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"A abordagem deve ser consultiva e adaptativa", diz Bottino sobre regulação do trabalho em apps

Instituto Millenium entrevista Celina Beatriz Bottino, Diretora de Projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS)

(Instituto Millenium/Divulgação)
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Publicado em 27 de setembro de 2023 às 15h20.

Em resposta à rápida expansão da economia de plataforma no Brasil, em junho o Governo Federal instituiu um grupo de trabalho tripartite, com participação de representantes de trabalhadores, das empresas e do próprio governo, com o objetivo de consensuar propostas regulatórias para este setor. Espera-se que as conclusões deste grupo sejam publicadas no início de outubro. No entanto, o aparente avanço das negociações indica a existência de fortes impasses entre trabalhadores e empresas, o que sugere que o grupo pode chegar a poucos pontos de consenso.

Nesse contexto, o Instituto Millenium conversou com Celina Bottino, Diretora de Projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Com uma formação robusta que inclui Direito pela PUC-Rio e mestrado pela Universidade de Harvard, Bottino oferece uma perspectiva especializada sobre a interseção entre tecnologia e regulação.

Esta entrevista busca elucidar os complexos debates em andamento, as controvérsias jurídicas recentes envolvendo empresas como a Uber e o que podemos esperar das próximas etapas da regulamentação. A dinâmica em rápida evolução da economia de plataforma exige um olhar aguçado sobre os desafios e oportunidades que ela apresenta. Acompanhe conosco essa análise detalhada.

Instituto Millenium: Em face da emergência da economia de plataforma e seus desafios na área trabalhista, como o ITS percebe a necessidade de inovação na regulamentação e a importância da tecnologia nesse debate?

Celina Bottino: Nós do ITS conduzimos uma pesquisa, que já foi publicada, sobre como os termos ligados à tecnologia, como "algoritmo", estão sendo considerados nas decisões judiciais. Surpreendentemente, mais de 90% dessas menções estão relacionadas à justiça do trabalho, com destaque para a ideia de "subordinação ao algoritmo".

Isso aponta para uma evolução na forma como as relações de trabalho estão sendo interpretadas no contexto da economia de plataforma. Se antes a subordinação era percebida em relação ao empregador ou à empresa, agora há uma nova nuance: a subordinação ao algoritmo.

Essa tendência que observamos nas decisões judiciais indica uma possível insegurança jurídica. Dado o cenário atual, com falta de clareza legislativa, o judiciário é frequentemente acionado para interpretações, o que pode resultar em diferentes entendimentos. Portanto, destaco a importância de um diálogo abrangente e multissetorial, buscando estabelecer parâmetros mais claros e adequados para este setor em constante evolução.

IM: Considerando as complexidades em mercados de dois lados, como plataformas, existe algum arranjo institucional que seja capaz de preservar escolha e flexibilidade do modelo sem inibir inovações, nivelando o campo de jogo entre trabalhadores e plataformas?

CB: Estamos claramente diante de um cenário novo e desafiador. A economia de plataforma e as tecnologias que a impulsionam são emergentes, o que significa que os arranjos institucionais tradicionais muitas vezes não se aplicam de maneira direta ou eficaz. Portanto, precisamos construir novos arranjos que sejam adaptados a essa realidade. A chave para isso é garantir um processo participativo e multissetorial. O GT do governo, por exemplo, está se movendo na direção correta ao buscar envolver múltiplos stakeholders no diálogo.

Entretanto, um dos desafios é reconhecer que os trabalhadores da economia de plataforma não são um grupo homogêneo; eles têm variadas necessidades e perspectivas. Para abordar essa complexidade, no ITS, estamos trabalhando na criação de uma plataforma chamada Conecta Trabalhadores, que visa agregar e sintetizar as demandas destes trabalhadores. Esta ferramenta busca identificar se há consensos emergentes ou se as opiniões são diversas. A ideia é tornar o processo de regulação mais refinado e alinhado com as realidades no campo.

Além disso, a transparência é uma questão transversal que não se limita apenas à economia de plataforma. Por exemplo, o debate sobre a regulação das redes sociais e a demanda crescente por transparência nos algoritmos também se insere nesse contexto. Há um consenso geral de que as plataformas precisam ser mais transparentes em suas operações, mas o desafio reside em equilibrar essa necessidade de transparência com a proteção do segredo de negócios e a promoção da inovação. Não queremos criar regulamentos excessivos que possam desencorajar a inovação ou torná-los rapidamente obsoletos devido ao avanço tecnológico.

IM: Com o surgimento de tecnologias web 3.0 e plataformas descentralizadas, por que essas novas abordagens ainda não substituíram ou impactaram significativamente os modelos de plataforma tradicionais, como Uber? Quais são os obstáculos ou desafios para que modelos mais descentralizados alcancem maior adoção e possivelmente mudem as relações de trabalho e regulação nesse setor?

CB: Uma questão fundamental ao considerar a adoção de tecnologias web 3.0 e plataformas descentralizadas é a insegurança jurídica. Atualmente, no Brasil, a incerteza legal pode ter um impacto direto no ritmo de investimentos e no desenvolvimento dessas novas abordagens. É crucial notar que o modelo atual, onde as relações de trabalho estão em um limbo jurídico, apresenta riscos. Decisões judiciais recentes, como a que obrigou o Uber a contratar motoristas sob o regime da CLT [1], introduzem elementos de imprevisibilidade e, muitas vezes, não refletem o desejo da comunidade envolvida, incluindo muitos dos próprios motoristas.

Quando falamos sobre web 3.0, estamos introduzindo um novo nível de complexidade regulatória a um setor já repleto de desafios. Para garantir que a adoção dessas tecnologias inovadoras não seja prejudicada, é imperativo que o processo regulatório seja participativo e inclusivo. A mera existência de uma regulação não garante progresso, especialmente se essa regulação limita a inovação ou não está em sintonia com a realidade do setor.

Podemos olhar para o Marco Civil da Internet como um exemplo de sucesso em regulamentação no ambiente digital. O processo de sua aprovação foi marcado por consultas públicas e participativas. E o fato de ele ter resistido e se mantido relevante ao longo dos anos demonstra que atendeu bem ao propósito para o qual foi criado. Portanto, para que tecnologias web 3.0 e plataformas descentralizadas alcancem sua adoção plena e potencialmente reformulam as relações de trabalho e regulação, é vital que a abordagem regulatória seja informada, consultiva e adaptativa.

[ Nota do Instituto Millenium: A Uber foi condenada a pagar R$ 1 bilhão por danos morais coletivos, além de ser obrigada a registrar todos os motoristas pela CLT. A sentença é do juiz do Trabalho Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, publicada em 14 de setembro de 2023 ]

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Em resposta à rápida expansão da economia de plataforma no Brasil, em junho o Governo Federal instituiu um grupo de trabalho tripartite, com participação de representantes de trabalhadores, das empresas e do próprio governo, com o objetivo de consensuar propostas regulatórias para este setor. Espera-se que as conclusões deste grupo sejam publicadas no início de outubro. No entanto, o aparente avanço das negociações indica a existência de fortes impasses entre trabalhadores e empresas, o que sugere que o grupo pode chegar a poucos pontos de consenso.

Nesse contexto, o Instituto Millenium conversou com Celina Bottino, Diretora de Projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Com uma formação robusta que inclui Direito pela PUC-Rio e mestrado pela Universidade de Harvard, Bottino oferece uma perspectiva especializada sobre a interseção entre tecnologia e regulação.

Esta entrevista busca elucidar os complexos debates em andamento, as controvérsias jurídicas recentes envolvendo empresas como a Uber e o que podemos esperar das próximas etapas da regulamentação. A dinâmica em rápida evolução da economia de plataforma exige um olhar aguçado sobre os desafios e oportunidades que ela apresenta. Acompanhe conosco essa análise detalhada.

Instituto Millenium: Em face da emergência da economia de plataforma e seus desafios na área trabalhista, como o ITS percebe a necessidade de inovação na regulamentação e a importância da tecnologia nesse debate?

Celina Bottino: Nós do ITS conduzimos uma pesquisa, que já foi publicada, sobre como os termos ligados à tecnologia, como "algoritmo", estão sendo considerados nas decisões judiciais. Surpreendentemente, mais de 90% dessas menções estão relacionadas à justiça do trabalho, com destaque para a ideia de "subordinação ao algoritmo".

Isso aponta para uma evolução na forma como as relações de trabalho estão sendo interpretadas no contexto da economia de plataforma. Se antes a subordinação era percebida em relação ao empregador ou à empresa, agora há uma nova nuance: a subordinação ao algoritmo.

Essa tendência que observamos nas decisões judiciais indica uma possível insegurança jurídica. Dado o cenário atual, com falta de clareza legislativa, o judiciário é frequentemente acionado para interpretações, o que pode resultar em diferentes entendimentos. Portanto, destaco a importância de um diálogo abrangente e multissetorial, buscando estabelecer parâmetros mais claros e adequados para este setor em constante evolução.

IM: Considerando as complexidades em mercados de dois lados, como plataformas, existe algum arranjo institucional que seja capaz de preservar escolha e flexibilidade do modelo sem inibir inovações, nivelando o campo de jogo entre trabalhadores e plataformas?

CB: Estamos claramente diante de um cenário novo e desafiador. A economia de plataforma e as tecnologias que a impulsionam são emergentes, o que significa que os arranjos institucionais tradicionais muitas vezes não se aplicam de maneira direta ou eficaz. Portanto, precisamos construir novos arranjos que sejam adaptados a essa realidade. A chave para isso é garantir um processo participativo e multissetorial. O GT do governo, por exemplo, está se movendo na direção correta ao buscar envolver múltiplos stakeholders no diálogo.

Entretanto, um dos desafios é reconhecer que os trabalhadores da economia de plataforma não são um grupo homogêneo; eles têm variadas necessidades e perspectivas. Para abordar essa complexidade, no ITS, estamos trabalhando na criação de uma plataforma chamada Conecta Trabalhadores, que visa agregar e sintetizar as demandas destes trabalhadores. Esta ferramenta busca identificar se há consensos emergentes ou se as opiniões são diversas. A ideia é tornar o processo de regulação mais refinado e alinhado com as realidades no campo.

Além disso, a transparência é uma questão transversal que não se limita apenas à economia de plataforma. Por exemplo, o debate sobre a regulação das redes sociais e a demanda crescente por transparência nos algoritmos também se insere nesse contexto. Há um consenso geral de que as plataformas precisam ser mais transparentes em suas operações, mas o desafio reside em equilibrar essa necessidade de transparência com a proteção do segredo de negócios e a promoção da inovação. Não queremos criar regulamentos excessivos que possam desencorajar a inovação ou torná-los rapidamente obsoletos devido ao avanço tecnológico.

IM: Com o surgimento de tecnologias web 3.0 e plataformas descentralizadas, por que essas novas abordagens ainda não substituíram ou impactaram significativamente os modelos de plataforma tradicionais, como Uber? Quais são os obstáculos ou desafios para que modelos mais descentralizados alcancem maior adoção e possivelmente mudem as relações de trabalho e regulação nesse setor?

CB: Uma questão fundamental ao considerar a adoção de tecnologias web 3.0 e plataformas descentralizadas é a insegurança jurídica. Atualmente, no Brasil, a incerteza legal pode ter um impacto direto no ritmo de investimentos e no desenvolvimento dessas novas abordagens. É crucial notar que o modelo atual, onde as relações de trabalho estão em um limbo jurídico, apresenta riscos. Decisões judiciais recentes, como a que obrigou o Uber a contratar motoristas sob o regime da CLT [1], introduzem elementos de imprevisibilidade e, muitas vezes, não refletem o desejo da comunidade envolvida, incluindo muitos dos próprios motoristas.

Quando falamos sobre web 3.0, estamos introduzindo um novo nível de complexidade regulatória a um setor já repleto de desafios. Para garantir que a adoção dessas tecnologias inovadoras não seja prejudicada, é imperativo que o processo regulatório seja participativo e inclusivo. A mera existência de uma regulação não garante progresso, especialmente se essa regulação limita a inovação ou não está em sintonia com a realidade do setor.

Podemos olhar para o Marco Civil da Internet como um exemplo de sucesso em regulamentação no ambiente digital. O processo de sua aprovação foi marcado por consultas públicas e participativas. E o fato de ele ter resistido e se mantido relevante ao longo dos anos demonstra que atendeu bem ao propósito para o qual foi criado. Portanto, para que tecnologias web 3.0 e plataformas descentralizadas alcancem sua adoção plena e potencialmente reformulam as relações de trabalho e regulação, é vital que a abordagem regulatória seja informada, consultiva e adaptativa.

[ Nota do Instituto Millenium: A Uber foi condenada a pagar R$ 1 bilhão por danos morais coletivos, além de ser obrigada a registrar todos os motoristas pela CLT. A sentença é do juiz do Trabalho Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, publicada em 14 de setembro de 2023 ]

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