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A folia dos recursos públicos no Carnaval

Todo carnaval, governos estaduais e prefeituras anunciam investimentos milionários

Carnaval em Salvador (Getty Images/Getty Images)
Carnaval em Salvador (Getty Images/Getty Images)

*Por Priscila Chammas 

Todos os anos, governos estaduais e prefeituras anunciam investimentos milionários no carnaval, boa parte em cachês de artistas. Em Salvador, destino nacional mais desejado pelos brasileiros no carnaval – e também de onde escreve esta humilde colunista - a generosa lista dos contemplados foi divulgada, e inclui R$ 2 milhões para Léo Santana, R$ 1 milhão para o Psirico, R$ 800 mil para a Timbalada, R$ 650 mil para Thiago Aquino... e a lista segue longa. Dois tipos de artistas estão nela: 

1) Os de sucesso, que conseguiriam (e sempre conseguiram) vender os seus abadás tranquilamente, e por isso não precisariam de tal ajuda; 

2) Aqueles que as pessoas não pagariam espontaneamente para assistir, mas agora serão obrigadas a subsidiá-los via impostos. 

E o artigo poderia acabar por aqui, concluindo que dinheiro público não deveria servir para pagar cachê de artista no carnaval (e nem em outra época, mas aí é outro assunto) e ponto final. Mas há três justificativas recorrentes para esta prática, que eu gostaria de responder. 

A primeira delas é a de que o carnaval movimenta muito dinheiro, traz turistas, gera empregos, traz retorno financeiro para a cidade. Só que eu não disse para acabar com o carnaval. Muita gente confunde ser contra dinheiro público em X com ser contra, e querer exterminar X. Longe de mim tentar reduzir a importância dessa festa, da qual faço questão de participar há uns 20 anos. Mas é um erro pensar que, se o poder público não pagar o cachê do artista (com o dinheiro da população), o carnaval não vai acontecer. A bem da verdade, boa parte desse ‘investimento’ acaba por desvirtuar a festa, criando no artista incentivos diferentes do que ele deveria ter: agradar ao seu cliente, o público. 

A verdade é que o Estado não inventou o carnaval, e ele aconteceu por séculos sem os seus aportes financeiros. Existe um mercado privado do Carnaval. Cada vez menor, pois acabaram engolidos pela concorrência estatal, o que fez com que muitos blocos menores acabassem falindo. Quem vai pagar para assistir um artista mediano, enquanto tem um amplo carnaval grátis rolando por aí?  

O fato é que blocos, camarotes, cervejarias, companhias aéreas e serviços de turismo diversos têm todo o interesse que o carnaval ocorra, e sempre fizeram ele acontecer. E também tem pessoas comuns comprando abadás e outros produtos relacionados à festa. 

Em Salvador, a prefeitura só entrou de cabeça na década passada, sendo seguida pelo governo estadual, que não quis ficar para trás. Até então, era a iniciativa privada que cuidava do conteúdo da festa, enquanto o poder público apenas incrementava as mesmas funções que são sua obrigação o ano inteiro (trânsito, policiamento, limpeza, etc). Esse é um investimento público necessário para a realização do carnaval, mas… convenhamos… não tem o mesmo glamour que contratar artistas.  

Voltando um pouco no tempo, o Carnaval existe desde a antiguidade, e foi importado para o Brasil sob influência dos portugueses. Aconteceu sem interferência estatal até a década de 1930 (a não ser quando governos tentavam coibir o entrudo, que era o carnaval da parcela mais pobre da população e acontecia nas ruas). Foi Getúlio Vargas que regulamentou e passou a exigir taxas e alvarás de funcionamento aos blocos e escolas de samba. Getúlio viu na festa uma oportunidade de difundir propaganda nacionalista, e passou a encomendar marchinhas para compositores famosos. Artista pago com dinheiro público resiste em falar mal do seu mecenas. 

Continuando nossa linha do tempo, chegamos ao segundo argumento dos que defendem que o poder público pague cachês de artistas no carnaval: “Mas e os pobres, que não podem pagar pelo bloco ou camarote?”. Eu poderia simplesmente responder que carnaval não é uma necessidade básica que o Estado precise prover, e que há dezenas de prioridades antes disso. Mas ainda que fosse, essa pergunta não ficaria sem resposta.

O questionamento é compreensível para quem nunca pisou os pés no carnaval de Salvador, por exemplo. Mas quem está mais familiarizado com a folia sabe que os pobres curtem a festa desde sempre, na pipoca, ou mesmo nos blocos e camarotes com preços mais populares (que agora estão cada vez mais raros, visto que a interferência do poder público acabou destruindo esse mercado). 

Mas há ainda uma derivação desse argumento, que é o de que separar ricos e pobres (na verdade, pagantes e não pagantes) por uma corda seria “segregacionista”. Mas aqui vai um fato que pode causar surpresa a muitos: não foi o governo que inventou o bloco sem cordas. Durante os anos 80 e 90, o trio elétrico patrocinado por uma rede de supermercados (Paes Mendonça) era o maior e mais bem equipado do carnaval baiano. Grátis e sem cordas, ele trazia grandes artistas, tendo revelado Durval Lelys, Daniela Mercury e outros do mesmo calibre (e aqui já contraponho a terceira e última justificativa para o derramamento de dinheiro público no carnaval: mas sem os editais do governo, quem vai bancar os artistas que estão começando?). 

Empresas fazem isso para agregar valor às suas marcas. O histórico de parcerias privadas com artistas em Salvador é longo. Em 2011, Saulo Fernandes (ainda na Banda Eva) reinaugurou o movimento do trio sem cordas, patrocinado por uma cervejaria. Em 2012 e 2013, foi da mesma cervejaria a iniciativa de promover o Chiclete com Banana “gratuitamente” (a palavra certa é subsidiadamente). Em 2016, Bell Marques tocou para a pipoca às custas de um shopping center. Já o Camarote Andante, de Carlinhos Brown, era patrocinado por um banco privado. Será mesmo que se não fosse o governo, o folião pipoca não teria opções?  

A experiência de Salvador indica como uma gama de modelos não estatais, envolvendo patrocínios e parcerias, consegue atender às demandas do folião, independentemente de sua condição financeira. Não só em Salvador, cidade à qual me atenho por ter mais conhecimento de causa (seja como foliã, seja trabalhando diretamente na festa, ou mesmo cobrindo, jornalisticamente). Em diversas cidades, o carnaval popular, dos bloquinhos, das ruas, também é financiado pelas pessoas, associações de bairros, escolas de samba locais, grêmios. Tudo de maneira descentralizada, e muitas vezes com dinheiro dos próprios foliões, ou de pequenos e médios empresários locais.  

Carnaval é uma festa espetacular, que traz retorno financeiro, incrementa o turismo e diverte a população. Mas tem muitos setores interessados em fazê-la dar certo ou em associar a ela sua imagem. Deixemos que eles, voluntariamente, invistam na folia. Deixemos que o público escolha para qual artista vai (ou não) o seu dinheiro. E ao governo e prefeitura, que fiquem cada um no seu quadrado, porque o recurso público é limitado e há setores essenciais precisando dele.  

* Priscila Chammas é jornalista e gerente de conteúdo do Instituto Millenium