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O Czar e o Imperador

Em seu artigo, Diogo Castro e Silva comenta sobre as possíveis semelhanças de Putin e Xi Jinping com Stalin e Mao e a “parceria sem limites” entre ambos

Vladimir Putin (Adam Berry / Correspondente/Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 16 de março de 2022 às 09h00.

Por Diogo Castro e Silva

Em Dezembro de 1949, Mao, líder da então recém formada República Popular da China, visitava Stalin, dono de metade do mundo em resultado da II Guerra Mundial. Mao precisava de apoio e reconhecimento para uma China pobre e destruída em resultado de quase 20 anos de guerra ininterrupta. Precisava de um acordo que, nas suas palavras, “ fosse ao mesmo tempo saboroso e tivesse uma boa imagem”. Dois meses depois, uma boa parte dos quais passados numa dacha nos arredores da capital onde Stalin o fazia esperar entre esporádicas audiências, Mao partia de Moscovo, em estado de fúria impotente,  com um acordo por si descrito como “pleno de frutos amargos”.

Putin e Xi Jinping, que se revêem, em parte, respectivamente em Stalin e Mao  se encontraram em Beijing em Fevereiro passado durante as Olimpíadas de Inverno tendo assinado na altura uma “parceria sem limites”. Mas com a invasão da Ucrânia cambaleando entre uma incompetência constrangedora e uma  fúria sanguinária, é Putin que agora se interroga se o acordo assinado é na verdade “saboroso” ou pleno de “frutos amargos”. E a resposta a esta interrogação irá afetar não só o curso da guerra na Ucrânia mas como o próprio equilíbrio mundial.

Para procurar responder a esta pergunta tão decisiva, é preciso entender primeiro o que os dois personagens e regimes têm em comum mas também o que os separa. Putin e Xi emergem como líderes dos seus países em condições muito semelhantes. Como candidatos inofensivos e de compromisso no contexto de uma luta de fações dentro dos seus regimes. No caso da Rússia, de disputa entre grupos de diferentes de oligarcas no meio do caos dos anos 90 do século passado. No caso da China, terminado o período de validade da indicação de Deng Xiaoping da sua sucessão.

Embora separados por doze anos na ascensão ao poder, ambos passam de candidatos inofensivos a líderes impiedosos consolidando o seu poder de forma meticulosa e irresistível. E ambos compartem um nacionalismo ressentido contra o Ocidente. O de Putin, fermentado no desintegrar da ex-URSS. E o de Xi Jinping pelo século de humilhação pelo qual a China passou desde a primeira Guerra do Ópio que ocorreu em meados do século XIX e a formação da República Popular da China em 1949. E a “parceria sem limites” resulta em muito desta mundividência partilhada pelos dois líderes e cultivada também na visão comum dum Ocidente dividido e decadente. Se pudéssemos, contudo, entrevistar livremente membros do establishment de defesa e segurança de ambos os países teríamos uma visão em muitos casos bem diferente. Para muitos na Rússia, a China representa a sua maior ameaça geopolítica e a visão de transformar a Rússia, por via do seu isolamento internacional, num Estado totalmente dependente da  boa vontade da China causa calafrios e é um anátema a uma política externa com séculos de existência.

Do lado da China as reservas são de outro tipo. John McCain, ex-Senador norte-americano, famosamente descreveu a Rússia uma vez como um “posto de gasolina com mísseis “. Esta é uma visão partilhada por muitos na China que vem a Rússia como uma potência do passado enquanto a China mira o futuro. Para este establishment chinês, a Rússia ao mesmo tempo que assegura acesso a recursos naturais providencia uma distração útil em relação ao principal rival, EUA, impedindo o mesmo de virar a sua atenção para a Ásia como os EUA vêm tentando desde o primeiro mandato de Obama. Mas nada mais que isso. Um entendimento de conveniência.

Os dois regimes têm também uma visão diferente do seu papel no mundo. A China se beneficiou largamente da globalização. O seu milagre econômico dos últimos 30 anos é na verdade o filho pródigo dessa era do desenvolvimento mundial ao contrário da Russia que passou ao lado dum período de crescimento sustentado. Sim, entre 2000 e 2010 aproveitou o boom de commodities mas a partir, sobretudo, de 2014, em parte em resultado das suas aventuras militares no exterior, a Rússia entrou num período de estagnação. A China, por isso, não tem interesse em destruir a ordem mundial mas quer mandar nela e vê na decadência do Ocidente a oportunidade de o fazer a prazo. O regime russo, pelo seu lado, vê na ordem internacional existente uma ameaça à sua legitimidade e no potencial sucesso econômico de vizinhos como a Ucrânia um testemunho contra a sua mediocridade cleptocrática.

O desequilíbrio de sucesso econômico entre Rússia e China explica a razão pela qual os EUA têm procurado desde há uma década se concentrar na Ásia em detrimento da Europa e Oriente Médio. Para os EUA, a Rússia é como uma tempestade temporária e a China como a mudança climática. A guerra da Ucrânia veio, contudo, alterar este status quo.

Desde o início da guerra, a China tem procurado percorrer uma linha de equilíbrio tênue entre uma simpatia pública pelo regime de Putin e a afirmação de princípios da política externa chinesa de  há décadas, o mais fundamental deles sendo o princípio da integralidade territorial que ancora a política chinesa em relação a Taipé e que explica, aliás, porque a China nunca reconheceu a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Tivesse a guerra da Ucrânia ocorrido de forma rápida e de acordo com os planos do Kremlin esta posição de aparente neutralidade teria passado incólume. O prolongamento do conflito, o desastre estratégico da Rússia que periga inclusive o regime de Putin e a reação unificada do Ocidente, com a Europa e Estados Unidos de novo juntos num alinhamento sem precedentes desde o 11 de Setembro, coloca a China e, sobretudo, Xi Jinping sem escolhas fáceis e de baixo custo. Se juntarmos a isso, a agressividade dos EUA em divulgar inteligência em como a Rússia teria pedido ajuda econômica e militar à China, nem o protelar de um posicionamento ficou na mesa.

Xi Jinping tinha já em 2022 um ano complexo. Congresso do Partido no final do ano para ratificar um inédito terceiro mandato e desaceleração econômica resultante de toda a crise imobiliária e dos lockdowns sem fim à vista fruto da política de COVID zero. Juntar a isso, uma crise de potencial impacto global fruto da guerra da Ucrânia seria em princípio a ultima coisa que a liderança chinesa quereria. Agora o dilema de apoiar ou não Putin torna tudo mais crítico. De um lado, a China tem um comércio de mais de USD 1,5 trilião com Estados Unidos e Europa contra USD 150 Bilhão com a Rússia, sem falar de toda a integração em cadeias de suprimento globais e financeira e de um trabalho diplomático de anos cultivando relações de proximidade sobretudo com a União Europeia.

As sanções que a Rússia sofreu também têm que ter abalado o cálculo dos líderes chineses, sobretudo aquelas visando o Banco Central Russo. Sem uma reforma política e legal e a disponibilidade de aceitar todas as consequências de uma conversibilidade da sua moeda, nomeadamente no movimento de capitais, transformar o Renminbi numa moeda de reserva internacional rivalizando o dólar norte-americano é uma miragem sendo que, por isso, as imensas reservas da China são também elas menos seguras que o incialmente pensado. A unidade Ocidental também torna muito mais arriscado qualquer movimento sobre Taipé. A decisão racional seria por isso evitar qualquer apoio explícito ao regime de Putin e inclusive usar a sua influência sobre a Rússia para ajudar na resolução do conflito e com isso alterar a dinâmica da sua relação com os EUA e com o Ocidente.

Os sinais são no entanto bem mais ambíguos. A mídia oficial chinesa propaga a mesma mensagem e propaganda  do Kremlin e o fato da parceria estreita com a Rússia ser em larga medida um projeto pessoal de  Xi Jinping torna uma mudança de curso mais complexa. Até recentemente,  o consenso de analistas era que o regime chinês não tinha avançado tanto quanto o russo na personalização do regime e que tinha ainda pesos e contrapesos que limitavam o raio de ação de Xi Jinping e como tal a possibilidade de um erro de cálculo seria minimizada. Se ainda é assim,  a decisão ou não de apoiar Putin vai dar uma resposta bem concreta. O Ocidente tolerará algum apoio discreto ao regime de Putin sobretudo na área de compras de petróleo e gás mas um apoio mais explícito sobretudo a nível militar desencadeará uma reação em cadeia de dimensões imprevisíveis.

Em 1914 também tínhamos um Kaiser (que é Czar em alemão sendo que ambas as palavras significam César) e um Imperador, o líder do Império Austro-húngaro, e foi em grande medida o “cheque em branco” dado pelo Kaiser, à revelia do Governo alemão, ao Imperador que transformou a crise dos Balcãs num conflito mundial. Por outro lado, em 1982, numa entrevista, o primeiro responsável na URSS pelas relações com a China comentava que “a China nunca é amiga de ninguém por muito tempo”. Na verdade, cerca de vinte anos depois do encontro de Mao e Stalin em 1949, URSS e China combatiam entre si na fronteira dos dois países.

A “parceria sem limites” será saborosa ou plena de frutos amargos para Putin? Ou apenas um acordo sem sal e substância? Em breve, o mundo saberá a resposta.

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Por Diogo Castro e Silva

Em Dezembro de 1949, Mao, líder da então recém formada República Popular da China, visitava Stalin, dono de metade do mundo em resultado da II Guerra Mundial. Mao precisava de apoio e reconhecimento para uma China pobre e destruída em resultado de quase 20 anos de guerra ininterrupta. Precisava de um acordo que, nas suas palavras, “ fosse ao mesmo tempo saboroso e tivesse uma boa imagem”. Dois meses depois, uma boa parte dos quais passados numa dacha nos arredores da capital onde Stalin o fazia esperar entre esporádicas audiências, Mao partia de Moscovo, em estado de fúria impotente,  com um acordo por si descrito como “pleno de frutos amargos”.

Putin e Xi Jinping, que se revêem, em parte, respectivamente em Stalin e Mao  se encontraram em Beijing em Fevereiro passado durante as Olimpíadas de Inverno tendo assinado na altura uma “parceria sem limites”. Mas com a invasão da Ucrânia cambaleando entre uma incompetência constrangedora e uma  fúria sanguinária, é Putin que agora se interroga se o acordo assinado é na verdade “saboroso” ou pleno de “frutos amargos”. E a resposta a esta interrogação irá afetar não só o curso da guerra na Ucrânia mas como o próprio equilíbrio mundial.

Para procurar responder a esta pergunta tão decisiva, é preciso entender primeiro o que os dois personagens e regimes têm em comum mas também o que os separa. Putin e Xi emergem como líderes dos seus países em condições muito semelhantes. Como candidatos inofensivos e de compromisso no contexto de uma luta de fações dentro dos seus regimes. No caso da Rússia, de disputa entre grupos de diferentes de oligarcas no meio do caos dos anos 90 do século passado. No caso da China, terminado o período de validade da indicação de Deng Xiaoping da sua sucessão.

Embora separados por doze anos na ascensão ao poder, ambos passam de candidatos inofensivos a líderes impiedosos consolidando o seu poder de forma meticulosa e irresistível. E ambos compartem um nacionalismo ressentido contra o Ocidente. O de Putin, fermentado no desintegrar da ex-URSS. E o de Xi Jinping pelo século de humilhação pelo qual a China passou desde a primeira Guerra do Ópio que ocorreu em meados do século XIX e a formação da República Popular da China em 1949. E a “parceria sem limites” resulta em muito desta mundividência partilhada pelos dois líderes e cultivada também na visão comum dum Ocidente dividido e decadente. Se pudéssemos, contudo, entrevistar livremente membros do establishment de defesa e segurança de ambos os países teríamos uma visão em muitos casos bem diferente. Para muitos na Rússia, a China representa a sua maior ameaça geopolítica e a visão de transformar a Rússia, por via do seu isolamento internacional, num Estado totalmente dependente da  boa vontade da China causa calafrios e é um anátema a uma política externa com séculos de existência.

Do lado da China as reservas são de outro tipo. John McCain, ex-Senador norte-americano, famosamente descreveu a Rússia uma vez como um “posto de gasolina com mísseis “. Esta é uma visão partilhada por muitos na China que vem a Rússia como uma potência do passado enquanto a China mira o futuro. Para este establishment chinês, a Rússia ao mesmo tempo que assegura acesso a recursos naturais providencia uma distração útil em relação ao principal rival, EUA, impedindo o mesmo de virar a sua atenção para a Ásia como os EUA vêm tentando desde o primeiro mandato de Obama. Mas nada mais que isso. Um entendimento de conveniência.

Os dois regimes têm também uma visão diferente do seu papel no mundo. A China se beneficiou largamente da globalização. O seu milagre econômico dos últimos 30 anos é na verdade o filho pródigo dessa era do desenvolvimento mundial ao contrário da Russia que passou ao lado dum período de crescimento sustentado. Sim, entre 2000 e 2010 aproveitou o boom de commodities mas a partir, sobretudo, de 2014, em parte em resultado das suas aventuras militares no exterior, a Rússia entrou num período de estagnação. A China, por isso, não tem interesse em destruir a ordem mundial mas quer mandar nela e vê na decadência do Ocidente a oportunidade de o fazer a prazo. O regime russo, pelo seu lado, vê na ordem internacional existente uma ameaça à sua legitimidade e no potencial sucesso econômico de vizinhos como a Ucrânia um testemunho contra a sua mediocridade cleptocrática.

O desequilíbrio de sucesso econômico entre Rússia e China explica a razão pela qual os EUA têm procurado desde há uma década se concentrar na Ásia em detrimento da Europa e Oriente Médio. Para os EUA, a Rússia é como uma tempestade temporária e a China como a mudança climática. A guerra da Ucrânia veio, contudo, alterar este status quo.

Desde o início da guerra, a China tem procurado percorrer uma linha de equilíbrio tênue entre uma simpatia pública pelo regime de Putin e a afirmação de princípios da política externa chinesa de  há décadas, o mais fundamental deles sendo o princípio da integralidade territorial que ancora a política chinesa em relação a Taipé e que explica, aliás, porque a China nunca reconheceu a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Tivesse a guerra da Ucrânia ocorrido de forma rápida e de acordo com os planos do Kremlin esta posição de aparente neutralidade teria passado incólume. O prolongamento do conflito, o desastre estratégico da Rússia que periga inclusive o regime de Putin e a reação unificada do Ocidente, com a Europa e Estados Unidos de novo juntos num alinhamento sem precedentes desde o 11 de Setembro, coloca a China e, sobretudo, Xi Jinping sem escolhas fáceis e de baixo custo. Se juntarmos a isso, a agressividade dos EUA em divulgar inteligência em como a Rússia teria pedido ajuda econômica e militar à China, nem o protelar de um posicionamento ficou na mesa.

Xi Jinping tinha já em 2022 um ano complexo. Congresso do Partido no final do ano para ratificar um inédito terceiro mandato e desaceleração econômica resultante de toda a crise imobiliária e dos lockdowns sem fim à vista fruto da política de COVID zero. Juntar a isso, uma crise de potencial impacto global fruto da guerra da Ucrânia seria em princípio a ultima coisa que a liderança chinesa quereria. Agora o dilema de apoiar ou não Putin torna tudo mais crítico. De um lado, a China tem um comércio de mais de USD 1,5 trilião com Estados Unidos e Europa contra USD 150 Bilhão com a Rússia, sem falar de toda a integração em cadeias de suprimento globais e financeira e de um trabalho diplomático de anos cultivando relações de proximidade sobretudo com a União Europeia.

As sanções que a Rússia sofreu também têm que ter abalado o cálculo dos líderes chineses, sobretudo aquelas visando o Banco Central Russo. Sem uma reforma política e legal e a disponibilidade de aceitar todas as consequências de uma conversibilidade da sua moeda, nomeadamente no movimento de capitais, transformar o Renminbi numa moeda de reserva internacional rivalizando o dólar norte-americano é uma miragem sendo que, por isso, as imensas reservas da China são também elas menos seguras que o incialmente pensado. A unidade Ocidental também torna muito mais arriscado qualquer movimento sobre Taipé. A decisão racional seria por isso evitar qualquer apoio explícito ao regime de Putin e inclusive usar a sua influência sobre a Rússia para ajudar na resolução do conflito e com isso alterar a dinâmica da sua relação com os EUA e com o Ocidente.

Os sinais são no entanto bem mais ambíguos. A mídia oficial chinesa propaga a mesma mensagem e propaganda  do Kremlin e o fato da parceria estreita com a Rússia ser em larga medida um projeto pessoal de  Xi Jinping torna uma mudança de curso mais complexa. Até recentemente,  o consenso de analistas era que o regime chinês não tinha avançado tanto quanto o russo na personalização do regime e que tinha ainda pesos e contrapesos que limitavam o raio de ação de Xi Jinping e como tal a possibilidade de um erro de cálculo seria minimizada. Se ainda é assim,  a decisão ou não de apoiar Putin vai dar uma resposta bem concreta. O Ocidente tolerará algum apoio discreto ao regime de Putin sobretudo na área de compras de petróleo e gás mas um apoio mais explícito sobretudo a nível militar desencadeará uma reação em cadeia de dimensões imprevisíveis.

Em 1914 também tínhamos um Kaiser (que é Czar em alemão sendo que ambas as palavras significam César) e um Imperador, o líder do Império Austro-húngaro, e foi em grande medida o “cheque em branco” dado pelo Kaiser, à revelia do Governo alemão, ao Imperador que transformou a crise dos Balcãs num conflito mundial. Por outro lado, em 1982, numa entrevista, o primeiro responsável na URSS pelas relações com a China comentava que “a China nunca é amiga de ninguém por muito tempo”. Na verdade, cerca de vinte anos depois do encontro de Mao e Stalin em 1949, URSS e China combatiam entre si na fronteira dos dois países.

A “parceria sem limites” será saborosa ou plena de frutos amargos para Putin? Ou apenas um acordo sem sal e substância? Em breve, o mundo saberá a resposta.

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