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Clima, liberalismo e a esperança teimosa dos incentivos certos

A queima de combustíveis fósseis é o principal motor das mudanças climáticas, mas os incentivos econômicos ainda são favoráveis à sua continuidade

Homem caminha por lago seco ma cidade indiana de Bandai (AFP)

Homem caminha por lago seco ma cidade indiana de Bandai (AFP)

Publicado em 10 de dezembro de 2025 às 21h12.

Uma das passagens mais elegantes de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, é aquela em que ele diz que não é “da benevolência do padeiro, do cervejeiro ou do açougueiro que esperamos nosso jantar”, mas do cuidado que cada um deles tem com o próprio interesse. Smith não escreveu isso como crítica moral, e sim como explicação de por que as sociedades modernas funcionam. Nós não avançamos porque as pessoas acordam movidas por altruísmo, mas porque as trocas, os incentivos e a interdependência criam um arranjo onde cada ação individual, buscando resolver problemas privados, gera resultados coletivos.

Na arena internacional, essa lógica fica menos elegante. Bretton Woods não levou anos para ser negociado por falta de bons economistas à mesa, mas porque dependia de ciclos eleitorais, crises cambiais, disputas de poder e interesses domésticos conflitantes. Coordenação entre países é lenta, sujeita a vetos e, muitas vezes, frustrante. As COPs herdaram esse DNA: longos textos negociados linha a linha e, consequentemente, muita energia despendida para mover milímetros.

No fundo, a discussão climática esbarra no mesmo tipo de problema que já analisei aqui ao falar da “corrida pela última gota justa de petróleo”: sabemos que a queima de combustíveis fósseis é o principal motor das mudanças climáticas, mas os incentivos econômicos ainda são amplamente favoráveis à sua continuidade.

Vale um pouco de realismo. Hoje, petróleo, gás e carvão ainda respondem pela maior parte da energia que move transporte, indústria pesada e geração elétrica em grande parte do mundo. Não se trata apenas de preferência por fósseis. É resultado de décadas de investimentos em refinarias, gasodutos, termelétricas, frotas, portos e cadeias logísticas inteiras desenhadas para esse modelo. Essa infraestrutura foi planejada para durar 30, 40 anos. Nenhum parágrafo de declaração diplomática é suficiente, sozinho, para antecipar esse relógio.

A transição energética também não é uma simples troca de usinas. Alguns países já conseguem vislumbrar matrizes elétricas quase inteiramente renováveis, combinando hídrica, solar, eólica e, em alguns casos, nuclear. Mas uma coisa é descarbonizar a eletricidade de um país com condições favoráveis; outra é fazer essa transição em escala global, incluindo siderurgia, cimento, aviação, transporte marítimo e regiões que ainda dependem de carvão barato. Quando ampliamos a lente, deixa de ser óbvio quais tecnologias, na maturidade atual, conseguem assumir integralmente o lugar dos fósseis. Isso reforça, e não diminui, a necessidade de fortes investimentos em pesquisa e desenvolvimento, em novas rotas tecnológicas e em soluções de armazenamento e flexibilidade. Além disso, a transição exige redes de transmissão mais robustas, eletrificação de processos hoje dependentes de combustíveis líquidos e mudanças em mobilidade e logística. Em países com finanças públicas pressionadas e custo de capital alto, isso significa disputar recursos escassos com saúde, educação, saneamento, segurança pública. Falar em “substituir fósseis” sem olhar para essas restrições é trocar diagnóstico econômico por voluntarismo.

Se usarmos a lente de Adam Smith, a pergunta relevante não é por que o mundo ainda não abandonou os combustíveis fósseis, mas quais incentivos continuam tornando racional insistir neles. O aumento dos gases de efeito estufa na atmosfera é resultado de uma externalidade negativa clássica: quem emite captura os benefícios privados da energia barata, enquanto os custos são difusos, globais e muitas vezes retardados no tempo. Enquanto esse descompasso persistir, faz sentido econômico, no curto prazo, tratar a atmosfera como depósito gratuito de carbono.

A mudança começa quando o risco climático deixa de ser nota de rodapé e passa a entrar nas contas de quem decide onde colocar dinheiro. Bancos que financiam projetos com alta exposição a regulações futuras, a tecnologias concorrentes ou a eventos extremos precisam explicar como esses ativos não se tornarão sucata antecipada. Investidores institucionais que carregam participações relevantes em empresas intensivas em carbono já são pressionados a apresentar estratégias de transição críveis, sob pena de verem seu próprio risco reputacional e financeiro aumentar. Seguradoras revisam prêmios e coberturas de acordo com a localização física de ativos, a vulnerabilidade a desastres e a dependência de cadeias fósseis.

Em termos simples: quando o risco climático fica visível, ele entra no preço. E, quando entra no preço, altera incentivos. Projetos fósseis de longa maturação deixam de carregar apenas risco de mercado. Passam a embutir risco regulatório, tecnológico e de demanda: novas metas de emissões, padrões mais exigentes de transparência, eventual precificação de carbono, mudança de preferências de consumidores e investidores. Do outro lado, projetos de energia renovável, eficiência energética e infraestrutura associada começam a ser percebidos como formas de reduzir exposição a esses riscos, ainda que enfrentem desafios de custo de capital e de escala.

Isso não significa que a transição acontecerá sozinha. Significa que insistir em ignorar esses fatores tende a se tornar, progressivamente, mau negócio. Bancos centrais e reguladores financeiros começam a explorar testes de estresse climático; taxonomias climáticas tentam separar atividades alinhadas ou não à transição; acionistas ativistas disputam espaço com perfis mais tradicionais nas assembleias. Nada disso é garantia de alinhamento automático com as metas do Acordo de Paris, mas muda a qualidade da conversa dentro dos conselhos de administração e dos comitês de crédito.

Nesse contexto, talvez seja útil ajustar nossas expectativas em relação às COPs. Em vez de esperar que um único texto “mate” os combustíveis fósseis por decreto, faz mais sentido enxergar esses fóruns como produtores de sinais de longo prazo: metas, trajetórias e compromissos que alimentam a percepção de risco e orientam, aos poucos, os modelos de avaliação de investimento e financiamento. Quanto mais claros e consistentes forem esses sinais, mais fácil será justificar, dentro das instituições financeiras, alterações em prazos, condições e prioridades.

A transição energética será desorganizada se os incentivos forem ignorados até o limite e uma combinação de choques regulatórios, tecnológicos e físicos obrigar mudanças abruptas. Pode ser menos caótica se esses mesmos incentivos forem ajustados com antecedência, permitindo que ativos sejam amortizados, redes reforçadas, trabalhadores requalificados e novos modelos de negócio testados em escala crescente. Trata-se, portanto, de um convite a um realismo produtivo. Em vez de apostar todas as fichas na próxima frase de efeito em uma COP, faz mais sentido acompanhar como, à medida que o custo real dos combustíveis fósseis aparece, balanços, relatórios de risco e decisões de crédito e prêmios de seguros passam naturalmente a incorporá-lo. Quando esse ajuste acontece, a política climática deixa de ser apenas disputa de narrativas e passa a ser, também, disputa de planilhas. E, nesse terreno, os incentivos tendem a falar mais alto do que qualquer comunicado final.