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As sinalizações, incentivos e implicações do pacote econômico do governo

O Instituto Millenium entrevistou o especialista Reginaldo Nogueira, PhD em Economia e diretor geral do IBMEC

Instituto Millenium entrevistou o especialista Reginaldo Nogueira, (Reginaldo Nogueira/Divulgação)
Instituto Millenium entrevistou o especialista Reginaldo Nogueira, (Reginaldo Nogueira/Divulgação)
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Instituto Millenium

Publicado em 19 de janeiro de 2023 às, 14h51.

Há alguns dias, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou algumas medidas econômicas para equilibrar as contas públicas. Totalmente ancorado no aumento de receitas, o pacote inclui – entre outras medidas – a renegociação de dívidas tributárias e a polêmica retomada do voto de qualidade. Para entender melhor esse assunto e suas implicações econômicas, o Instituto Millenium entrevistou o especialista Reginaldo Nogueira, PhD em Economia e diretor geral do IBMEC. Confira a entrevista abaixo.

1) As medidas apresentadas pelo Ministério da Fazenda estão ancoradas majoritariamente no aumento de receitas, apesar da alta carga tributária para um país em desenvolvimento. Como você avalia essa direção?

Reginaldo Nogueira: O pacote anunciado por Haddad precisa ser visto inicialmente no contexto do início do governo Lula. Nós temos um governo Bolsonaro, que encerrou o ano de 2022 com o superávit primário um pouco acima de 1% do PIB. Mas, durante o processo de transição, começou a ser discutida a PEC da Transição, que inicialmente deveria conseguir recursos próximos a R$ 60 bilhões acima do teto do limite dos gastos, para manter o Auxilio Brasil de R$ 600, que era uma promessa de ambas as campanhas. O problema é que, durante o processo de negociação de transição, o que deveria ser efetivamente uma PEC de Transição se tornou uma PEC que invalidava o teto dos gastos e acabava com o arcabouço fiscal que havia sido construído pelo governo Temer.

Então, nós terminamos com um pacote de PEC que flutua entre um piso de R$145 bilhões e um teto de quase R$190 bilhões de gastos adicionais no ano de 2023. Isso significa que, de largada, a política fiscal do novo governo Lula transformou o superávit primário herdado, de 1% do PIB, num déficit que, com algumas previsões até sobre crescimento de receita, inflação, despesas obrigatórias e discricionárias, deve chegar a mais de 2% do PIB.

Então, isso foi obviamente visto pelo mercado como um sinal muito forte de irresponsabilidade fisc. No meio de uma crise internacional e de uma situação de dívida bruta nacional muito alta, nós temos aí um impulso fiscal, para todos os efeitos, de quase 3% do PIB.

A partir desse momento, o governo começou a trabalhar como poderia, oferecer algumas alternativas de pelo menos controlar parte desse aumento do gasto e o efeito disso sobre a dívida pública. E, claramente, essa decisão foi feita pelo lado da receita, dado que havia, desde o momento da discussão da PEC do teto dos gastos, uma demonstração clara de que há uma prioridade pelo aumento dos gastos.

Nesse sentido, a vantagem do pacote é que ele mostra pelo menos que o governo entende que o problema da dívida pública é grave e que os aumentos de gastos que foram apresentados nesse primeiro momento são insustentáveis e precisam ser compensados de alguma maneira.

O lado ruim é que, obviamente, está claro que isso será integralmente feito pelo lado da receita.

Do ponto de vista de teoria econômica, nós temos vários estudos que mostram que infelizmente ajustes fiscais feitos pelo lado da receita tendem a ser mais fracos, mais passageiros e de maneira que teriam efeitos menos permanentes. Mas de qualquer forma, é isso que temos no momento. Pelo menos há uma preocupação com relação ao controle do endividamento público.

2) Dentro da lógica de aumentar arrecadação, o governo está apostando pesado na recuperação de créditos tributários para reequilibrar as contas. É um caminho sustentável no médio e longo prazo? 

RN: O programa de recuperação de créditos tributários é basicamente um Refis. É uma medida historicamente usada no Brasil, não apenas pelo Governo Federal, mas também por governos locais.

É uma maneira de conseguir uma arrecadação extra e ajudar em situações pontuais, mas, obviamente, com o efeito negativo de longo prazo, que gera incentivos negativos com relação ao pagamento de tributos e de negociações.

Um problema é o de inconsistência intertemporal. No curto prazo, o melhor é sempre dizer que não haverá negociação, que as pessoas devem pagar seus tributos em dia, que caso contrário elas serão processadas e vão ter todo tipo de dificuldades.

Mas, uma vez que há um desequilíbrio fiscal, essa política de prezar pelo incentivo do pagamento em dívida desaparece. Há um incentivo pro governo para uma negociação de facilidades, como forma de trazer receita.

Os contribuintes têm um incentivo… à medida que isso se torna recorrente, eles

aprendem, de certa maneira, que isso é uma possibilidade, e isso gera dificuldades ao longo do tempo de manutenção da qualidade da arrecadação e das negociações tributárias. Mas eu já imaginava que, dada a situação fiscal, algo nessa direção apareceria. E é uma maneira relativamente simples de se conseguir receita adicional no curto prazo.

3) Uma das propostas para recuperação fiscal inclui o desconto de até 50% no total da dívida, e parcelamento de até 12 vezes para pessoas físicas, micro e pequenas empresas que estejam inadimplentes com os tributos. Quais os incentivos gerados por esse tipo de medida? 

RN:  É um pacote que gera um incentivo de negociação.

Com certeza, isso terá um efeito sobre aumento de arrecadação… isso gera um efeito positivo do ponto de vista do contribuinte, pois várias pessoas que estão com certidão negativa, em dívida, conseguirão equilibrar suas contas, limpar seus nomes, estarem novamente aptos a participar de toda a sorte de atividade econômica.

Porém, o desincentivo é de longo prazo. Como eu disse, é um problema de inconsistência intertemporal de políticas, a partir do momento em que, de um lado, o governo sempre quer dizer para as pessoas que a melhor política é que os tributos sejam pagos em dia ou negociados, caso contrário haverá todo tipo de dificuldades pro contribuinte.

Mas, uma vez que a pessoa deixou de pagar, e a dívida se acumula, o Governo tem necessidade de um aumento de arrecadação. Então, a melhor política para o governo vira outra, se torna uma negociação, se torna um Refis, um novo Refis.

E isso acaba se arrastando. É um pouco do histórico brasileiro. Havia uma tentativa de acabar com esse tipo de movimentação, mas claramente isso é muito difícil.

Olhando pelo lado positivo, isso gera um aumento de receita, e ajuda alguns contribuintes a conseguirem agora equilibrar suas despesas, suas dívidas com o fisco e se tornarem novamente aptos, por exemplo, a vender pro setor público.

4) Por outro lado, o fim do recurso de ofício para valores abaixo de R$ 15 milhões, quando o contribuinte vence na primeira instância, pode ser uma boa medida para desafogar o CARF e, ao mesmo tempo reduzir o peso do Estado das costas do pagador de impostos?

RN: Essa é uma medida que simplifica e que facilita. São pequenas despesas tributárias em que a redução do processo legal de cobrança e da exigência gera uma facilidade de negociação. E não só um alívio pro contribuinte, mas maior agilidade a todo o processo tributário nacional. Então eu acho que essa é uma medida que em geral tende a gerar efeitos microeconômicos positivos.

5) Outra medida relacionada ao Carf é a retomada do voto de qualidade. Pode explicar o que isso significa e se é uma boa medida? 

RN: O voto de qualidade, ou o voto de desempate, é o seguinte: em uma discussão judicial entre o contribuinte e o Estado, caso haja empate, o que vale é a opinião do governo, a opinião do ente tributário. E com isso, o volume de arrecadação aumenta. Isso foi alterado durante o governo Bolsonaro, quando em casos de empate, a decisão passou a ser em prol do contribuinte. Agora o empate volta a favorecer o Governo.

Essa é uma questão totalmente política, e de decisão e de visão sobre quem você quer defender. Se é o contribuinte ou se é o Estado. Se você quer favorecer o aumento da arrecadação ou se você quer favorecer a fluidez do processo de pagamento de impostos.

Eu acredito que, nesse caso, isso vai gerar aumento de arrecadação e é um tipo de política que diferentes governos, diferentes economistas, podem ter diferentes opiniões. De novo, se coloca aí em questão quem você acha que deveria ter o desempate em caso de dúvidas tributárias. Se seria então o cidadão contribuinte ou seria o Estado.

No curto prazo, o que a gente espera obviamente com relação a isso é que haverá sim um efeito de aumento de arrecadação.

6) Muita gente está comparando o não aumento do salário mínimo nos níveis esperados com o reajuste dos salários federais a partir do aumento do teto do STF. Você concorda com as comparações, ou acredita que são assuntos diferentes?

RN: Eu acredito que são assuntos diferentes, mas, de certa maneira, relacionados. É claro que não podemos cair no populismo de dizer que deve haver um relacionamento entre os salários de todos os servidores com o salário mínimo, ou salários de todo o Executivo e Legislativo.

Essa é uma discussão populista, muito rasa do problema. Por outro lado, ela está inter-relacionada ali, porque obviamente o aumento do salário mínimo tem efeito, por exemplo, sobre o gasto do INSS, sobre aposentadoria - tem um efeito todo sobre a economia e sobre geração de emprego - então ele tem um impacto importante. Mas o principal nesse momento é que, como passamos por um processo de discussão de ajustes, e de haver contratado o déficit público, a partir do momento em que você começa a mandar alguns sinais, a população pode ver aquilo como um indicativo de que as prioridades não estão alinhadas com as com as prioridades das pessoas.

Nesse sentido, por exemplo, vale lembrar que em 2020, durante a pandemia, foi aprovada a Lei Complementar 273, que congelou o salário do funcionalismo público e permitiu controlar uma parte do aumento do gasto quando era preciso aumentar enormemente o gasto assistencial no momento da pandemia.

Porque eu lembro isso? Porque aí nesse caso você está mandando um sinal pra população de que existe ali uma priorização e uma preocupação entre repartir o custo do ajuste. Nesse sentido é onde eu acho que essas conversas um pouco se aproximam. Mas, de novo, eu não acho que deveria haver uma regra entre vinculação de aumentos do salário mínimo aos aumentos dos servidores. Ela seria economicamente inviável, politicamente impossível de ser aprovada, e nem faria sentido, porque são efetivamente, em geral, funções diferentes, despesas diferentes, volumes financeiros diferentes.

Então eu acho que essa conversa só se aproximou agora exatamente por esse ponto de sinalização no momento de muita ansiedade na sociedade, no meio econômico a respeito de para onde vai o gasto público.