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Brasil, o país da energia barata e da conta de luz cara

A sociedade é penalizada pelo elevado custo de aquisição da energia pelas empresas e pela pesada conta de luz paga pelas famílias

A sociedade é penalizada pelo elevado custo de aquisição da energia pelas empresas e pela pesada conta de luz paga pelas famílias (foto/Getty Images)
A sociedade é penalizada pelo elevado custo de aquisição da energia pelas empresas e pela pesada conta de luz paga pelas famílias (foto/Getty Images)

Por Cristiane Alkmin J. Schmidt

Lucien Belmont, da União pela Energia, afirmou que, apesar de o Brasil gerar energia barata, a sociedade é penalizada duplamente: tanto pelo elevado custo de aquisição da energia pelas empresas, o que eleva o preço de seus produtos para o consumidor; quanto pela pesada conta de luz paga pelas famílias. Tudo isso se deve aos subsídios inexplicáveis e às políticas ineficientes vigentes no setor. O PL 11.247/18, de iniciativa do Senado e que acaba de ser aprovado na Câmara, acirrará sobremaneira estas irracionalidades, caso a Casa originadora não volte ao texto original. Em 2024, as tarifas estaduais podem aumentar em até 15%, acima da inflação prevista de 3,9%. Oxalá o nosso Conselho Federativo escute seus eleitores. 

O PL 11.247 cria o marco legal das usinas eólicas offshore (em alto-mar). Hoje, há mais de 100 pedidos de instalação aguardando aprovação no IBAMA, que agregariam 180 GW em 10 anos à matriz do país. O tema é controverso por ao menos quatro razões. A primeira, porque há espaço de geração eólica onshore, que é mais barata do que a offshore. A segunda, porque há excesso de oferta no sistema, com os reservatórios alcançando volumes históricos. A terceira, porque 90% da geração de eletricidade no país provém de fontes renováveis: energia hidrelétrica (62%), eólica (12%), biomassa (8%) e solar (4,4%), tornando menos necessária a geração eólica offshore (diferentemente de países que têm matrizes “sujas”). A quarta, porque é uma alternativa tecnológica em severa crise global, com custos majorados em 40% desde 2019, por conta da inflação e dos juros mais elevados, tornando projetos inviáveis, especialmente os que não receberam subsídios para arcar com esses custos adicionais ou aqueles que, por causa de contratos feitos, não podem repassar estas despesas extras aos preços. 

Conquanto dita matéria não seja consenso entre os especialistas sobre a sua pertinência e/ou urgência no Brasil e ainda que a crise internacional setorial não tenha afetado o Brasil (ainda que possa adiar projetos de empresas que aguardam as normas sobre leilão de cessão de uso de áreas no mar); o que causa maior preocupação é o comportamento dos deputados na votação na Câmara. O PL foi aprovado por 403 votos, com apenas 16 votos contra. A maioria tão expressiva se explica pelo fato de que ele acabou sendo um repositório de concessões a inúmeros pleitos difusos, acatados sem a devida transparência. Foram diversos jabutis, quase todos pinçados de 179 PLs e apensados ao PL11.247. Não houve discussão prévia. Se aceitos, essas emendas trarão mudanças no status quo legal e regulatório em temáticas que nada têm a ver com o objetivo do PL original (regular eólicas offshore), redundando em incertezas, ineficiências, custos desnecessários e irracionalidades jurídicas e econômicas para todo o setor de energia elétrica. 

Se aprovados, os novos subsídios e as novas reservas de mercado resultarão em custo estimado em até R$ 40 bi por ano até 2050, cerca de 10% do custo atual total da geração de energia elétrica, que é de R$ 350 bi. Fatalmente estes dispêndios serão repassados à conta de luz do cidadão, que nem tem ideia de quantos encargos e tributos ele paga em sua tarifa mensal, como, por exemplo, a Conta de Desenvolvimento Energético, que aumentou de R$ 16 bi em 2017 para R$ 37 bi em 2024 e deve subir para R$ 42 bi em 2025. Igualmente, serão afetados os que têm seu próprio negócio em casa, para os quais a energia elétrica é um custo importante. É brincar de Robin Hood às avessas. Difícil de acreditar. Especialmente quando se trata de um país em desenvolvimento, que apresenta grave desigualdade de renda e onde 70% dos trabalhadores ganham até dois salários-mínimos. 

Dentre os jabutis2, há um que merece destaque: a prorrogação de contração, de 2028 para 2050, de térmicas a carvão, com custo de R$ 5 bi/ano, a despeito de ser uma das fontes mais poluentes e geradora de gases de efeito estufa. É uma medida que coloca o Brasil na contramão da política de transição energética para fontes limpas e da descarbonização, e que expõe o país a uma situação pouco estratégica, por ser um caminho desnecessário, dadas as opções renováveis disponíveis. 

Ao invés de perquirir por soluções que busquem a diminuir o custo-Brasil, de focar na satisfação do consumidor, de trazer ao debate novas políticas com fundamentação técnica, de introduzir ações públicas que imprimam maior competitividade, de apresentar estudos com transparência e de desenhar incentivos econômicos que atraiam mais investimentos privados, esses 403 deputados (quase 80%!) optaram por agradar poucos brasileiros e seus interesses particularistas. Como a literatura aponta, instituições fortes promovem crescimento econômico. Estabilidade regulatória, segurança jurídica, reguladores não capturados, legislativo representativo da maioria e livre concorrência são antídotos contra o populismo e remédios que fomentam o desenvolvimento. Todos estes requisitos, contudo, foram desconsiderados naquela deliberação. 

Não por menos, a Abrace Energia (Associação dos grandes consumidores de energia), a Frente Nacional dos Consumidores de Energia, o grupo União pela Energia, a EPBR, especialistas do setor e jornalistas têm alertado acerca dos problemas técnicos, econômicos e jurídicos deste PL. Mais ainda. Quinze especialistas se manifestaram contrariamente às emendas inseridas na proposição. O Brasil, dizem eles, não precisa de subsídios para a expansão de sua matriz elétrica, pois tem potencial de gerar energia por múltiplas fontes: solar, eólica, hidráulica, biomassa, gás natural, nuclear etc., todas competitivas por seus próprios atributos. 

A frase “no Brasil até o passado é incerto” – de autoria do ex-ministro Pedro Malan ou do ex-presidente do BCB Gustavo Loyola – se consolidou como um triste retrato do que ocorre no país. Afinal, é comum regras serem alteradas à revelia de análises técnicas, destruindo a tão necessária previsibilidade legal, econômica e financeira. E, pior, afetando situações já assentadas no passado. 

O Brasil tem a maior reserva de água doce do mundo e potencial em oferecer energia limpa, segura, barata e diversificada, tornando o país em uma das maiores referências no setor de energia. Essa é, aliás, uma importante agenda para ajudar a reverter a desindustrialização no país. O PL11.247 deveria, destarte, se limitar ao tema proposto originalmente: regulamentar a geração de energia eólica offshore, abandonando todas as emendas que encarecem o uso da energia elétrica pelo brasileiro, que precisa da proteção do Estado sobre seus direitos difusos para não sofrer abuso de poder econômico, legal ou de lobby. Isso só pode ocorrer pela via da boa regulação ou por políticas públicas bem desenhadas; tudo liderado por um legislativo republicano. 

Senadores: fiquem atentos. A sociedade está em alerta máximo. Acalentar lobbies vai de encontro ao bem-estar de 156,4 milhões de eleitores e na direção da perda de voto. Queremos um Brasil de energia e conta baratas. Não é pedir muito, né?