Como regularizar terras públicas na Amazônia sem estimular desmatamento
A legislação federal atual permite destinar as florestas públicas para uso sustentável e conservação, e também titular os agricultores com ocupações antigas
Da Redação
Publicado em 30 de setembro de 2022 às 11h37.
Por Brenda Brito
A Amazônia Legal tem cinco milhões de metros quadrados e abrange nove estados brasileiros. Se fosse um país, seria um dos dez maiores do mundo em extensão territorial. Mas, além de concentrar 59% de todo o território brasileiro, um terço das árvores do planeta e 20% das águas doces, a região também conta com 143,6 milhões de hectares — 30% da Amazônia Legal — sem informação de destinação, o que, na prática, representa um enorme risco. Isso porque, sem destino definido, essas áreas sofrem ainda mais pressão de invasores, grilagem, desmatamento e degradação ambiental.
Para se ter ideia, aproximadamente 17 milhões de hectares das florestas federais não destinadas inseridas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP) até 2020 já estão sob o risco de privatização. Esta área corresponde à soma de três dados sobrepostos: área de imóveis georreferenciados para titulação pelo Incra; áreas que o governo federal pretende destinar à regularização fundiária, de acordo com a Câmara Técnica de Destinação de Terras Federais; e imóveis inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Além disso, pelo menos 4,7 milhões de hectares de florestas estaduais não destinadas no CNFP também já estão autodecalaradas como privadas no CAR.
Os dados fazem parte do estudo Propostas para um ordenamento territorial na Amazônia que reduza o desmatamento realizado no âmbito do projeto Amazônia 2030. Uma das principais constatações do levantamento é que a legislação atual já cria bases suficientes para destinar terras públicas para fins sustentáveis, inclusive vedando emitir títulos de terra sobrepostos a florestas públicas. No entanto, os procedimentos para a tomada de decisão sobre o destino dessas áreas, regulados em decreto, não têm assegurado que as prioridades legais sejam atendidas e colocam as florestas em risco de privatização.
Considerando o atual contexto, em que há tentativas de mudar a legislação fundiária no Congresso Nacional, é necessário lançar luz a alguns pontos. O primeiro deles é que, para resolver a situação fundiária desses 30% da Amazônia Legal e evitar o avanço das ocupações ilegais e desmatamento nessa área, não é preciso mudar a lei. É necessário, sim, alinhar a tomada de decisão sobre essa destinação a nível de decreto e procedimentos executivos, já que a forma como é feita hoje leva a resultados contrários à conservação.
Além disso, é essencial que a decisão sobre destinação ocorra de forma transparente. As decisões tomadas pela Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas desde 2013 não passaram por consulta pública e não respeitaram a proibição de titulação privada em florestas públicas. Por isso, precisam ser revistas e cumprir o que indica a legislação: florestas públicas só podem ser destinadas para reconhecimento de territórios indígenas, de comunidades quilombolas e tradicionais, para conservação e concessão florestal.
É preciso lembrar que a destinação de florestas para uso sustentável não impede política de reforma agrária e de regularização fundiária. Há demandas legítimas de titulação de terras em áreas ocupadas há décadas. A legislação federal já permite a titulação de ocupações ocorridas até 2011, com procedimento célere para imóveis da agricultura familiar. Da mesma forma, a reforma agrária pode ocorrer com a desapropriação de áreas improdutivas e retomada de áreas ocupadas ilegalmente por grileiros em regiões com infraestrutura mais consolidada. Isso favorecerá o desenvolvimento da agricultura familiar e reduzirá a pressão por ocupação em áreas de floresta.
Finalmente, harmonizar a tomada de decisão sobre o destino das terras públicas com objetivos de reduzir desmatamento demandará investir na coordenação interinstitucional. Há mais de 20 instituições na Amazônia Legal com atribuição fundiária, considerando governo federal e estaduais. Por isso, disposição para diálogo, credibilidade e transparência serão elementos fundamentais para implementar qualquer plano sério para avançar com a solução dos problemas fundiários na Amazônia.
*BRENDA BRITO é mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA). É Pesquisadora Associada do Imazon, atuando há 17 anos para o aprimoramento de leis e políticas ambientais para conservação da Floresta Amazônica, melhoria da gestão fundiária e mitigação de mudanças climáticas.
Por Brenda Brito
A Amazônia Legal tem cinco milhões de metros quadrados e abrange nove estados brasileiros. Se fosse um país, seria um dos dez maiores do mundo em extensão territorial. Mas, além de concentrar 59% de todo o território brasileiro, um terço das árvores do planeta e 20% das águas doces, a região também conta com 143,6 milhões de hectares — 30% da Amazônia Legal — sem informação de destinação, o que, na prática, representa um enorme risco. Isso porque, sem destino definido, essas áreas sofrem ainda mais pressão de invasores, grilagem, desmatamento e degradação ambiental.
Para se ter ideia, aproximadamente 17 milhões de hectares das florestas federais não destinadas inseridas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP) até 2020 já estão sob o risco de privatização. Esta área corresponde à soma de três dados sobrepostos: área de imóveis georreferenciados para titulação pelo Incra; áreas que o governo federal pretende destinar à regularização fundiária, de acordo com a Câmara Técnica de Destinação de Terras Federais; e imóveis inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Além disso, pelo menos 4,7 milhões de hectares de florestas estaduais não destinadas no CNFP também já estão autodecalaradas como privadas no CAR.
Os dados fazem parte do estudo Propostas para um ordenamento territorial na Amazônia que reduza o desmatamento realizado no âmbito do projeto Amazônia 2030. Uma das principais constatações do levantamento é que a legislação atual já cria bases suficientes para destinar terras públicas para fins sustentáveis, inclusive vedando emitir títulos de terra sobrepostos a florestas públicas. No entanto, os procedimentos para a tomada de decisão sobre o destino dessas áreas, regulados em decreto, não têm assegurado que as prioridades legais sejam atendidas e colocam as florestas em risco de privatização.
Considerando o atual contexto, em que há tentativas de mudar a legislação fundiária no Congresso Nacional, é necessário lançar luz a alguns pontos. O primeiro deles é que, para resolver a situação fundiária desses 30% da Amazônia Legal e evitar o avanço das ocupações ilegais e desmatamento nessa área, não é preciso mudar a lei. É necessário, sim, alinhar a tomada de decisão sobre essa destinação a nível de decreto e procedimentos executivos, já que a forma como é feita hoje leva a resultados contrários à conservação.
Além disso, é essencial que a decisão sobre destinação ocorra de forma transparente. As decisões tomadas pela Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas desde 2013 não passaram por consulta pública e não respeitaram a proibição de titulação privada em florestas públicas. Por isso, precisam ser revistas e cumprir o que indica a legislação: florestas públicas só podem ser destinadas para reconhecimento de territórios indígenas, de comunidades quilombolas e tradicionais, para conservação e concessão florestal.
É preciso lembrar que a destinação de florestas para uso sustentável não impede política de reforma agrária e de regularização fundiária. Há demandas legítimas de titulação de terras em áreas ocupadas há décadas. A legislação federal já permite a titulação de ocupações ocorridas até 2011, com procedimento célere para imóveis da agricultura familiar. Da mesma forma, a reforma agrária pode ocorrer com a desapropriação de áreas improdutivas e retomada de áreas ocupadas ilegalmente por grileiros em regiões com infraestrutura mais consolidada. Isso favorecerá o desenvolvimento da agricultura familiar e reduzirá a pressão por ocupação em áreas de floresta.
Finalmente, harmonizar a tomada de decisão sobre o destino das terras públicas com objetivos de reduzir desmatamento demandará investir na coordenação interinstitucional. Há mais de 20 instituições na Amazônia Legal com atribuição fundiária, considerando governo federal e estaduais. Por isso, disposição para diálogo, credibilidade e transparência serão elementos fundamentais para implementar qualquer plano sério para avançar com a solução dos problemas fundiários na Amazônia.
*BRENDA BRITO é mestre e doutora em Ciência do Direito pela Universidade Stanford (EUA). É Pesquisadora Associada do Imazon, atuando há 17 anos para o aprimoramento de leis e políticas ambientais para conservação da Floresta Amazônica, melhoria da gestão fundiária e mitigação de mudanças climáticas.