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O começo do Lula IV? A economia e os mercados agradeceriam

2025 pode marcar o começo de um governo mais alinhado ao centro e menos revanchista, capaz de ler o zeitgeist e sensível às noções básicas da contabilidade

A ideia de que precisamos cortar gastos agora para não impedir obras às vésperas da eleição de 2026, é bastante simples (Ricardo Stuckert / PR/Divulgação)

Publicado em 16 de novembro de 2024 às 11h04.

“O que eu espero, senhores, é que, depois de um razoável período de discussão, todo mundo concorde comigo.” A ironia de Winston Churchill já identificava o viés de confirmação muito antes das Finanças Comportamentais documentarem o fenômeno em journals renomados.

Tanto nas eleições municipais brasileiras quanto no pleito presidencial dos EUA, parte relevante da esquerda correu para explicar o fenômeno do “pobre de direita”, que faria essa escolha ancorado num único atributo: a burrice. Narciso acha feio o que não é espelho. E quando Paulo fala sobre Pedro, isso diz muito mais sobre Paulo do que sobre Pedro…

Há melhor elaboração para a crescente penetração da direita entre as camadas mais baixas da população, que historicamente votaram mais à esquerda e agora migram ao outro espectro político.

Comecemos com explicações melhores de dentro da própria esquerda. Vladimir Safatle, que, ao menos até agora, ainda não foi chamado de “rentista" ou “genocida”, tem sido bastante incisivo em suas declarações para cravar que a esquerda, tal como conhecemos, está morta, desprovida de discurso para a periferia.

Afastou-se por completo das pautas originais em prol de melhor distribuição de renda e participação direta nas democracias, para se perder numa “constelação de progressismos” (a expressão é dele). Boletos pagos e menstruação em dia importam mais do que a discussão se vamos com todos ou todes.

Em artigo n'O Globo, Demétrio Magnoli, falando sobre a eleição de Donald Trump, destacou: “os grupos minoritários esculpidos pela política identitária recusaram o papel a eles atribuído: fornecer uma massa compacta de votos ao partido que alega representá-los.”

Para ele, morreu a política identitária, pois, depois do resultado nos EUA, “nenhum partido político sério, nos EUA ou fora dele, renunciará à vitória em nome de um totem oco.”

A falta de identificação com a cultura woke não é o único argumento, claro. Boa parte do discurso da esquerda, incluindo o clássico da exploração do proletariado por aquele que detém os meios e modos de produção, se assenta na perspectiva de uma economia industrial, com muito peso dos sindicatos.

Ocorre que, hoje, a sociedade está muito mais pautada por serviços e por uma menor associação sindical. Manter a conexão com as classes baixas exigiria uma atualização do discurso, que não aconteceu. A velha máxima: “se o mundo muda, eu mudo”. Insiste-se na tal luta de classes, falando para um proletariado que não existe mais.

Há uma hipérbole em “não existe mais”, evidente. O rigor requereria algo na linha de “ficou menor”. Inclino-me a certos exageros para demonstrar o ponto. Você entendeu.

Quando tentou-se a regulação dos motoristas de aplicativos, para enquadrá-los nos moldes da CLT, quem rejeitou a mudança foram os próprios trabalhadores, não os sindicatos patronais.

Com a disseminação da “teologia da prosperidade” e dos serviços autônomos, emergem o sonho empreendedor, o trabalho híbrido, a flexibilidade. A presença do Estado, que antes ajudava com auxílios, subsídios, bolsas e uma rede de proteção social, agora passa a ser um entrave burocrático, um impiedoso cobrador de impostos e uma barreira à livre iniciativa.

Pode ser ainda uma explicação mais simples. A sociedade percebeu que insistimos em medidas e propostas que simplesmente não funcionam.

No caso norte-americano, a percepção da herança de nível de preços alto, dificuldades de solução de guerras e insatisfação com a política imigratória prejudicaram uma avaliação mais positiva do governo Biden.

No caso brasileiro, há um certo restauracionismo em curso, flertando com o resgate de algo parecido com a famigerada "nova matriz econômica", que por sua vez ressuscitava o Segundo PND. Não deu certo em nenhuma das vezes. E é muito provável que não vá dar certo de novo.

Possivelmente o fenômeno se explique por uma combinação de todas essas coisas. Ou alguma outra. Não sei. Para nossos fins, porém, não importam muito as causas.

O fato concreto é que o zeitgeist, demonstrado pela “onda republicana” nos EUA e pelas eleições municipais brasileiras, sugere um sentimento menos favorável à esquerda, em prol do centro e/ou da direita. Isso passa por um ambiente de menor intervencionismo e gigantismo estatal, mais pró-mercado, pró-desregulamentação, pró-desburocratização.

No caso do Brasil, não é só o zeitgeist que empurra nessa direção. A aritmética elementar das contas públicas também exige revisitarmos o tamanho do Estado e de seus gastos.

As despesas obrigatórias crescem em ritmo acelerado, muitas delas vinculadas à velocidade de expansão das receitas, outras associadas à evolução do salário mínimo, que, por sua vez, tem tido ganhos reais, acima da inflação. Como o arcabouço fiscal tem um limite para o crescimento da despesa total, os gastos discricionários vão sendo esmagados.

Por construção, contratamos uma revisão dos dispêndios ou um abandono do arcabouço. As despesas discricionárias vão sendo esmagadas a ponto de ensejarem o risco de paralisação dos serviços públicos (a exemplo do “shutdown” já observado no governo norte-americano no passado) e/ou de interrupção de obras do PAC.

Enquanto escrevo essas linhas, o país aguarda com ansiedade o tal pacote de corte de gastos. O inexorável chega agora ou depois.

A sociedade e o Congresso já emitem sinais de alinhamento ao zeitgeist. Historicamente, o presidente da República forneceu evidências sucessivas de sua sensibilidade política e da capacidade de leitura do pêndulo político, ainda que a necessidade de equilibrar-se entre os dois personagens (o presidente pragmático e o militante de esquerda) impedisse manifestações explícitas, deixando a compreensão apenas no espectro tácito.

Ainda que tenha se perdido parte dessa sensibilidade e alguns bons conselheiros do passado tenham ficado pelo caminho, a ideia de que precisamos cortar gastos agora para não impedir as obras do PAC ou outras despesas às vésperas da eleição de 2026, é bastante simples e de fácil captura pela intuição.

O ano de 2025 pode ser apenas uma ponte para uma discussão mais profunda de Brasil e de sua política econômica até a próxima eleição presidencial. Pode ser também quando já iniciamos o Lula IV, um governo mais alinhado ao centro, menos revanchista e rancoroso, capaz de ler o zeitgeist e sensível às noções triviais da contabilidade nacional.

O sapo não pula por boniteza, mas por precisão. A economia e os mercados agradeceriam. Dado o nível de desalento e os preços dos ativos escandalosamente descontados, sob "nova" direção, os próximos dois anos poderiam ser bem mais auspiciosos.

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“O que eu espero, senhores, é que, depois de um razoável período de discussão, todo mundo concorde comigo.” A ironia de Winston Churchill já identificava o viés de confirmação muito antes das Finanças Comportamentais documentarem o fenômeno em journals renomados.

Tanto nas eleições municipais brasileiras quanto no pleito presidencial dos EUA, parte relevante da esquerda correu para explicar o fenômeno do “pobre de direita”, que faria essa escolha ancorado num único atributo: a burrice. Narciso acha feio o que não é espelho. E quando Paulo fala sobre Pedro, isso diz muito mais sobre Paulo do que sobre Pedro…

Há melhor elaboração para a crescente penetração da direita entre as camadas mais baixas da população, que historicamente votaram mais à esquerda e agora migram ao outro espectro político.

Comecemos com explicações melhores de dentro da própria esquerda. Vladimir Safatle, que, ao menos até agora, ainda não foi chamado de “rentista" ou “genocida”, tem sido bastante incisivo em suas declarações para cravar que a esquerda, tal como conhecemos, está morta, desprovida de discurso para a periferia.

Afastou-se por completo das pautas originais em prol de melhor distribuição de renda e participação direta nas democracias, para se perder numa “constelação de progressismos” (a expressão é dele). Boletos pagos e menstruação em dia importam mais do que a discussão se vamos com todos ou todes.

Em artigo n'O Globo, Demétrio Magnoli, falando sobre a eleição de Donald Trump, destacou: “os grupos minoritários esculpidos pela política identitária recusaram o papel a eles atribuído: fornecer uma massa compacta de votos ao partido que alega representá-los.”

Para ele, morreu a política identitária, pois, depois do resultado nos EUA, “nenhum partido político sério, nos EUA ou fora dele, renunciará à vitória em nome de um totem oco.”

A falta de identificação com a cultura woke não é o único argumento, claro. Boa parte do discurso da esquerda, incluindo o clássico da exploração do proletariado por aquele que detém os meios e modos de produção, se assenta na perspectiva de uma economia industrial, com muito peso dos sindicatos.

Ocorre que, hoje, a sociedade está muito mais pautada por serviços e por uma menor associação sindical. Manter a conexão com as classes baixas exigiria uma atualização do discurso, que não aconteceu. A velha máxima: “se o mundo muda, eu mudo”. Insiste-se na tal luta de classes, falando para um proletariado que não existe mais.

Há uma hipérbole em “não existe mais”, evidente. O rigor requereria algo na linha de “ficou menor”. Inclino-me a certos exageros para demonstrar o ponto. Você entendeu.

Quando tentou-se a regulação dos motoristas de aplicativos, para enquadrá-los nos moldes da CLT, quem rejeitou a mudança foram os próprios trabalhadores, não os sindicatos patronais.

Com a disseminação da “teologia da prosperidade” e dos serviços autônomos, emergem o sonho empreendedor, o trabalho híbrido, a flexibilidade. A presença do Estado, que antes ajudava com auxílios, subsídios, bolsas e uma rede de proteção social, agora passa a ser um entrave burocrático, um impiedoso cobrador de impostos e uma barreira à livre iniciativa.

Pode ser ainda uma explicação mais simples. A sociedade percebeu que insistimos em medidas e propostas que simplesmente não funcionam.

No caso norte-americano, a percepção da herança de nível de preços alto, dificuldades de solução de guerras e insatisfação com a política imigratória prejudicaram uma avaliação mais positiva do governo Biden.

No caso brasileiro, há um certo restauracionismo em curso, flertando com o resgate de algo parecido com a famigerada "nova matriz econômica", que por sua vez ressuscitava o Segundo PND. Não deu certo em nenhuma das vezes. E é muito provável que não vá dar certo de novo.

Possivelmente o fenômeno se explique por uma combinação de todas essas coisas. Ou alguma outra. Não sei. Para nossos fins, porém, não importam muito as causas.

O fato concreto é que o zeitgeist, demonstrado pela “onda republicana” nos EUA e pelas eleições municipais brasileiras, sugere um sentimento menos favorável à esquerda, em prol do centro e/ou da direita. Isso passa por um ambiente de menor intervencionismo e gigantismo estatal, mais pró-mercado, pró-desregulamentação, pró-desburocratização.

No caso do Brasil, não é só o zeitgeist que empurra nessa direção. A aritmética elementar das contas públicas também exige revisitarmos o tamanho do Estado e de seus gastos.

As despesas obrigatórias crescem em ritmo acelerado, muitas delas vinculadas à velocidade de expansão das receitas, outras associadas à evolução do salário mínimo, que, por sua vez, tem tido ganhos reais, acima da inflação. Como o arcabouço fiscal tem um limite para o crescimento da despesa total, os gastos discricionários vão sendo esmagados.

Por construção, contratamos uma revisão dos dispêndios ou um abandono do arcabouço. As despesas discricionárias vão sendo esmagadas a ponto de ensejarem o risco de paralisação dos serviços públicos (a exemplo do “shutdown” já observado no governo norte-americano no passado) e/ou de interrupção de obras do PAC.

Enquanto escrevo essas linhas, o país aguarda com ansiedade o tal pacote de corte de gastos. O inexorável chega agora ou depois.

A sociedade e o Congresso já emitem sinais de alinhamento ao zeitgeist. Historicamente, o presidente da República forneceu evidências sucessivas de sua sensibilidade política e da capacidade de leitura do pêndulo político, ainda que a necessidade de equilibrar-se entre os dois personagens (o presidente pragmático e o militante de esquerda) impedisse manifestações explícitas, deixando a compreensão apenas no espectro tácito.

Ainda que tenha se perdido parte dessa sensibilidade e alguns bons conselheiros do passado tenham ficado pelo caminho, a ideia de que precisamos cortar gastos agora para não impedir as obras do PAC ou outras despesas às vésperas da eleição de 2026, é bastante simples e de fácil captura pela intuição.

O ano de 2025 pode ser apenas uma ponte para uma discussão mais profunda de Brasil e de sua política econômica até a próxima eleição presidencial. Pode ser também quando já iniciamos o Lula IV, um governo mais alinhado ao centro, menos revanchista e rancoroso, capaz de ler o zeitgeist e sensível às noções triviais da contabilidade nacional.

O sapo não pula por boniteza, mas por precisão. A economia e os mercados agradeceriam. Dado o nível de desalento e os preços dos ativos escandalosamente descontados, sob "nova" direção, os próximos dois anos poderiam ser bem mais auspiciosos.

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