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A tragédia gaúcha e o problema da hesitocracia

A tragédia destrói vidas, mas nem sempre é suficiente para mudar nossas crenças

Chuvas em Rio Grande do Sul (Carlos Macedo/Bloomberg /Getty Images)
Claudio D. Shikida

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 7 de maio de 2024 às 06h59.

Nos últimos dias o leitor deve ter se emocionado com um ou vários vídeos feitos em meio à tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Graças às mídias não tradicionais, ou seja, às redes sociais, pudemos ver o que viraria notícia apenas no jornal da noite de sábado. Em 1941, bem antes das discussões sobre as alterações climáticas, Porto Alegre foi destaque como vítima das chuvas. Desta vez, mais cidades foram atingidas, com as consequências tristes que todos vimos.

A tragédia destrói vidas, mas nem sempre é suficiente para mudar nossas crenças. Li - e talvez o leitor também tenha lido - comentários em redes sociais, presumivelmente sérios, de pessoas reclamando que não deveriam ter que doar nada porque “é obrigação do Estado cuidar das pessoas”. É verdade que a Constituição de 1988 abraçou uma visão intervencionista do Estado, mas nem isso deveria justificar o abandono da caridade e da simpatia pelos que sofrem. De fato, é um direito seu não ajudar. Contudo, é um direito seu obrigar que outros tenham seus recursos subtraídos, na forma de impostos, para ajudar os outros? É fácil falar em um Estado ideal que só existe na imaginação. Difícil é encarar o fato de que há impostos, mas não há, necessariamente, ajuda governamental em tempo hábil.

E ela, a ajuda, sempre, tão prometida pelos políticos e burocratas, nunca foi tão necessária. Acompanhando a ação governamental nos últimos dias, vi um quadro complexo. Autoridades municipais, com menos recursos, empenhando-se na defesa de suas comunidades em contraste com uma sensação de vagarosidade nas ações à medida em que nos afastamos do nível local. Obviamente, há exceções e assistimos atos de heroísmo tanto entre forças de segurança locais, quanto federais.

Alguns episódios chamaram minha atenção. Em um vídeo, por exemplo, vi autoridades diminuindo o fluxo de botes, barcos e similares por conta de ritos burocráticos. Em face da urgência no salvamento de vidas, esta hesitocracia que, aliás, alguns justificam invocando a possibilidade de judicialização (“se o barco virar e eu autorizei…serei processado”) não é somente um problema teórico: vidas são, de fato, perdidas. Lembro-me de ter falado deste tema em janeiro deste ano, nesta mesma coluna. O texto terminava com um cauteloso otimismo que as chuvas trataram de afundar junto com a alegria do povo gaúcho.

Claro, a hesitocracia não é necessariamente o resultado de uma mente diabólica que se compraz em ver pessoas morrendo. Os sinais emitidos por nossos órgãos de controle quase sempre são de que são reprováveis na gestão pública o inovar, o arriscar. Em recente evento sobre sandboxes regulatórios , vi depoimentos críticos de gestores públicos a respeito da dificuldade de se permitir a testagem de regulações inovadoras no setor público. Ainda assim, eu, como cidadão e pagador de impostos, esperava um pouco mais de agilidade neste momento. Lembro-me de quando, no início da pandemia, em 2020, a presidência da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) aprovou junto aos diretores o trabalho remoto, quando sequer havia regulação clara para o teletrabalho em todo o serviço público. Isto mostra que, sim, é possível ser ágil na gestão pública.

Contrasta com a lentidão governamental - e com as pompas em se falar de futuros planos de reconstrução - a ação da sociedade civil, ou melhor das pessoas. As mesmas pessoas que compõem o chamado “mercado” que tantos demonizam. Pessoas comuns (ou, melhor dizendo, positivamente incomuns) têm agido rápido e eficazmente - dentro do possível - na tentativa de salvar vidas e acolher aqueles que perderam mais do que apenas os bens materiais.

Promover a gestão ágil no setor público não é sinônimo de facilitar a corrupção. Vários governos no restante do mundo são notoriamente menos corruptos e mais ágeis que o nosso. A tragédia gaúcha nos mostra que a ação privada pode não apenas complementar a do setor público no fornecimento de socorro em momentos como este. Em alguns casos, em que a hesitocracia predomina, o setor privado a substitui.

Alguns observadores têm destacado a ponte construída pela população de Nova Roma do Sul ano passado, como um símbolo do poder da ação local frente à hesitocracia governamental. O leitor me dê licença para um pequeno atrevimento: se pudesse propor um plano para recuperar o Rio Grande do Sul, eu privilegiaria os arranjos público-privados para não aumentar ainda mais a dependência do estado em relação ao governo federal. E não o chamaria de “Plano Marshall”, mas de “Plano Nova Roma do Sul”, para lembrar e frisar a importância de se substituir a hesitocracia governamental por uma multiplicidade de governos locais ágeis.

Por fim, aos amigos gaúchos, meus sentimentos pelas perdas e meu desejo de que possam reconstruir suas vidas o mais breve possível.

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Nos últimos dias o leitor deve ter se emocionado com um ou vários vídeos feitos em meio à tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Graças às mídias não tradicionais, ou seja, às redes sociais, pudemos ver o que viraria notícia apenas no jornal da noite de sábado. Em 1941, bem antes das discussões sobre as alterações climáticas, Porto Alegre foi destaque como vítima das chuvas. Desta vez, mais cidades foram atingidas, com as consequências tristes que todos vimos.

A tragédia destrói vidas, mas nem sempre é suficiente para mudar nossas crenças. Li - e talvez o leitor também tenha lido - comentários em redes sociais, presumivelmente sérios, de pessoas reclamando que não deveriam ter que doar nada porque “é obrigação do Estado cuidar das pessoas”. É verdade que a Constituição de 1988 abraçou uma visão intervencionista do Estado, mas nem isso deveria justificar o abandono da caridade e da simpatia pelos que sofrem. De fato, é um direito seu não ajudar. Contudo, é um direito seu obrigar que outros tenham seus recursos subtraídos, na forma de impostos, para ajudar os outros? É fácil falar em um Estado ideal que só existe na imaginação. Difícil é encarar o fato de que há impostos, mas não há, necessariamente, ajuda governamental em tempo hábil.

E ela, a ajuda, sempre, tão prometida pelos políticos e burocratas, nunca foi tão necessária. Acompanhando a ação governamental nos últimos dias, vi um quadro complexo. Autoridades municipais, com menos recursos, empenhando-se na defesa de suas comunidades em contraste com uma sensação de vagarosidade nas ações à medida em que nos afastamos do nível local. Obviamente, há exceções e assistimos atos de heroísmo tanto entre forças de segurança locais, quanto federais.

Alguns episódios chamaram minha atenção. Em um vídeo, por exemplo, vi autoridades diminuindo o fluxo de botes, barcos e similares por conta de ritos burocráticos. Em face da urgência no salvamento de vidas, esta hesitocracia que, aliás, alguns justificam invocando a possibilidade de judicialização (“se o barco virar e eu autorizei…serei processado”) não é somente um problema teórico: vidas são, de fato, perdidas. Lembro-me de ter falado deste tema em janeiro deste ano, nesta mesma coluna. O texto terminava com um cauteloso otimismo que as chuvas trataram de afundar junto com a alegria do povo gaúcho.

Claro, a hesitocracia não é necessariamente o resultado de uma mente diabólica que se compraz em ver pessoas morrendo. Os sinais emitidos por nossos órgãos de controle quase sempre são de que são reprováveis na gestão pública o inovar, o arriscar. Em recente evento sobre sandboxes regulatórios , vi depoimentos críticos de gestores públicos a respeito da dificuldade de se permitir a testagem de regulações inovadoras no setor público. Ainda assim, eu, como cidadão e pagador de impostos, esperava um pouco mais de agilidade neste momento. Lembro-me de quando, no início da pandemia, em 2020, a presidência da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) aprovou junto aos diretores o trabalho remoto, quando sequer havia regulação clara para o teletrabalho em todo o serviço público. Isto mostra que, sim, é possível ser ágil na gestão pública.

Contrasta com a lentidão governamental - e com as pompas em se falar de futuros planos de reconstrução - a ação da sociedade civil, ou melhor das pessoas. As mesmas pessoas que compõem o chamado “mercado” que tantos demonizam. Pessoas comuns (ou, melhor dizendo, positivamente incomuns) têm agido rápido e eficazmente - dentro do possível - na tentativa de salvar vidas e acolher aqueles que perderam mais do que apenas os bens materiais.

Promover a gestão ágil no setor público não é sinônimo de facilitar a corrupção. Vários governos no restante do mundo são notoriamente menos corruptos e mais ágeis que o nosso. A tragédia gaúcha nos mostra que a ação privada pode não apenas complementar a do setor público no fornecimento de socorro em momentos como este. Em alguns casos, em que a hesitocracia predomina, o setor privado a substitui.

Alguns observadores têm destacado a ponte construída pela população de Nova Roma do Sul ano passado, como um símbolo do poder da ação local frente à hesitocracia governamental. O leitor me dê licença para um pequeno atrevimento: se pudesse propor um plano para recuperar o Rio Grande do Sul, eu privilegiaria os arranjos público-privados para não aumentar ainda mais a dependência do estado em relação ao governo federal. E não o chamaria de “Plano Marshall”, mas de “Plano Nova Roma do Sul”, para lembrar e frisar a importância de se substituir a hesitocracia governamental por uma multiplicidade de governos locais ágeis.

Por fim, aos amigos gaúchos, meus sentimentos pelas perdas e meu desejo de que possam reconstruir suas vidas o mais breve possível.

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