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A taxação de veículos elétricos e as perspectivas do transporte sustentável no Brasil

Entrevista com Artur Villela, pesquisador da FGV e especialista em economia ambiental

Entrevista com Artur Villela, pesquisador da FGV e especialista em economia ambiental  (Acervo pessoal)
Entrevista com Artur Villela, pesquisador da FGV e especialista em economia ambiental (Acervo pessoal)

A partir de 1º de janeiro de 2024, o governo brasileiro começou a taxar veículos elétricos e híbridos importados e painéis solares fabricados no exterior. Esta medida reverte a isenção de impostos estabelecida desde 2015 e faz parte da MP 1.205 de 2023, que destina R$ 19 bilhões para incentivar a indústria automotiva local. As taxas de importação para veículos 100% elétricos começam em 10% e podem chegar a 35% até 2026, com diferentes alíquotas para outras categorias de veículos.  

Neste contexto, o Instituto Millenium entrevistou Artur Villela Ferreira, administrador de empresas, pesquisador da FGV e autor especializado em economia ambiental. Ferreira discute o impacto dessa política na indústria automotiva nacional, abordando temas como protecionismo, inovação tecnológica e sustentabilidade. A entrevista também explora a visão de Ferreira sobre as tendências futuras no setor de mobilidade, considerando as iniciativas de eletrificação e descarbonização no Brasil. 

Instituto Millenium: Recentemente, o governo federal implementou uma taxação sobre a importação de carros elétricos e painéis solares como parte do programa 'Mobilidade Verde e Inovação'. Essa medida, com características protecionistas e potenciais impactos ambientais negativos, gera um debate. Na sua visão, existe um conflito real entre proteger empregos na indústria nacional e promover a adoção de tecnologias sustentáveis? 

Artur Villela Ferreira: Não, na verdade, a promoção da adoção de tecnologias sustentáveis é benéfica para a geração de empregos na indústria nacional, na medida em que o Brasil possui grandes vantagens comparativas para esse tipo de indústria, em especial por sua matriz elétrica verde, além do potencial de insumos renováveis para química verde, por exemplo. 

Quando falamos de protecionismo contra importações, o efeito de curto prazo é o aumento de preço dessas tecnologias, sem dúvida. A tese do governo é de que ao longo da próxima década essa medida tenha o efeito de aumentar a oferta interna e gere redução dos preços. 

É importante olharmos que o programa Mobilidade Verde e Inovação inclui medidas para além das questões de tributação de importações e incentivo fiscal para a produção local: o foco deixa de ser exclusivamente em “eletrificação” e passa a ser em “descarbonização”.  

A avaliação dos veículos vai se estender da atual metodologia “do tanque à roda” para “do poço à roda”, que inclui os impactos ambientais da fabricação e distribuição dos combustíveis. Isso significa que não vamos mais olhar apenas para a eficiência dos carros, mas também como é produzido o combustível com o qual estão rodando. Em um país com o alto uso de etanol e o potencial de expansão de biodiesel e diesel verde como o Brasil, essa é uma inovação essencial. A partir de 2027, o olhar se expande ainda mais, para a metodologia “do berço ao túmulo”, que olhará também para o descarte dos materiais utilizados. 

Essas questões são importantíssimas, porque o Brasil possui características, desafios e oportunidades ambientais que são muito particulares. Temos que aproveitar o máximo do conhecimento produzido fora, mas também temos que tomar a liderança de construir aqui soluções adaptadas às necessidades de países tropicais e países em desenvolvimento. 

IM: Como a decisão de aumentar a taxação sobre carros elétricos importados pode influenciar a competitividade e inovação no mercado automotivo brasileiro, considerando a tendência histórica do país de impor barreiras à importação e o risco de acomodação das montadoras sob proteção governamental? 

AVF: O histórico do setor automobilístico brasileiro com o protecionismo é um enorme desafio. A recente saída de montadoras do país, mesmo com décadas de incentivos e proteção, deixou claro que esse não é o caminho mais adequado. 

Essa é uma questão que deve ser enfrentada pela sociedade como um todo, porque perpassa decisões do executivo e do legislativo: grupos de interesse organizado pressionam, criam incentivos “temporários”, que são prorrogados indefinidamente. Em um ambiente de aceleração das mudanças tecnológicas, essa acomodação é ainda pior, porque cerceia o acesso a novos produtos e técnicas mais eficientes e menos danosas ao meio ambiente. 

Isso dito, o ponto mais importante para as decisões de investimento é a previsibilidade, e nesse sentido, a legislação tem a vantagem de não propor uma mudança brusca, faseando a taxação ao longo do tempo. 

É importante ter também uma visão realista sobre a capacidade de ampliação da oferta pela indústria nacional. Recentemente a Índia teve que reduzir o imposto de importação de painéis solares de 40% para 20%, porque os projetos de usinas solares já aprovados não estavam encontrando oferta de placas suficientes. 

IM: Considerando o avanço na viabilidade das tecnologias de bateria e o pequeno mercado de veículos elétricos no Brasil, qual é o impacto potencial dessa taxação na formação de uma base de usuários que promova uma economia de escala para veículos elétricos? 

AVF: O mercado de veículos elétricos no Brasil é realmente pequeno em comparação com o mercado europeu, americano ou chinês. Mesmo dobrando as vendas de veículos elétricos em 2023 para quase 94 mil, ainda são apenas 0,5% da frota. Isso gera um problema de ovo e galinha: pessoas deixam de comprar carros elétricos por falta de infraestrutura e a infraestrutura não é construída por falta de demanda. Como falei no início, a taxação, no curto prazo, reduzirá a demanda. Resta saber se a medida terá o efeito positivo desejado pelo governo no médio prazo, com aumento da oferta interna. 

É importante lembrar que existem outros fatores além da carga tributária que podem afetar positiva ou negativamente o ganho de escala dos carros elétricos: o primeiro está dado, que é a redução de preços decorrente do ganho de escala mundial. Se na década passada existiam apenas carros elétricos de alto luxo, no último trimestre de 2023 a chinesa BYD ultrapassou a Tesla como maior volume de carros 100% elétricos entregues, com uma estratégia de preços mais agressiva. 

De qualquer forma, os veículos elétricos geralmente apresentam um maior custo na venda e um menor custo operacional por km rodado. Isso faz com que sejam especialmente interessantes para quem roda muito, como frotas de empresas e aplicativos. Inovações na forma de aquisição, financiamento ou mesmo aluguel de veículos podem acelerar o processo de adoção, além de permitir que a infraestrutura se desenvolva a partir de uma demanda garantida por essas empresas. 

IM: O Brasil ocupa a 71ª posição no ranking global de competitividade do Fórum Econômico Mundial. Neste cenário, qual seria a estratégia ideal para o país promover a competitividade de sua indústria automotiva sem adotar medidas que prejudiquem a transição para uma frota mais ecológica, como o aumento dos preços? É possível formular uma estratégia que incentive a produção de veículos elétricos acessíveis sem recorrer a estímulos pouco transparentes e de elevado custo fiscal? 

AVF: O sistema de incentivos brasileiro, em especial no campo fiscal, é opaco e ineficiente. Para piorar, muitas vezes ele é também contraditório: damos um incentivo para carros ambientalmente mais eficientes, ao mesmo tempo incentivamos a exploração de petróleo. Isentamos a autogeração renovável de pagar os custos de fio, mas aprovamos a manutenção de incentivos para usinas à carvão. Em 2021, o Brasil concedeu R$ 120 bilhões em incentivos para a produção e consumo de combustíveis fósseis, mais do que todos os programas de renováveis somados. E essa tendência não é só nossa: a IAE (Agência Internacional de Energia, na sigla em inglês) estima em U$ 7 trilhões os incentivos ao uso de combustíveis fósseis, dos quais U$ 1,25 trilhão em subsídios diretos e o restante em subsídios indiretos, como não cobrar pelas emissões de gases e efeito estufa. 

Substituir esse tipo de incentivo por programas claros, nos níveis federal, estadual e municipal, que apontem em cada produto ou serviço adquirido o preço final e os incentivos incluídos, seria mais interessante do que isentar ou dar alíquotas diferentes para produtos muitas vezes semelhantes. Países como os Estados Unidos têm programas semelhantes, que incluem o preço final de painéis solares, por exemplo, e quaisquer eventuais incentivos federais ou estaduais explícitos. 

Por fim, é sempre importante frisar que incentivos fiscais não são a única forma de induzir o investimento. Reduzir o custo país e manter um sistema regulatório claro e previsível reduzem as incertezas, logo, o custo de capital, fator mais importante para decisões de investimento do que subsídios ou barreiras à importação que podem ser cancelados a qualquer momento. 

IM: Diante das tendências de eletrificação e descarbonização no setor de mobilidade, qual é a sua visão para o futuro desse setor no Brasil? De que maneira você acredita que o desenvolvimento da infraestrutura, a evolução das regulações e a inovação tecnológica se entrelaçarão para promover a adoção de tecnologias de transporte mais limpas e eficientes no país nos próximos anos? 

AVF: A questão da matriz de transporte brasileira é um enorme desafio e vai muito além de discussões sobre carros elétricos, etanol e gasolina. As externalidades ambientais do transporte vão muito além da simples emissão de CO². 

No campo de transporte urbano, legislações que limitam o uso do solo e forçam número mínimo de vagas de garagem, por exemplo, contribuem para cidades pouco compactas e sem infraestrutura adequada de mobilidade, incluindo mobilidade ativa (a pé, bicicleta) e transporte público. Rever esse modelo de urbanização, em especial nas regiões de maior crescimento populacional, e revitalizar os vazios urbanos nos centros das metrópoles consolidadas é urgente. 

No campo do transporte de cargas, a medida provisória BR do Mar, para a navegação de cabotagem, foi um bom começo, mas é necessário ampliar também o transporte fluvial no interior do país. O governo sinalizou que estuda medidas para tirar do papel as ferrovias autorizadas e melhorar o arcabouço regulatório para ter menos “ferrovias de papel” e mais km de malha implementada. Não podemos em um país continental continuar transportando dois terços da carga pelo modal rodoviário.