Liderança e a Ilusão do Controle
“Fico triste ao constatar que, nos últimos anos, desde que a incerteza se tornou nossa companhia constante, as estratégias de liderança deram um grande salto para trás, voltando ao território conhecido do comando e controle. Em parte, isso era esperado, já que os seres humanos fogem para o que conhecem quando confrontados com o desconhecido. Mas, em parte, fiquei surpresa, pois não sabia que somos tão estúpidos. Eu achava que […] Leia mais
Publicado em 27 de junho de 2016 às, 14h40.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 07h36.
“Fico triste ao constatar que, nos últimos anos, desde que a incerteza se tornou nossa companhia constante, as estratégias de liderança deram um grande salto para trás, voltando ao território conhecido do comando e controle. Em parte, isso era esperado, já que os seres humanos fogem para o que conhecem quando confrontados com o desconhecido. Mas, em parte, fiquei surpresa, pois não sabia que somos tão estúpidos. Eu achava que tínhamos aprendido alguma coisa depois de tantos experimentos relacionados a inovação, qualidade e motivação humana. Por que não aprendemos que, sempre que tentamos controlar pessoas e situações, elas se tornam ainda mais incontroláveis?”
(Margaret J. Wheatley – Liderança Para Tempos de Incerteza)
Há alguns anos, recebi de presente da Adriana Tieppo, grande amiga e mentora, uma provocação incrível sobre a ilusão do controle, principalmente quando falamos da complexidade em sistemas vivos, pessoas, etc.
Ela compartilhou um trecho do filme Instinto (1998), em que o personagem de Anthony Hopkins, antropólogo sob custódia do governo americano, trava um intenso, profundo e agressivo diálogo com o personagem de Cuba Gooding Jr., psiquiatra responsável por seu caso.
O psiquiatra quer que o antropólogo fale sobre sua filha, sendo que ele educadamente se recusa. Porém, ao tentar persuadi-lo e obrigá-lo a fazer isso, o personagem de Gooding Jr. joga com o fato de ter o controle sobre sua liberdade, a liberação do uso de remédios e de seu futuro. Com isso, o personagem de Hopkins questiona: “Então, você está no controle?”.
Assim que o psiquiatra responde “Sim”, o antropólogo o agarra, o imobiliza e coloca uma fita em sua boca. Em seguida, pergunta: “Quem está no controle agora?”. Sufocando-o, propõe um teste de vida ou morte em que o personagem de Gooding Jr. terá apenas três chances para acertar a resposta das perguntas do personagem de Hopkins.
“O que eu tirei de você?” é a primeira indagação, sendo respondida erroneamente com “Controle”. “Errado! Você nunca controlou nada!”, diz o antropólogo. A segunda é “O que você perdeu”, em que o psiquiatra retruca com “Minha liberdade”.
“Seu tolo! Você pensou que era livre? Onde você foi às 14h? Foi para a academia? De manhã, o que te fez acordar? O que te faz ficar preso a esse trabalho aqui, ambição?”, replica o antropólogo que, em seguida, ameaça o psiquiatra relembrando-o que ele só tem mais uma chance.
“O que você perdeu? O que eu tirei de você?”, indaga o personagem de Hopkins. “Minhas ilusões”, responde o outro. Com um sorrisinho no rosto, o antropólogo o parabeniza e o liberta dizendo: “Não perdeu nada além de suas ilusões”.
Ilusão. O controle sobre sistemas vivos e pessoas é pura ilusão, assim como a tentativa de dirigi-los. Mas, se não temos controle ou direção sobre outras pessoas, de que maneira podemos exercer o papel da liderança? De que maneira podemos influenciar pessoas e sistemas para movimentos de transformação ou mesmo para um grande objetivo ou propósito?
Tenho aprendido e acredito que a liderança não está em uma pessoa ou em uma competência. A liderança acontece na relação. No espaço entre. É um conviver. Agora, já que não podemos dirigir, controlar ou mesmo prever o que outra pessoa escolhe, faz e pensa, o que podemos fazer?
“Não se pode dirigir um sistema vivo. Só sensibilizá-lo.”
(Maturana e Varela)
Podemos fazer algumas coisas, como sensibilizar o outro ou um sistema:
Bons convites: podemos nos colocar em um lugar de aceitação de que o controle é uma ilusão, de aceitação de que o que enxergamos é apenas uma perspectiva da realidade e não a verdade, de aceitação de que o outro é também um ser humano igual a nós. E, neste lugar, fazer um bom convite.
Um convite não é uma convocação ou ordem, mas uma pergunta que pressupõe que o outro terá inteligência, maturidade e liberdade o suficiente para respondê-lo com o que julgar ser melhor para ele mesmo. Também se pressupõe que teremos inteligência, maturidade e liberdade para lidar com a resposta.
Bons convites podem nos sensibilizar, nos fazer ver algo que até então não víamos e nos ajudam a iniciar importantes movimentos de transformação. E, nessa interação entre quem faz o bom convite e quem o aceita ou não, há liderança.
“Os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela explicam que mais de 80% das informações que usamos para criar percepções visuais do mundo já estão dentro do cérebro. (…) Num sistema, as informações que vêm de fora só perturbam: não funcionam como instruções objetivas.”
(Margaret J. Wheatley – Liderança Para Tempos de Incerteza)
Mudar algo em nós que perturbe o atual equilíbrio da relação/do sistema: todas as relações e sistemas vivos se configuram em um determinado equilíbrio e ficam assim enquanto ele funciona. A partir do momento que o equilíbrio para de funcionar, ou seja, quando um dos membros percebe que outro equilíbrio poderia funcionar melhor ou fazer mais sentido, tem-se a chamada oportunidade de evolução que uma crise pode proporcionar. Como fazer isso?
Como toda relação e sistema vivo está interconectado, podemos sensibilizar ou influenciar uma mudança, fazendo algo diferente em nós mesmos. É possível escolher algo simples, mas que cause impacto nas relações. Fazendo esse algo diferente, perturbamos o equilíbrio atual da relação ou das conexões do sistema, obrigando-o a fazer algo para se reequilibrar e reconfigurar. Agora, nós não teremos controle sobre qual será o novo equilíbrio, mas saberemos que ele será diferente do atual.
O estado de recurso e a intenção são pré-requisitos essenciais para que os bons convites e as tentativas de perturbar o equilíbrio do sistema tenham a possibilidade de caminhar num propósito essencial mais próximo daquele que nós acreditamos ser a escolha que mais faz sentido.
Estado de recurso é aquele estado em que estamos presentes, 100% envolvidos na experiência, centrados, podendo usar nossas múltiplas inteligências e recursos que organismo, corpo, mente, etc. nos dão. Existe uma série de exercícios para acessar esse estado e você pode pesquisar e experimentá-los até encontrar os mais adequados para você. (Faça uma busca sobre exercícios de centramento, de presença, de meditação e de mindfulness).
Clarificar nossas intenções, para nós mesmos e para os outros, é essencial para o movimento e para o exercício da liderança no espaço entre. Os exercícios para nos conectarmos ao estado de recurso são, também, muito úteis para desvelarmos e nos conectarmos às nossas verdadeiras intenções.
Comece simples, você já sabe fazer isso: o convite é que comecemos o movimento de maneira simples, mas com a confiança de que já sabemos e praticamos tudo o que está aqui escrito em diversas situações em nossas vidas, principalmente nas relações.
Isso é evidenciado na experiência da maternidade/paternidade. Se pararmos para pensar e relembrarmos das nossas histórias de vida e transformação, vamos enxergar nelas a crise, a evolução e a diferença que fez estarmos presentes. Além disso, é possível observar como usamos os bons convites, mudamos algo em nós e como isso impactou uma série de outras mudanças nos outros.
Vamos crescer juntos e evoluir como líderes no contexto da complexidade e da incerteza e do erro, não fazendo liderança, mas convivendo liderança.