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A vanguarda da alta gastronomia vem da produção regenerativa

O futuro do investimento e consumo está em um tripé de negócios que une agricultura, turismo e luxo sustentáveis para produtos e serviços de maior valor

Tecnologia e práticas regenerativas podem alavancar agricultura mais sustentável (Thomas Barwick/Getty Images)

Tecnologia e práticas regenerativas podem alavancar agricultura mais sustentável (Thomas Barwick/Getty Images)

AM

Publicado em 9 de dezembro de 2025 às 13h28.

Última atualização em 9 de dezembro de 2025 às 15h22.

O mercado global está redefinindo o conceito de valor. Por décadas, a eficiência produtiva foi medida pela capacidade de extrair o máximo da terra e dos recursos ao menor custo. Hoje, essa equação não apenas se esgotou, como se tornou um passivo de risco. O futuro do investimento e do consumo está em um novo tripé de negócios que une agricultura regenerativa, turismo sustentável e alta gastronomia, criando um círculo virtuoso que garante rentabilidade e resiliência climática para o Brasil. Bom. De certa forma para o resto do mundo também.

O primeiro sinal dessa guinada se manifesta na vanguarda cultural: a gastronomia. Chefs de cozinha, restaurateurs e donos de marcas alimentícias se tornaram grandes influenciadores de padrões de consumo. Essa elite da gastronomia está cada vez mais engajada com a origem, a história e a narrativa por trás de cada ingrediente. Para que um produto alcance o status de alto valor no prato, ele precisa contar uma história de produção limpa – socialmente correta e ecologicamente restauradora.

Essa convergência de valores ganha visibilidade em plataformas que apontam tendências. O Organic Festival, que acontece todo ano em Trancoso, na Bahia, é um exemplo claro de como essa sinergia funciona na prática. Ao reunir grandes chefs, marcas e especialistas em um local que é reconhecido por lançar moda e prever os rumos o consumo do luxo no Sudeste, o festival transforma o debate sobre sustentabilidade em algo culturalmente aspiracional, servindo como um poderoso antecipador do que se expandirá para o resto do país e do mundo.

A edição de 2025 do Organic Festival reuniu, na virada de outubro para novembro, chefs como Neka Menna Barreto, Morena Leite e Roberta Sudbrack. Reuniu centenas de turistas, empresários e proprietários de casas nos condomínios da região. Como em muitos eventos contemporâneos, o que realmente envolveu quem estava lá presencialmente de Havaianas na areia é complementado pela experiência vivenciada por todos os que receberam as ondas de repercussão do festival pelas suas redes sociais, via seus amigos e influenciadores.

Essa visão estratégica é confirmada pelos criadores do evento. Bob Shevlin, cofundador do hotel UXUA e do festival, define a figura central dessa transformação: "Acredito que chefs no Brasil são como astros do rock, costumo chamá-los de ‘influenciadores dos influenciadores’, e esse foi um conceito-chave do Organic Festival: usar essas figuras tão influentes para endossar o movimento de conservação e torná-lo culturalmente aspiracional." O também organizador Charles Piriou compartilha essa visão de ditador de tendências, comparando a alta gastronomia à alta costura: "Ela tem holofotes. Portanto, desempenha papel fundamental na difusão de conceitos de um sistema alimentar mais sustentável." A plataforma de Trancoso capitaliza essa influência cultural para gerar uma demanda real e escalável no mercado.

Essa nova narrativa exige uma mudança profunda na produção. Ela valoriza iniciativas que mantêm a vegetação nativa, integram o mínimo uso de químicos, promovem a biodiversidade, utilizam ingredientes locais, e preservam os recursos hídricos. A proximidade entre o produtor e o centro de consumo também é um fator de valor, reduzindo o impacto logístico e fortalecendo as comunidades rurais. A história se torna, assim, um atributo positivo intrínseco que o consumidor de alto poder aquisitivo está disposto a pagar.

Essa priorização do impacto do produto, no entanto, não é gratuita; ela exige uma transformação na gestão do negócio. Lara Espírito Santo, fundadora do SEM Restaurant & Wine Bar em Lisboa, um dos expoentes dessa tendência, explica que é preciso "reinventar a lógica da construção do cardápio". A ementa passa a depender da disponibilidade sazonal e da capacidade do produtor, forçando o chef a improvisar constantemente. A lógica é invertida: a cozinha é quem se adapta ao que a terra pode oferecer, e não o inverso. Essa flexibilidade operacional é o preço da autenticidade e da sustentabilidade que, paradoxalmente, gera um diferencial de valor inestimável para o consumidor final.

Essa filosofia ganha corpo e estrutura no próprio epicentro da tendência. O restaurante e hub cultural Almar, no histórico Ponto dos Pescadores em Trancoso, é um manifesto arquitetônico do turismo regenerativo. O sócio Marcel Leite desfez as construções de alvenaria de um empreendimento anterior no local, liberando espaço de restinga livre para a circulação da brisa e das marés, e utilizando estruturas leves de madeira de demolição. Essa abordagem desimpedida, sem barreiras sólidas contra o oceano, não só resgata as raízes culturais da Praia dos Coqueiros, mas garante resiliência ao futuro avanço do nível do mar. No pilar gastronômico, o Almar investe diretamente na transformação da cadeia, construindo uma rede de fornecedores de agrofloresta e ajudando a criar um esquema de cooperativa por pontos. Nesse modelo, a diversidade de produtos (de mandioca a abóboras) é valorizada, e o grupo de produtores consegue garantir a confiança de quantidade para o comprador, conferindo maior segurança à pequena produção.

O que se torna evidente é que a junção de alta gastronomia, turismo regenerativo e agricultura regenerativa não é apenas uma moda, mas uma oportunidade para gerar grandes negócios e impulsionar a renovação da agricultura brasileira como um todo. Produtores e empresas que beneficiam alimentos estão rapidamente investindo nesse campo, aproveitando o imenso potencial biológico do país para desenvolver produtos premium tanto para consumo interno quanto para exportação.

Essa tendência não se limita ao prato ou ao hotel de luxo; ela é capitalizada por empresas com capacidade de escala que fazem a ponte entre a produção sustentável no campo e o consumidor de alto volume. A Companhia dos Fermentados exemplifica esse movimento. Segundo Fernando Goldenstein, sócio-diretor da empresa, a indústria tem a "chance de poder acessar os produtores rurais, direto na fonte", eliminando atravessadores e atestando a qualidade de baixa intervenção ou orgânica. A estratégia é transformar o custo do cuidado com a terra em valor de marca, contando a história dos pequenos produtores. Nas palavras de Fernando: "Eu, como industrial, procuro sempre contar a história do produtor agrícola, botar ele em evidência. A gente mostra quem é o produtor, nas redes sociais, e divulga o trabalho deles." Essa abordagem não apenas garante a matéria-prima com um atributo de impacto positivo, mas também usa a escala da indústria para alavancar e dar visibilidade aos pequenos agricultores, conscientizando o consumidor sobre a importância de ler os rótulos e questionar a origem, mesmo em bebidas.

A Mata Atlântica brasileira é uma das regiões com maior potencial para iniciar essa transformação. Existe uma nova economia silenciosamente crescendo na sombra das árvores, ao longo dos rios de água fresca e diante do litoral azul. O produto precioso é Mata Atlântica, nosso bioma mais ameaçado e, paradoxalmente, o mais estratégico. Nós, os povos da Mata Atlântica, detemos o potencial para desenvolver um modelo de prosperidade que casa com a produção agrícola regenerativa, a alimentação orgânica e o turismo de natureza. Essa tríade não é uma utopia ecológica, mas a resposta exata para a demanda de um consumidor global — e de grandes centros urbanos — que busca autenticidade, segurança natural e, acima de tudo, a recuperação da saúde mental e física. A proximidade dos centros urbanos com o bioma significa que a população com maior capacidade de investir e viajar está a um passo desse novo tipo de conforto, alto luxo e alta qualidade com propósito.

É uma transformação em duas bases. O primeiro pilar é a agricultura regenerativa. Esse modelo, que une ciência e tradição para recuperar a saúde do solo, garante rentabilidade e segurança ao produtor, pois aumenta a infiltração de água, captura carbono e fortalece a produtividade mesmo sob seca ou calor extremo. Onde há agricultura regenerativa, há segurança alimentar e produtos premium com alto valor de mercado. A alta gastronomia já percebeu isso. O segundo pilar é o turismo regenerativo, é o vetor que transforma essa produção em resiliência comunitária. Neste modelo, o turista não é apenas um cliente, mas um patrocinador intencional que busca deixar o lugar melhor do que encontrou, financiando a recuperação ambiental e fortalecendo o capital social. O turismo de alto luxo está percebendo isso.

A grande chave para o investimento, no entanto, é a resiliência.

As mudanças climáticas já são uma realidade, manifestando-se em eventos extremos que tornam a agricultura convencional – dependente de constância e previsibilidade – cada vez mais vulnerável. Sistemas de produção regenerativa, que trabalham em harmonia com o meio ambiente, mantêm a saúde do solo, e protegem os mananciais, são intrinsecamente mais resistentes. Eles oferecem maior capacidade de resistir a períodos de estiagem prolongada ou chuvas intensas.

Além do equilíbrio ambiental, a diversificação de produtos inerente a muitas práticas regenerativas, como a agrofloresta ou os sistemas integrados de lavoura-pecuária-floresta, fornece uma camada extra de segurança. Se o clima afeta a produção de uma cultura em determinado momento, o produtor tem outras que pode comercializar. Isso garante estabilidade não só para o produtor rural, mas para todo o sistema de crédito e seguro que o envolve. Quem financia, compra títulos ou assegura a produção rural tem, portanto, mais segurança e previsibilidade ao apostar nessas práticas.

O movimento começa no mercado de luxo, com consumidores de alta cultura e informação, mas está em rápida escalada para grandes empresas e produtores com capacidade de expansão. Essa transformação será benéfica para toda a cadeia de sistemas alimentares do Brasil. É uma tendência de negócios para ficar atento, pois quem entender o valor da regeneração e apostar primeiro terá uma vantagem competitiva decisiva na próxima década. A rentabilidade do futuro está no solo que cuidamos.

O Organic Festival de Trancoso também é simbólico por outro motivo: a estratégia de atuação. Ele foi idealizado como parte de um plano maior e mais ambicioso para ordenamento - ou orientação - da vocação do território. O plano é criar, em parceria com os poderes públicos, organizações sociais e empresariado local, um novo desenho sustentável na região. O núcleo seria o turismo de alto luxo, para viajantes endinheirados e com capacidade para valorizar sustentabilidade e cultura. Esse núcleo de atividades turísticas, com comércio, hospedagem, passeios e alimentação, estaria rodeado por um cinturão verde, com produção agrícola sustentável e urbanização e serviços públicos em harmonia com os recursos naturais. E num círculo mais amplo, uma faixa de áreas de preservação ou uso sustentável como reservas naturais, áreas extrativistas e terras indígenas. Ou seja, o festival faz parte de um plano de “pense globalmente, aja localmente”. Essa é uma estratégia promissora para enfrentar os desafios atuais.