Exame Logo

Agilidade institucional: a nova fronteira do Brasil democrático

É imperativo reconhecer que, apesar de representarem um progresso, os sistemas burocráticos atuais do Brasil permanecem aquém do ideal

Lula na África do Sul, para encontro dos Brics. (Anadolu Agency/Getty Images)
Rafael Leite

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 3 de janeiro de 2024 às 10h01.

Durante a transição para a democracia nos anos 80, o Brasil adotou obstinadamente sistemas administrativos pautados pelo princípio da impessoalidade, vislumbrado como o antídoto perfeito contra o arbítrio predominante na ditadura militar. Esse esforço gerou inadvertidamente um labirinto burocrático que frequentemente barra o Estado de entregar resultados de maneira eficiente e eficaz, corroendo a confiança pública nas instituições democráticas.

Consideremos os concursos públicos e os sistemas de licitação. Projetados para prevenir o favoritismo, um objetivo parcialmente alcançado, acabaram também por negligenciar a identificação de competências para o desempenho de funções públicas e a seleção de fornecedores que melhor atendam às necessidades governamentais. Em essência, temos privilegiado a forma em detrimento da função, a regra ao invés do resultado. Tal situação representa um clássico exemplo de hipercorreção: a resposta excessiva aos equívocos do passado criou sistemas públicos marcados por uma rigidez e uma lentidão que obstaculizam os processos decisórios e a implementação de políticas públicas.

É imperativo reconhecer que, apesar de representarem um progresso, os sistemas burocráticos atuais do Brasil permanecem aquém do ideal. Os avanços que conquistamos não devem servir de pretexto para complacência, mas sim um chamado para ação e reforma. É imperativo equipar o Estado brasileiro com as ferramentas necessárias para enfrentar problemas públicos e executar projetos ambiciosos. Isso exige uma mudança de foco, do mero cumprimento de procedimentos para a obtenção de resultados concretos. Precisamos transitar da obsessão pelo 'o quê' fazer para uma concentração mais incisiva no 'como'.

Para fortalecer a administração pública com capacidades internas que permitam a entrega, precisamos aprimorar sistemas de recrutamento, compras e avaliação de políticas públicas, além de aumentar a eficiência de processos participativos. Além do "back office"do governo, é necessário aperfeiçoar também os sistemas de controle. O Brasil enfrenta o desafio de uma judicialização excessiva das decisões administrativas e um sistema de controle hipertrofiado e inefetivo, resultando em atrasos, desperdício de recursos e paralisia decisória.

A agilidade depende de estruturas institucionais adequadas. Portanto, é crucial criar incentivos para que as decisões administrativas sejam bem fundamentadas, permitindo que, uma vez tomadas, estejam menos sujeitas a revisões pelos sistemas de controle administrativo e judicial.

Buscando inspiração para transformações, é valioso observar experiências internacionais. Um exemplo notável é a Comissão Nacional do Debate Público (CNDP) na França, que desde 1995, exemplifica a união entre agilidade, eficiência e participação social. Esta agência autônoma conduz consultas públicas obrigatórias em grandes projetos de infraestrutura, com orçamentos acima de 500 milhões de euros. Sua missão é equilibrar a consulta aos públicos afetados com a necessidade de garantir a conclusão eficiente dos projetos. Para isso, desenvolve metodologias inovadoras de consulta e diálogo social, operando sob prazos rigorosos de até seis meses para debates públicos, que resultam em recomendações que vão desde ajustes de projeto até o cancelamento das obras.

Desde 2002, mais de 130 projetos foram submetidos a debates pela CNDP, e menos de dez foram abandonados pelos resultados desses debates. Este modelo demonstra como é possível realizar processos rápidos sem comprometer a participação democrática. Além disso, ao envolver múltiplos stakeholders, inclusive potenciais beneficiários das obras, a CNDP se torna uma barreira contra o " nimbyismo ". Seu sucesso também se reflete na redução de revisões judiciais de obras públicas, um desafio constante tanto no Brasil quanto em países como os Estados Unidos. Este exemplo francês oferece lições valiosas para o Brasil na busca por um equilíbrio entre eficiência administrativa e envolvimento comunitário.

Um exemplo igualmente instrutivo vem do Chile. O Sistema Nacional de Investimentos Públicos realiza uma avaliação prévia de projetos de investimento com metodologias padronizadas, agilizando a alocação de recursos. Através dessa avaliação antecipada, fundos emergentes são direcionados para projetos já validados em termos de eficácia, possibilitando que os governos nacional e subnacionais acessem um repertório de projetos prontos para a implementação.

Além disso, a atuação de instituições multilaterais, como a Coalizão para a Preparação de Inovações em Epidemias (CEPI), estabelecida em 2017 por uma aliança de nações desenvolvidas e em desenvolvimento, sublinha a importância da antecipação estratégica. A CEPI se dedica ao desenvolvimento de uma infraestrutura regulatória, científica e tecnológica robusta, visando acelerar a resposta global a crises de saúde. Seu objetivo ambicioso é construir a capacidade de desenvolver vacinas contra novos patógenos em até 100 dias. Esta abordagem preventiva já estava em prática antes da pandemia de Covid-19, com a instituição se preparando para combater a chamada " doença X" – um patógeno teórico, mas potencialmente devastador, com alta transmissibilidade e letalidade, capaz de provocar impactos significativos em escala global.

Diante dos prolongados e incessantes debates sobre a necessidade de uma reforma administrativa, o Brasil enfrenta um desafio que transcende a simples ruptura com a burocracia asfixiante. É necessário ser audaz e inovador. O que está em jogo é a construção de um sistema que una eficiência, responsabilidade e vitalidade – uma verdadeira transformação do ethos da administração pública brasileira.

A burocracia desejada pelo Brasil deve superar os resquícios do passado, abraçando a agilidade e a inovação para enfrentar as incertezas futuras. Contudo, na busca pela eficiência, é crucial evitar o risco de trocar uma rigidez paralisante por uma flexibilidade desordenada.

O grande desafio do Brasil consiste em encontrar um equilíbrio delicado, onde a eficiência operacional e a integridade institucional coexistam, sem comprometer os princípios democráticos. Em um contexto global onde democracias estabelecidas lutam contra a inércia da hesitação e vetocracia, incapazes de executar projetos audaciosos, e diante do crescente apelo do modelo autoritário chinês, que impressiona pelo seu poder de realizar grandes obras, surge uma oportunidade singular. É a chance de desenvolver um modelo administrativo que harmonize agilidade e desenvolvimento sustentável dentro dos limites da democracia, propondo uma alternativa à dicotomia entre a inércia democrática e o autoritarismo eficaz.

Veja também

Durante a transição para a democracia nos anos 80, o Brasil adotou obstinadamente sistemas administrativos pautados pelo princípio da impessoalidade, vislumbrado como o antídoto perfeito contra o arbítrio predominante na ditadura militar. Esse esforço gerou inadvertidamente um labirinto burocrático que frequentemente barra o Estado de entregar resultados de maneira eficiente e eficaz, corroendo a confiança pública nas instituições democráticas.

Consideremos os concursos públicos e os sistemas de licitação. Projetados para prevenir o favoritismo, um objetivo parcialmente alcançado, acabaram também por negligenciar a identificação de competências para o desempenho de funções públicas e a seleção de fornecedores que melhor atendam às necessidades governamentais. Em essência, temos privilegiado a forma em detrimento da função, a regra ao invés do resultado. Tal situação representa um clássico exemplo de hipercorreção: a resposta excessiva aos equívocos do passado criou sistemas públicos marcados por uma rigidez e uma lentidão que obstaculizam os processos decisórios e a implementação de políticas públicas.

É imperativo reconhecer que, apesar de representarem um progresso, os sistemas burocráticos atuais do Brasil permanecem aquém do ideal. Os avanços que conquistamos não devem servir de pretexto para complacência, mas sim um chamado para ação e reforma. É imperativo equipar o Estado brasileiro com as ferramentas necessárias para enfrentar problemas públicos e executar projetos ambiciosos. Isso exige uma mudança de foco, do mero cumprimento de procedimentos para a obtenção de resultados concretos. Precisamos transitar da obsessão pelo 'o quê' fazer para uma concentração mais incisiva no 'como'.

Para fortalecer a administração pública com capacidades internas que permitam a entrega, precisamos aprimorar sistemas de recrutamento, compras e avaliação de políticas públicas, além de aumentar a eficiência de processos participativos. Além do "back office"do governo, é necessário aperfeiçoar também os sistemas de controle. O Brasil enfrenta o desafio de uma judicialização excessiva das decisões administrativas e um sistema de controle hipertrofiado e inefetivo, resultando em atrasos, desperdício de recursos e paralisia decisória.

A agilidade depende de estruturas institucionais adequadas. Portanto, é crucial criar incentivos para que as decisões administrativas sejam bem fundamentadas, permitindo que, uma vez tomadas, estejam menos sujeitas a revisões pelos sistemas de controle administrativo e judicial.

Buscando inspiração para transformações, é valioso observar experiências internacionais. Um exemplo notável é a Comissão Nacional do Debate Público (CNDP) na França, que desde 1995, exemplifica a união entre agilidade, eficiência e participação social. Esta agência autônoma conduz consultas públicas obrigatórias em grandes projetos de infraestrutura, com orçamentos acima de 500 milhões de euros. Sua missão é equilibrar a consulta aos públicos afetados com a necessidade de garantir a conclusão eficiente dos projetos. Para isso, desenvolve metodologias inovadoras de consulta e diálogo social, operando sob prazos rigorosos de até seis meses para debates públicos, que resultam em recomendações que vão desde ajustes de projeto até o cancelamento das obras.

Desde 2002, mais de 130 projetos foram submetidos a debates pela CNDP, e menos de dez foram abandonados pelos resultados desses debates. Este modelo demonstra como é possível realizar processos rápidos sem comprometer a participação democrática. Além disso, ao envolver múltiplos stakeholders, inclusive potenciais beneficiários das obras, a CNDP se torna uma barreira contra o " nimbyismo ". Seu sucesso também se reflete na redução de revisões judiciais de obras públicas, um desafio constante tanto no Brasil quanto em países como os Estados Unidos. Este exemplo francês oferece lições valiosas para o Brasil na busca por um equilíbrio entre eficiência administrativa e envolvimento comunitário.

Um exemplo igualmente instrutivo vem do Chile. O Sistema Nacional de Investimentos Públicos realiza uma avaliação prévia de projetos de investimento com metodologias padronizadas, agilizando a alocação de recursos. Através dessa avaliação antecipada, fundos emergentes são direcionados para projetos já validados em termos de eficácia, possibilitando que os governos nacional e subnacionais acessem um repertório de projetos prontos para a implementação.

Além disso, a atuação de instituições multilaterais, como a Coalizão para a Preparação de Inovações em Epidemias (CEPI), estabelecida em 2017 por uma aliança de nações desenvolvidas e em desenvolvimento, sublinha a importância da antecipação estratégica. A CEPI se dedica ao desenvolvimento de uma infraestrutura regulatória, científica e tecnológica robusta, visando acelerar a resposta global a crises de saúde. Seu objetivo ambicioso é construir a capacidade de desenvolver vacinas contra novos patógenos em até 100 dias. Esta abordagem preventiva já estava em prática antes da pandemia de Covid-19, com a instituição se preparando para combater a chamada " doença X" – um patógeno teórico, mas potencialmente devastador, com alta transmissibilidade e letalidade, capaz de provocar impactos significativos em escala global.

Diante dos prolongados e incessantes debates sobre a necessidade de uma reforma administrativa, o Brasil enfrenta um desafio que transcende a simples ruptura com a burocracia asfixiante. É necessário ser audaz e inovador. O que está em jogo é a construção de um sistema que una eficiência, responsabilidade e vitalidade – uma verdadeira transformação do ethos da administração pública brasileira.

A burocracia desejada pelo Brasil deve superar os resquícios do passado, abraçando a agilidade e a inovação para enfrentar as incertezas futuras. Contudo, na busca pela eficiência, é crucial evitar o risco de trocar uma rigidez paralisante por uma flexibilidade desordenada.

O grande desafio do Brasil consiste em encontrar um equilíbrio delicado, onde a eficiência operacional e a integridade institucional coexistam, sem comprometer os princípios democráticos. Em um contexto global onde democracias estabelecidas lutam contra a inércia da hesitação e vetocracia, incapazes de executar projetos audaciosos, e diante do crescente apelo do modelo autoritário chinês, que impressiona pelo seu poder de realizar grandes obras, surge uma oportunidade singular. É a chance de desenvolver um modelo administrativo que harmonize agilidade e desenvolvimento sustentável dentro dos limites da democracia, propondo uma alternativa à dicotomia entre a inércia democrática e o autoritarismo eficaz.

Acompanhe tudo sobre:BrasilDemocraciaGoverno Lula

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se