O Brasil antifrágil
O Brasil macunaímico é lembrado pela complacência e mediocridade. Mas temos outro atributo: uma tendência a regressar à média que impede grandes rupturas
Da Redação
Publicado em 25 de março de 2022 às 12h02.
Felipe Miranda
Se vamos cancelar o estrogonofe, o que considero uma perda irreparável, havemos de, com urgência, preservar os pensadores. Poucos compreenderam tão bem a alma humana quanto os escritores russos. Não uma alma no sentido espiritual, claro. Afinal, o próprio Dostoiévski viria me corrigir. “Tenho de proclamar a minha incredulidade. Para mim não há nada de mais elevado do que a ideia da inexistência de Deus. O homem inventou Deus para poder viver sem se matar”, insistiria. Dostoiévski serve para qualquer momento, inclusive, e talvez principalmente, para o atual. Ao ler as manchetes, ele logo poderia perguntar: “Não será preferível corrigir, recuperar e educar um ser humano a cortar-lhe a cabeça?”. Ou, condenando qualquer retórica em favor da guerra, provocaria: “Decididamente não compreendo por que é mais glorioso bombardear de projéteis uma cidade do que assassinar alguém a machadadas”.
Não há glória alguma na guerra. Se as linhas a seguir elencam desdobramentos econômicos e financeiros do conflito militar, o fazem apenas por dever de ofício, não por desprezo às questões humanitárias, cuja essência é, incomparavelmente, mais importante. “O poder neste mundo é um capital precioso que é preciso saber poupar”, tenta nos ensinar Liev Tolstói, numa lição desprezada por certos líderes autocratas. Um dos maiores estrategistas militares da história, Carl von Clausewitz lembrava da fog of war, a neblina e a incerteza associadas à guerra.
A esta altura, conforme explicitado pelo próprio Banco Central dos Estados Unidos em sua última opinião, está bastante claro o impacto da guerra sobre a inflação, que já vinha alta. Com as commodities energéticas, metálicas e agrícolas em forte alta, ainda que tenha ocorrido alguma normalização dos picos recentes, há um inegável choque de oferta. Os bancos centrais dos países desenvolvidos, que já vinham preparando o terreno para a subida das taxas de juro neste ano e, no caso do Fed, também para o enxugamento de seu balanço, serão obrigados a reagir, sob o risco de um overkill. Para domar uma inflação global com paralelos àquela dos anos 1970, terão de apertar o torniquete monetário, possivelmente numa intensidade que empurra suas economias à recessão.
Chegamos, então, a uma analogia entre a guerra e os investimentos. No clássico Da Guerra, do mesmo Carl von Clausewitz, aparece uma ideia associada a uma estratégia intertemporal, muito parecida com a defesa de Sun Tzu no conceito de “shi”. A proposta seria conservar seus recursos e sua tropa, de modo a levar vantagens a partir de posições defensivas, numa dinâmica mais indireta e tortuosa, de forma que em determinados momentos há retrocessos para posterior avanço.
Trazendo a prescrição para o universo dos investimentos, Mark Spitznagel, sócio de Nassim Taleb, no livro The Dao of Capital: Austrian Investing in a Distorted World se apropria das ideias de Clausewitz para propor a necessidade de, em muitas situações, esperar ou até mesmo retroceder para depois poder avançar, alojando-se em seguros-catástrofes e hedges clássicos. Ora, se o mundo vai mesmo enfrentar um ambiente de mais inflação e, potencialmente, menor crescimento, havemos de reduzir nossa exposição aos ativos de risco de países desenvolvidos e, na margem, comprar alguns seguros, como o ouro, por exemplo.
E para o Brasil, seria o caso de termos estratégia semelhante? Entendo que não. As consequências para o caso brasileiro são mais ambíguas e ensejam uma postura diferente, possivelmente até mais construtiva. Numa perspectiva contraintuitiva à primeira vista, as ações e os fundos imobiliários brasileiros poderiam sair como vencedores em termos relativos.
Enumero alguns elementos:
• O Brasil é visto como uma proxy de commodities. Hoje, inclusive, somos superavitários no fluxo comercial de petróleo e gás, além de grandes produtores de minério de ferro e matérias-primas agrícolas.
• Somos um dos poucos lugares do mundo com liquidez em que os valuations se mostram atraentes, com múltiplos notadamente inferiores às médias históricas e aos pares internacionais, além de oferecermos bom prêmio de risco de mercado.
• Podemos nos apropriar de uma mudança do fluxo de capitais em direção a mercados emergentes e à América Latina em particular.
• O aumento de gastos militares representa mais demanda por aço e, por conseguinte, por minério de ferro, colocando o Brasil em vantagem.
• Iniciamos o processo de subida de taxas de juro muito antes do mundo desenvolvido. Isso enseja a possibilidade de controle antecipado da inflação, eventual possibilidade de flexibilização monetária à frente e atratividade para o carry trade.
• É notável a valorização do real em 2022, mesmo diante de um contexto de aversão a risco no exterior e grande instabilidade política gerada pela guerra.
• Estamos numa posição geográfica favorável.
• Os mercados desenvolvidos se preparam para subir suas taxas de juro, depois de anos e anos de expansão de liquidez. A escalada dos juros nos Estados Unidos pode trazer (na verdade já está trazendo) importante revisão da sobrealocação de capital em empresas de tecnologia americanas. Entre os emergentes, o Brasil vira quase um destino inescapável.
A característica macunaímica brasileira é um tanto conhecida. Nosso herói duplamente preguiçoso costuma ser lembrado para caracterizar nossa complacência, a tendência à procrastinação, uma condenação à mediocridade. Outro atributo brasileiro, porém, talvez seja menos celebrado. É essa mesma tendência a regressar à média que impede grandes rupturas e permite recuperação depois de anos muito ruins. Há certos choques que acabam tendo resultado positivo. Talvez estejamos vivendo um exemplo concreto de antifragilidade tabeliana aplicada aos mercados brasileiros. Diante de uma surpresa exógena marcante, podemos sair mais fortes do que poderíamos imaginar. Para encerrar com Dostoiévski, “a beleza salvará o mundo”.
O Brasil é bonito por natureza.
Felipe Miranda
Se vamos cancelar o estrogonofe, o que considero uma perda irreparável, havemos de, com urgência, preservar os pensadores. Poucos compreenderam tão bem a alma humana quanto os escritores russos. Não uma alma no sentido espiritual, claro. Afinal, o próprio Dostoiévski viria me corrigir. “Tenho de proclamar a minha incredulidade. Para mim não há nada de mais elevado do que a ideia da inexistência de Deus. O homem inventou Deus para poder viver sem se matar”, insistiria. Dostoiévski serve para qualquer momento, inclusive, e talvez principalmente, para o atual. Ao ler as manchetes, ele logo poderia perguntar: “Não será preferível corrigir, recuperar e educar um ser humano a cortar-lhe a cabeça?”. Ou, condenando qualquer retórica em favor da guerra, provocaria: “Decididamente não compreendo por que é mais glorioso bombardear de projéteis uma cidade do que assassinar alguém a machadadas”.
Não há glória alguma na guerra. Se as linhas a seguir elencam desdobramentos econômicos e financeiros do conflito militar, o fazem apenas por dever de ofício, não por desprezo às questões humanitárias, cuja essência é, incomparavelmente, mais importante. “O poder neste mundo é um capital precioso que é preciso saber poupar”, tenta nos ensinar Liev Tolstói, numa lição desprezada por certos líderes autocratas. Um dos maiores estrategistas militares da história, Carl von Clausewitz lembrava da fog of war, a neblina e a incerteza associadas à guerra.
A esta altura, conforme explicitado pelo próprio Banco Central dos Estados Unidos em sua última opinião, está bastante claro o impacto da guerra sobre a inflação, que já vinha alta. Com as commodities energéticas, metálicas e agrícolas em forte alta, ainda que tenha ocorrido alguma normalização dos picos recentes, há um inegável choque de oferta. Os bancos centrais dos países desenvolvidos, que já vinham preparando o terreno para a subida das taxas de juro neste ano e, no caso do Fed, também para o enxugamento de seu balanço, serão obrigados a reagir, sob o risco de um overkill. Para domar uma inflação global com paralelos àquela dos anos 1970, terão de apertar o torniquete monetário, possivelmente numa intensidade que empurra suas economias à recessão.
Chegamos, então, a uma analogia entre a guerra e os investimentos. No clássico Da Guerra, do mesmo Carl von Clausewitz, aparece uma ideia associada a uma estratégia intertemporal, muito parecida com a defesa de Sun Tzu no conceito de “shi”. A proposta seria conservar seus recursos e sua tropa, de modo a levar vantagens a partir de posições defensivas, numa dinâmica mais indireta e tortuosa, de forma que em determinados momentos há retrocessos para posterior avanço.
Trazendo a prescrição para o universo dos investimentos, Mark Spitznagel, sócio de Nassim Taleb, no livro The Dao of Capital: Austrian Investing in a Distorted World se apropria das ideias de Clausewitz para propor a necessidade de, em muitas situações, esperar ou até mesmo retroceder para depois poder avançar, alojando-se em seguros-catástrofes e hedges clássicos. Ora, se o mundo vai mesmo enfrentar um ambiente de mais inflação e, potencialmente, menor crescimento, havemos de reduzir nossa exposição aos ativos de risco de países desenvolvidos e, na margem, comprar alguns seguros, como o ouro, por exemplo.
E para o Brasil, seria o caso de termos estratégia semelhante? Entendo que não. As consequências para o caso brasileiro são mais ambíguas e ensejam uma postura diferente, possivelmente até mais construtiva. Numa perspectiva contraintuitiva à primeira vista, as ações e os fundos imobiliários brasileiros poderiam sair como vencedores em termos relativos.
Enumero alguns elementos:
• O Brasil é visto como uma proxy de commodities. Hoje, inclusive, somos superavitários no fluxo comercial de petróleo e gás, além de grandes produtores de minério de ferro e matérias-primas agrícolas.
• Somos um dos poucos lugares do mundo com liquidez em que os valuations se mostram atraentes, com múltiplos notadamente inferiores às médias históricas e aos pares internacionais, além de oferecermos bom prêmio de risco de mercado.
• Podemos nos apropriar de uma mudança do fluxo de capitais em direção a mercados emergentes e à América Latina em particular.
• O aumento de gastos militares representa mais demanda por aço e, por conseguinte, por minério de ferro, colocando o Brasil em vantagem.
• Iniciamos o processo de subida de taxas de juro muito antes do mundo desenvolvido. Isso enseja a possibilidade de controle antecipado da inflação, eventual possibilidade de flexibilização monetária à frente e atratividade para o carry trade.
• É notável a valorização do real em 2022, mesmo diante de um contexto de aversão a risco no exterior e grande instabilidade política gerada pela guerra.
• Estamos numa posição geográfica favorável.
• Os mercados desenvolvidos se preparam para subir suas taxas de juro, depois de anos e anos de expansão de liquidez. A escalada dos juros nos Estados Unidos pode trazer (na verdade já está trazendo) importante revisão da sobrealocação de capital em empresas de tecnologia americanas. Entre os emergentes, o Brasil vira quase um destino inescapável.
A característica macunaímica brasileira é um tanto conhecida. Nosso herói duplamente preguiçoso costuma ser lembrado para caracterizar nossa complacência, a tendência à procrastinação, uma condenação à mediocridade. Outro atributo brasileiro, porém, talvez seja menos celebrado. É essa mesma tendência a regressar à média que impede grandes rupturas e permite recuperação depois de anos muito ruins. Há certos choques que acabam tendo resultado positivo. Talvez estejamos vivendo um exemplo concreto de antifragilidade tabeliana aplicada aos mercados brasileiros. Diante de uma surpresa exógena marcante, podemos sair mais fortes do que poderíamos imaginar. Para encerrar com Dostoiévski, “a beleza salvará o mundo”.
O Brasil é bonito por natureza.