Exame.com
Continua após a publicidade

Gilson Rodrigues: 'Transformo a minha vida ajudando a transformar a vida dos outros'

Neste Papo de Tubarões temos a liderança mais empática que já vi: ele inclusive foi nomeado Cidadão Paulistano pela Câmara Municipal de SP

Gilson Rodrigues (Cris Arcangeli/Divulgação)
Gilson Rodrigues (Cris Arcangeli/Divulgação)

Neste Papo de Tubarões temos a liderança mais empática, mais eficiente, mais competente que já vi: ele inclusive foi nomeado Cidadão Paulistano pela Câmara Municipal de São Paulo. Tenho muito carinho pelo Gilson Rodrigues, líder comunitário em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, com mais de 100 mil habitantes, dos quais 35% são jovens entre 18 e 25 anos.  Também é presidente nacional do G10 Favelas, uma associação que reúne as 10 maiores favelas brasileiras e um exemplo para todas as favelas do mundo. Sou fã incondicional dele.

Muita gente, como eu, não sabe o que acontece dentro das comunidades das favelas. E vi tanta coisa maravilhosa, conheci tanta gente maravilhosa que é preciso mostrar esse trabalho que vocês fazem para todo mundo. Mas antes disso, quem é o Gilson?

Sou baiano de uma cidade perto de Vitória da Conquista, chamada Campos de Jordão, pai do Vinícius e do Eduardo, filho da Maria Lucia, que era surda-muda,  viveu em Paraisópolis,  teve 14 filhos que viveram  numa condição bastante difícil e faleceu muito cedo. Sou o menino que cresceu na favela e, durante muito tempo, foi visto como um futuro marginal. Quero construir um novo olhar para a favela: em vez de violento, pobre, um olhar potente,  que sabe o que quer, ativo economicamente, que não quer viver de doações, mas precisa de investimentos para transformar sua vida e se colocar na posição de predestinado a dar certo.

Todos os dias eu busco criar esse novo olhar sobre mim, me eleger como herói de mim mesmo e transformar minha vida ajudando  a transformar a vida dos outros. E, à medida em que consigo mostrar o que temos e não o que falta, vamos abrindo esses olhares e tendo aliados como você, Cris, que enxerga um mar a ser desbravado  nas favelas do Brasil a partir de soluções, oportunidades e investimentos.

Costumo dizer que, ao longo da minha história, quando as pessoas me olhavam como marginal, trombadinha, violento, eu sempre  questionava por que falavam isso de mim. E descobri: além de ser filho da Muda, eu falava, eu vibrava, eu perguntava, tinha ideias e, na favela, uma criança que fala muito tem que ser vigiada.  Numa família rica, em geral a criança mais falante, mais hiperativa é o criativo, um futuro CEO, até presidente da república. Mas as crianças mais espertas da favela, que precisam de uma oportunidade e um olhar diferente, são  vistas como marginais. Por isso é necessário criar um olhar de oportunidades,  até para que elas se enxerguem nessa condição.

E como você virou essa chave?

Quando eu decidi “virar gente”, procurava referências de sucesso na favela e não encontrava referências saudáveis, só de violência, que tinham dinheiro e podiam tudo. Mas eu não queria fazer parte daquilo, não queria fazer parte das histórias contadas a partir do noticiário policial. Quando vejo que estou aqui, num Papo de Tubarões, podendo dar visibilidade a uma boa história, de transformação, podendo inspirar pessoas que muitas vezes não têm pai, nem mãe ou vivem numa situação de dificuldade que as fazem pensar que não têm jeito. E eu digo: tem jeito sim. Essa sua dificuldade não te define. Você pode transformar sua história desde que se enxergue diferente, estude, se qualifique, busque oportunidades. Mas antes de qualquer coisa, mude esse padrão mental com o qual se vê marginal. Eu nunca fui: sempre me senti bonito, forte, empreendedor, mesmo que não conhecesse essas palavras. E fui me descobrindo líder, empreendedor e as coisas foram acontecendo.  Agora estou ajudando a  criar tubarõezinhos nas favelas de todo o Brasil, buscando mostrar caminhos para que eles possam seguir, como eu segui. Estamos criando um novo olhar para as favelas, inspirando e fazendo pelo exemplo.

Outro dia conheci um grafiteiro maravilhoso, o Dicesar, que morava na favela e a mãe dizia que ele poderia escolher entre ser pedreiro ou garçom. Ele cresceu com essa crença limitante, que desafiou porque gostava de desenhar e acreditava que as pessoas podem ter a profissão que quiserem. Ele queria ser desenhista e hoje é um grande grafiteiro. É essa a mudança?

Somos treinados desde crianças a não ter perspectivas, a não ser ter termos profissões mais penosas e a não estudar, já que nossos pais não estudaram. Isso acaba formando bolsões de pobreza que são vistos como violentos, como se isso fosse algo predestinado. O G10 Favelas é um bloco de líderes inspirado no G7 e no G20 dos países ricos, para ser o G10 das favelas ricas.  Nossa descoberta fundamental é que, apesar de estarmos em bolsões de pobreza, essa pobreza acumulada bebe água, come arroz, feijão, veste roupas, consome. Só que, muitas vezes, somos tratados como não clientes.

Paraisópolis fatura 700 milhões de reais e as  10 maiores favelas do Brasil movimentam 7,9 bilhões, sendo que as 14 mil favelas de todo o Brasil, movimentam  200 bilhões de reais. E a empresa que não está olhando esse mercado perde uma grande oportunidade de ganhar dinheiro. Paraisópolis tem 120 mil pessoas, mais do que muitas cidades do estado de São Paulo. Se fossemos uma cidade, estaríamos entre as 300 maiores do Brasil. Hoje, no Brasil, 20 milhões de pessoas, ou sea, 10% da população, moram em favelas.

Vocês criaram uma empresa de logística mais ou menos em 2020, 2021, não é?

Nossa empresa de logística,  a Favela Brasil Express, acaba de bater 1 bilhão de reais em entregas de mercadorias  de e-commerce. Ela foi criada porque, quando alguém faz uma compra em e-commerce com um endereço da favela, a compra ou é bloqueada ou o cliente tem que ir buscar na loja, porque as empresas de fora não entram lá.

Durante a pandemia, todo mundo falava para ficar em casa, fazer home office, mas essa não era uma realidade para as favelas, porque se antes já não recebíamos esses serviços, imagine como as coisas se agravaram. Houve inclusive um caso de doação de cestas básicas que não passou da porta do pavilhão do G10, porque se o motorista abrisse a porta num CEP rastreado como sendo dentro de uma favela, seria disparado um alarme de roubo. O endereço simplesmente tinha um bloqueio no mapa da transportadora e a doação acabou não sendo feita. Por isso criamos a Favela Brasil Express, com micro centros de distribuição dentro de sete favelas, por enquanto. As mercadorias são enviadas para essa empresa e, de lá, vão para a residência do comprador a partir de todo um treinamento logístico interno.

Existem vários empreendedores na favela. Quando criei o programa Comunidades a 1000, recebemos uma enormidade de vídeos do G10 para conhecermos suas favelas e seus empreendedores. Fui até Paraisópolis e o Gilson me apresentou cinco mulheres maravilhosas. Lembra?

Para você ter uma ideia,  40% da população das favelas sonha em empreender e não sabe como, seja por dificuldades de acesso ao crédito, informação ou educação. Quando alguém mostra oportunidades de formação, de mentoria com gente grande,  de escala, as pessoas ficam encantadas. Hoje o pavilhão do G10 é chamado de O Vale do Silício das favelas, porque são tantas coisas acontecendo e sendo replicadas, que todo mundo quer saber como funciona. Foi por causa de uma adversidade como a pandemia que buscamos soluções, ao invés de ficarmos reclamando e procurando culpados.

Nessa minha primeira ida a Paraisópolis, em começo de 2020, conheci vários projetos criados por mulheres, como Mãos de Maria, Construindo Sonhos, Emprega Comunidade, Agro Favela e A Guerra é Essa. Nosso objetivo ali era diminuir a violência contra a mulher e criar o Empreender Liberta, que dá independência financeira para que as mulheres fiquem livres para tomar suas próprias decisões. Fizemos, inclusive, um episódio improvisado do Comunidades a 1000 no nosso canal do You Tube, que acabou viralizando, saiu na imprensa e literalmente explodiu em termos de audiência.  O que aconteceu de lá para cá?

O Mãos de Maria, por exemplo, fez uma distribuição de 4 milhões de marmitas durante a pandemia, com uma equipe de 4 mil mulheres e não parou desde  23 de março de  2020. Hoje elas têm franquias e estamos levando a ideia para outros estados. Nós acreditamos que a melhor forma de impactar a população, transformar e ajudar a quem precisa combater a pobreza é dinheiro no bolso.

Paraisópolis acabou se transformando num retrato desse Brasil que quer empreender, se transformar. Quando surgiu a história da nova classe média, estávamos passando por um processo de urbanização que foi paralisado pela prefeitura, mas aproveitamos a oportunidade para trazer as empresas para dentro de Paraisópolis.  Numa ocasião em que estive com o sr. Samuel Klein, perguntei por que ele não montava uma loja das Casas Bahia em Paraisópolis e ele disse que não tinha onde. Conseguimos um terreno e ele realmente montou uma loja, que é hoje uma das que mais vendem no Brasil. Também levamos para lá bancos como Bradesco e Santander. Entendemos que empreender seria de fato uma condição para libertar a população, acabar com a pobreza, desenvolver a favela e fazer com que ela se transforme num bairro de verdade, chamado A Nova Paraisópolis.  Ninguém quer depender de cesta básica, de marmita. Ainda fazemos trabalhos nesse sentido, porque a situação é realmente emergencial,  mas é fundamental entender que existem condições de sair disso.

Tenho falado bastante que a favela pode ficar rica de fato, porque temos dentro das nossas veias a vontade de empreender,  de transformar, de ver as pessoas prosperarem, ter dinheiro no bolso. Temos experiências concretas de pessoas ficando ricas, prosperando, ajudando suas famílias e seu entorno.

Precisamos fazer com que nossas crianças e nossos jovens saiam  da perspectiva de profissões mais penosas e que entendam que ser MCs, jogadores de futebol ou dançarinas não é a única opção. Eles podem ser empresários, influencers, o que quiserem, se tiverem as oportunidades certas. Temos trabalhado muito no G10   para incentivar os jovens a estudar, se formar, a empreender para criar  condições que gerem prosperidade, percebendo que não são predestinados à pobreza: podem ficar ricos, porque dinheiro é bom, não há nada de errado em ganhar dinheiro. Precisamos abrir o leque, dar novas perspectivas, outras oportunidades para que eles possam sonhar um sonho viável, possível de ser realizado.

Você é muito inovador: o Agro Favela, por exemplo, é uma horta vertical construída em cima das lajes para que as pessoas possam se alimentar melhor, de verde, o que não é muito comum.

Inventaram que o orgânico é caro. A cultura do nordestino é de plantar, colher, somos agro desde a nossa origem e queremos comer bem, nos alimentar. Nós pensamos que seria possível ajudar a combater a fome da comunidade criando nos nossos roof-tops espaços verdes saudáveis, comestíveis. Fizemos uma parceria com o Instituto Stop Hunger, da Sodexo, ganhamos um prêmio na França e ainda este ano vamos criar mais 10 Agro Favelas no Brasil inteiro. Hoje temos cestas do Agro Favela vendidas por e-commerce e estamos fazendo parcerias com outras agriculturas que têm dificuldade de vender, ajudando pequenos agricultores mesmo de fora da favela, porque não estamos dando conta da demanda somente com a nossa produção.

Quando estive em Paraisópolis havia uma lista de 22 mil pessoas procurando emprego via o Emprega Comunidade. Como esse programa está agora?

O Emprega Comunidade também é conhecido como o LinkedIn da favela, porque também convidamos empresas a montarem cursos para formarem profissionais dentro da favela. Essa tem sido uma experiência ótima, tem escalado e já estamos em Betim e Pernambuco, além da própria Paraisópolis. É um projeto que tem crescido bastante, tanto para quem está na favela conseguir trabalhar fora, como para gente de fora vir trabalhar na favela. Eu gosto de promover essa experiência de interação, de convivência, à medida em que  vamos interagindo, nos conectando, convivendo.

Tem também o Costurando Sonhos, que fez o vestido da miss Brasil.

Essa é uma união de uma paraense com uma maranhense, que decidiram fazer moda na favela a partir de uma situação de violência doméstica, montaram uma oficina de costura e começaram a sensibilizar outras mulheres para criar moda própria. Apesar de algumas dificuldades de entendimento sobre empreendedorismo e comercialização, elas formaram um grupo, inclusive com sua ajuda e mentoria, Cris. Agora lançaram uma coleção na Itália,  falaram na ONU dentro do Pacto Global de Economia Circular, já foram duas vezes aos Estados Unidos, foram um dos cases apresentados no Festival de Cannes e este ano irão para Harvard. Elas formaram 1.030 mulheres que empreenderam na área de costura e hoje contam com o auxílio de um grupo de 122 pessoas trabalhando efetivamente com elas.

Você também faz coisas incríveis que servem de exemplo para muitas favelas do Brasil. Por exemplo, como líder comunitário, criou presidentes de rua, cada um toma conta de 50 famílias e 87% são mulheres.

A gestão da favela é praticamente feita por mulheres. Você vê trabalho liderado por mulheres em todas as lutas, seja em creches, empregos, melhorias na comunidade, em desafios como fome, violência doméstica. Talvez as mulheres sintam mais na pele essas necessidades e reagem fazendo alguma coisa, trabalhando,  buscando perspectivas para transformar essa realidade. É importante criar essa perspectiva porque elas podem incentivar os sonhos dos filhos até onde podem sonhar efetivamente. Elas sabem que vai ser difícil, mas é possível o jovem chegar a ser um médico de fato, um professor, um maestro, uma bailarina.

Nós estamos realizando sonhos para que o orgulho de ser favela não seja o de morar em cima do córrego, da ribanceira ou de sofrer com enchentes, como muitas pessoas parecem ter. Ninguém sonhou em viver na favela, numa situação de vida ruim.  Minha família veio da Bahia há 70 anos com uma missão: ficar rica, ajudar aqueles que ficaram para trás e transformar nossa vida pela educação dos filhos. Esse é o orgulho: prosperar, dar certo.

A grande maioria dos moradores das favelas vêm de outros estados. Em Paraisópolis, que este mês de setembro completou 102 anos, 85% são nordestinos ou filhos de nordestinos, que ajudaram a construir São Paulo. Essa favela  nasceu e cresceu de forma desordenada junto à construção dos condomínios da região do Morumbi e, em especial, do estádio e do hospital Albert Einstein. Como não havia mão de obra em São Paulo, os nordestinos vieram para trabalhar e acabaram se instalado de maneira aglomerada em favelas e bolsões de pobreza, que em geral estão ao lado de bolsões de riqueza.  Então é justo que essa população prospere, tenha qualidade de vida, crie alternativas, que tenha soluções, até porque o fato de estar tão concentrada movimenta muitos recursos. Hoje temos uma cadeia econômica que se estabelece por meio dos presidentes de ruas, para desenvolver, acabar com a pobreza, gerar trabalho e renda e transformar a vida das pessoas.

Conte um pouco da sua experiência internacional.

Eu fui convidado para palestrar no Festival de Cannes, porque criamos uma agência de publicidade e o  Mais Favela TV, formado por um grupo de influencers de várias favelas. Meu tema era “Eu Existo” e fui lá dizer que temos 20 milhões de brasileiros, em 14 mil favelas, que consomem 200 bilhões de reais, e que, se a mídia não conseguir nos enxergar, está perdendo a oportunidade de impactar, transformar e de ganhar dinheiro. Queremos ser vistos e tratados como clientes, porque parece que os 10 reais do bairro nobre valem mais que os 10 reais da favela. E não valem.

Hoje estamos criando o G10 Bank Participações, que é o BTG da favela, e em breve vamos inaugurar a primeira agência física.  Em abril deste ano fomos para os Estados Unidos para realizar a Semana das Favelas do Brasil em Nova York, com  um baile, exposições, jantares. Você sabe que o sonho de qualquer empresário do mudo é tocar o sino da Bolsa de Valores de Nova York e nós tocamos! Estamos programando a segunda semana em Nova York,  vamos a Washington e a Boston, faremos uma imersão em Harvard com estudo de nossos cases e vai ter alguma coisa até na Casa Branca, que ainda não posso contar

E no Brasil?

Vamos promover um grande congresso no dia 4 de novembro, que é o Dia da Favela e quero que todo mundo vá conhecer nosso trabalho. Porque não queremos só falar a respeito, queremos mostrar que tudo isso é real. Vamos transformar uma região de Paraisópolis, com o Cores da Favela,  num ambiente agradável, onde as pessoas se sintam seguras, porque a aproximação é a melhor forma de acabar com a imagem de violência. O tema desse encontro nacional é uma homenagem à nossa amiga Cris Arcangeli: Empreender Liberta, para difundir essa mensagem numa favela livre, que  prospera, que pensa e que sabe que empreender é o caminho para fazer isso. Acho que esse tem sido esse meu papel: despertar outras pessoas para o possível, que essas 20  milhões de pessoas despertem. Minha mensagem é : acredite em você, acredite no seu sonho e transforme sua vida e a vida da comunidade

E como foi receber o  título de Cidadão Paulistano?

São Paulo é a minha casa, lutei muito para estar aqui. Todas as vezes que tentavam me mandar embora ou me dar para alguma outra família eu fugia para não ir embora de São Paulo. Quando pude receber esse reconhecimento por iniciativa do vereador Isaac Felix, fiquei muito emocionado. Quando vejo um baiano como eu, ajudando a construir São Paulo e sendo reconhecido, me sinto como se os nordestinos todos estivessem sendo reconhecidos comigo. Agora sou um paulistano de fato. Inclusive recebi vários prêmios e, durante a pandemia, vários institutos atestaram que a nossa gestão em Paraisópolis foi melhor que a gestão da própria cidade de São Paulo.  Eu busco consenso, busco soluções para os desafios, não quero partidarizar, falo com todo mundo em busca de soluções.