O BRICS, o NDB e a globalização
Não é inevitável que o futuro da globalização seja uma nova guerra fria entre dois blocos, um dominado pelos EUA e outro pela China
Publicado em 3 de julho de 2020 às, 14h54.
Poucos relatórios de research de uma instituição financeira produzem consequências políticas e econômicas tão importantes como aquele produzido pela Goldman Sachs em 2001 que criou o termo BRIC. Olhando para trás, estávamos, sem dúvida, no pico do otimismo intelectual sobre a globalização e o seu poder transformativo sobre as sociedades que ocorreu nesses doze anos entre a queda do muro de Berlim em 1989 e o 11 de Setembro de 2009.
Os BRICS, com a junção da África do Sul em 2010, se institucionalizaram, criaram o Banco dos BRICS, ou NDB, em 2015 e se uniram na noção de um polo político alternativo a uma globalização vista como dominada pelos EUA e pelas instituições internacionais sediadas em Washington. A fragilidade, contudo, de projetos políticos criados em contraponto a algo é que quando a situação muda existe uma dificuldade em criar uma agenda positiva que os sustentem. Essa é em parte a origem das dificuldades da OTAN e mesmo da União Europeia no pós queda do muro de Berlim. E esse agora é o desafio dos BRICS na globalização amputada e multipolar que parece ser o novo futuro mundial.
As contradições geopolíticas dos BRICS têm o seu epicentro na Eurasia e no triângulo formado entre Rússia, China e Índia, já que Brasil e África do Sul, pela sua distância geográfica, são atores relativamente passivos nessas tensões. No mês passado, Índia e China se confrontaram na cordilheira dos Himalayas com várias dezenas de mortos entre os soldados de ambos os países. Rússia e China, embora com toda a proximidade dos últimos anos, são rivais de longo prazo na Ásia Central, crucial para os planos da China da nova rota da seda. Como construir então uma agenda positiva no Grupo quando o mesmo é atravessado por estas tensões e quando os três países que partilham a mesma região geográfica são dominados por governos de cariz nacionalista.
É interessante pois que neste momento de encruzilhada que o Brasil assuma agora em Julho a Presidência do NDB. A instituição criada em 2015 se concentrou nos primeiros cinco anos de vida em criar o quadro de funcionamento do Banco. Este é o primeiro mandato onde o NDB pode realmente cravar o seu espaço quer no Grupo dos BRICS quer no conjunto das instituições financeiras multilaterais. É também o primeiro momento onde o NDB vai alargar o seu quadro de acionistas fora dos países originais do Grupo já que cada um destes pode agora convidar para o quadro acionista do Banco três novos membros.
O nosso país tem por isso um papel importante na construção desse novo mundo mais multipolar. Não é inevitável que o futuro da globalização seja uma nova guerra fria entre dois blocos, um dominado pelos EUA e outro pela China como muito se discute na praça pública, e aqui o NDB pode ter um papel importante de ponte não só dentro do Grupo dos BRICS como fora dele. Para além do enfoque original do Banco em infraestrutura, o NDB quer ser, ao contrário dos Bancos de Desenvolvimento Regional como o BID aqui nas Américas, uma instituição de cariz global como o FMI e Banco Mundial. A interação com estas duas instituições pode favorecer reformas de governança nas mesmas e criar uma agenda positiva inclusive no tema do comércio internacional pós pandemia. Não haverá uma globalização sustentável no futuro sem pilares fortes ao nível das diferentes instituições multilaterais.
Ao contrário da década de 90 do século passado, vivemos num mundo dominado pelo medo. Não é só por causa da pandemia que vivemos. Esse estado de espírito já precedia a covid-19. Como uma nação vibrante, dinâmica e aberta como os EUA acha popular construir um muro entre este país e o México. Como a União Europeia, um espaço com mais de 500 Milhões de habitantes, paralisa por causa de menos de 5 milhões de refugiados com origem no Médio Oriente. Como a China, à semelhança da Alemanha do Kaiser antes da Primeira Guerra Mundial, transforma o seu tremendo sucesso econômico numa enorme insegurança geopolítica traduzida, por exemplo, na sua crescente agressividade em lidar com Hong Kong e agora na fronteira com a Índia. Como estamos a descobrir amargamente com a Pandemia, problemas globais em que o COVID19 é apenas o mais premente, ignoram fronteiras e preferências políticas. Eles apenas podem ser confrontados também a nível global e com agendas positivas que possam trazer para a mesa diferentes os principais atores mundiais. Grande parte dos receios que dominam o mundo tem a ver com a percepção de incerteza que nos rodeia. Mas como diria o ex-Presidente dos EUA, Abraham Lincoln, a melhor forma de prever o futuro é criá-lo.