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Controle político da imprensa: pois não é que flagraram Teresa Kirchner num momento de doçura?

Eu não entendo como em certos assuntos os argentinos, um povo tão culto, às vezes se expressa de maneira tão tosca. Coisas que no Brasil requerem fórmulas indiretas, eufemismos e até disfarces, lá são ditas sem a menor sutileza. Tome-se como exemplo a questão da imprensa; das ameaças, melhor dizendo, que ultimamente se tem feito à imprensa. A dificuldade que certos partidos e governos sentem em conviver com uma imprensa […] Leia mais

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Instituto Millenium

Publicado em 21 de outubro de 2010 às, 20h14.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 10h58.

Eu não entendo como em certos assuntos os argentinos, um povo tão culto, às vezes se expressa de maneira tão tosca. Coisas que no Brasil requerem fórmulas indiretas, eufemismos e até disfarces, lá são ditas sem a menor sutileza.

Tome-se como exemplo a questão da imprensa; das ameaças, melhor dizendo, que ultimamente se tem feito à imprensa. A dificuldade que certos partidos e governos sentem em conviver com uma imprensa livre. A insistência em querer amordaçá-la.

No Brasil, isso se diz com elegância. Fala-se em assegurar o “controle social da mídia”, ou, mais extensamente, estabelecer “mecanismos sociais para o controle da mídia”.

Há, como se percebe, certo estilo. Na Argentina, não há.

Anteontem (19/10), a presidente argentina Cristina Kirchner discorreu sobre a imprensa ao discursar numa solenidade perto de Buenos Aires. No início, eu até fiquei animado. Tive a impressão de que ela se permitira um momento de sincera subjetividade:

“Às vezes penso se não seria importante nacionalizar – não estatizar – os meios de comunicação para que adquiram consciência nacional e defendam os interesses do país – não os do governo”, disse Teresa Cristina, segundo o relato feito pelo jornal “Clarín” e reproduzido pelo “Estadão”.

Nacionalizar, não estatizar; interesses do país, não os do governo. Parece que até aqui ela procurava nuances e fazia o possível para se exprimir até com certa doçura.

Mas o solilóquio presidencial não durou muito. Como se subitamente despertasse, a presidente logo acusou os jornais (cito o “Estadão”) “que reclamam do crescimento do país quando [….] foram cúmplices da política de entrega do patrimônio nacional promovida por governos anteriores”.

Ainda segundo a matéria do “Clarín” e do “Estadão”:

“A presidente disse ainda que em outros países a imprensa não faz esse tipo de crítica aos governos. A má relação da presidente com a imprensa, que sempre foi tensa, piorou nos últimos meses. Em agosto, Cristina afirmou que pretendia adquirir o controle da Papel Prensa, a principal fabricante de papel jornal do país, da qual o “Estado”, o grupo “Clarín” e o “La Nación” são acionistas”.

No Brasil, como disse, essa questão é tratada de outra forma. O que se afirma é que o PT e os movimentos que gravitam em torno dele vão “construir uma proposta” .

Poucas semanas atrás, em Salvador, José Dirceu esclareceu que sua birra é com “o abuso do direito de informar”.

E Lula, justiça se lhe faça, não se cansa de elogiar a imprensa. Está sempre louvando a inventividade dos jornais. Ao ver dele, os escândalos e desmandos que continuamente vêm a público atestam de maneira irretorquível a exuberância imaginativa da imprensa. É tudo ficção.

Publicado no blog de Bolívar Lamounier no portal da revista “Exame”