-Marseille com governança e poderes tributários únicos, marca um esforço significativo não só de reforma, mas de reinvenção das práticas de governança local.  Uma reforma similar foi implementada na Itália em 2014 (“Legge Delrio”), introduzindo uma nova estrutura legal para a governança diferenciada em dez grandes áreas metropolitanas, incluindo cidades notáveis como Roma, Milão e Veneza. Esta iniciativa reconheceu a singularidade de cada metrópole, concedendo-lhes maior autonomia para inovar e atender às necessidades específicas de suas comunidades. Mais quatro cidades foram adicionadas posteriormente, refletindo a intenção de adaptar a governança às necessidades e características específicas dessas áreas​. 

Assim também, desde 1985, a Dinamarca adotou o inovador conceito de "Municípios Livres" (frikommune), permitindo a certos municípios isenção de regulamentações específicas em áreas como educação, saúde e assistência aos idosos para testar novas abordagens administrativas, visando soluções mais eficientes e menos burocráticas. Iniciada sob uma administração de centro-direita, a primeira fase (1985-1993) envolveu 30 municípios selecionados para fornecer insights sobre como desburocratizar a administração e a prestação de serviços em nível municipal. A iniciativa foi revitalizada durante um governo social-democrata em 2011, com nove municípios selecionados (entre 98) e que realizaram 173 experimentos de gestão. Com renovações constantes e avaliações periódicas, a política visa expandir práticas bem-sucedidas a todos os municípios e introduz programas para novos municípios implementarem projetos específicos, demonstrando um compromisso contínuo com a adaptação e inovação administrativa. A experiência internacional mostra que respeitar as particularidades regionais através da governança adaptativa pode ser eficaz, sugerindo a descentralização assimétrica como estratégia promissora para o Brasil. Ao valorizar singularidades regionais, essa abordagem pode ajudar a superar barreiras locais e a desbloquear eficiência e inovação, realçando o potencial das cidades e estados brasileiros. 

O verdadeiro desafio da descentralização assimétrica está em sua implementação, de modo que as diferenças locais sejam aproveitadas como ativos para o progresso. Isso requer uma governança que reconheça e capitalize essas singularidades, promovendo justiça, eficiência e adaptabilidade na administração pública. Adotar essa flexibilidade e inovação é crucial para atender às necessidades únicas de cada comunidade, enfatizando a importância de adaptar políticas em um mundo que evolui rapidamente.