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Barraco em Nova York

É uma injustiça o que o PT está fazendo com Dilma Rousseff. A cara do cara está numa espécie de quarentena. Só fala texto escrito ou decorado, privando o povo de sua evolução verbal exuberante. É uma pena. Numa eleição que se anuncia modorrenta, dividida entre dois candidatos competindo para ver quem mais se distancia do monstro neoliberal de FHC, as já tradicionais gafes de Dilma vão fazer falta. Mas […] Leia mais

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Instituto Millenium

Publicado em 2 de junho de 2010 às, 15h07.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 11h48.

É uma injustiça o que o PT está fazendo com Dilma Rousseff. A cara do cara está numa espécie de quarentena. Só fala texto escrito ou decorado, privando o povo de sua evolução verbal exuberante.

É uma pena. Numa eleição que se anuncia modorrenta, dividida entre dois candidatos competindo para ver quem mais se distancia do monstro neoliberal de FHC, as já tradicionais gafes de Dilma vão fazer falta. Mas ela já começou a reagir.

Já que o partido cortou suas asinhas no Brasil, Dilma foi à forra no exterior. Viajando a Nova York na primeira classe – mordomia que gradualmente será estendida ao povo (nome dado à categoria dos que têm carteirinha do PT) – a candidata de Lula se espalhou.

Falando a uma platéia de investidores, numa dessas audiências montadas para gerar confiança no Brasil, Dilma surpreendeu. Conseguiu a proeza de bater boca com a encarregada da tradução simultânea. Uma performance capaz de impressionar o mais confiante dos capitalistas.

Dilma Rousseff estava falando sobre autonomia do Banco Central. O problema não era sua total e notória falta de preparo para o tema, como integrante do único governo na história que fez oposição a si mesmo – com a sistemática crítica à política econômica que Lula herdou, amaldiçoou e preservou.

O problema maior era a situação, sempre difícil, de acender vela para dois santos. E fazer pedidos opostos a cada um deles. Ao santo da companheirada petista, o jogo é rosnar para o BC e prometer enquadrá-lo. Ao santo do mercado, o discurso tem que ser do tipo “o BC é nosso e ninguém tasca”.

Claro que a pobre tradutora não tinha nada com isso. E a cada volta da retórica tortuosa da candidata brasileira, a intérprete sofria e apanhava: Dilma esquecia os investidores e exigia que ela não atrapalhasse seu “raciocínio”, bradando que aquilo era “complicado”. Nunca se viu nada igual.

Depois de chamada de “minha santa” e esculachada de todas as formas – chegando a ser corrigida e “descorrigida” numa mesma frase – a tradutora entrou em colapso e jogou a toalha. Foi substituída por outro herói, encarregado da árdua missão de traduzir Dilma Rousseff.

Esses intérpretes são uns despreparados. Não entendem nada de PT. A mensagem é simples: somos contra a autonomia do Banco Central, porque isso é coisa de neoliberal e quem manda é o governo popular; mas decidimos mandar o Banco Central continuar autônomo, até porque não temos a menor idéia do que fazer com a economia e o povo está gostando; e o nome disso, em dilmês, passa a ser “autonomia operacional”.

Quem não passar adiante essa mensagem cristalina eles prendem e arrebentam – até que a opinião pública alcance a erudição cega de uma ata de assembléia partidária.

A gente chega lá.

(Publicado no blog de Guilherme Fiuza no site da revista “Época”)