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A nova (des)ordem mundial

A resposta política das diferentes nações fez o mundo entrar num período de desglobalização que torna qualquer solução bem mais difícil

O que a história nos ensina sobre períodos semelhantes ao que hoje assistimos? (Darin Kuntz / Barcroft Media/Getty Images)
O que a história nos ensina sobre períodos semelhantes ao que hoje assistimos? (Darin Kuntz / Barcroft Media/Getty Images)
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Diogo Castro e Silva

Publicado em 26 de agosto de 2022 às, 14h47.

Última atualização em 26 de agosto de 2022 às, 14h48.

O dia 24 de Fevereiro de 2022 marca o fim da ordem mundial que se iniciou no término da II Guerra Mundial. Pela segunda vez em quase 80 anos, um país decidiu invadir outro com o objetivo claro de anexar território pela força passando por cima da integralidade territorial que foi o pilar central da ordem internacional  até hoje. Quando em 1990, Saddam Hussein decidiu anexar o Kuwait, mesmo a União Soviética votou a favor na ONU pela expulsão pela força do Iraque do território do Kuwait em coerência com esse princípio que, em conjunto com a não proliferação nuclear, foram as bases mínimas de acordo entre os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas por décadas, mesmo durante o auge da Guerra Fria.

O que faz a invasão da Ucrânia de 2022 diferente da de 1990 é que a mesma é feita agora por um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e sob proteção do seu arsenal nuclear. De um só golpe não só temos a tentativa de anexação de um estado soberano como temos o mapa de como fazê-lo sem sofrer consequências militares de terceiros. Possuir armas nucleares. É óbvio que a escolha de uma data precisa para o fim de uma era e o início de outra tem sempre uma componente elevada de arbitrariedade e para a globalização este século representa uma sucessão de eventos que culminam no mês de Fevereiro de 2022. Setembro 2001, com o simbolismo dos prédios mais cosmopolitas da cidade mais internacional do mundo serem derrubadas. 2008 com a emergência de uma crise financeira global apenas possível pela circulação acelerada de capitais por todo o mundo. A Primavera Árabe que termina na guerra genocida da Síria e com utilização geopolítica dos fluxos migratórios correspondentes com grande impacto sobretudo na Europa a partir dos anos 2013 e 2014.  

E que resposta a comunidade internacional pode dar? Na verdade, toda a arquitetura institucional global se encontra em crise. A ONU é espectadora da guerra contra a Ucrânia, a OMS foi impotente para coordenar uma resposta global contra a covid-19 e a OMC faz 28 anos que não consegue concluir uma ronda global de livre comércio só para citar três exemplos. Os Estados Unidos, os principais criadores da arquitetura institucional global, não conseguem fazer aprovar no seu Congresso um acordo de comércio há vários anos. A integralidade de fronteiras e um comércio crescentemente livre contribuíram desde o final da II Guerra Mundial não só para um período de paz entre as grandes potências sem paralelo na história como fizeram avançar a humanidade em todas as dimensões. Depois do fim da Guerra Fria, tivemos ainda o “dividendo da paz” que permitiu a muitos países relocarem despesas militares para outros fins nomeadamente no domínio econômico e social contribuindo ainda mais para as várias décadas de prosperidade global que vivemos.

E o que a história nos ensina sobre períodos semelhantes ao que hoje assistimos? Conseguimos reformar e aproveitar as diferentes crises para dar um novo ímpeto à ordem existente ou a entropia vence? Existem exemplos diferentes ao longo dos tempos. Se recuarmos vários séculos temos a crise do terceiro século do Império Romano. Depois do seu apogeu que terminou com o reinado de Marco Aurélio, até hoje os historiadores se questionam como o império não colapsou com o efeito da crise de governança e guerras civis em sucessão, pandemia e múltiplas invasões sobre o Império mas o que é fato é que em virtude de reformas militares, administrativas, políticas e econômicas, o Império iria durar mais dois séculos no Ocidente e mais de um milênio no Oriente.

Avançando no tempo, temos a ordem estabelecida no Congresso de Viena de 1814/1815 que estabeleceu, no seguimento das guerras napoleônicas, uma paz quase ininterrupta na Europa até à Primeira Guerra Mundial e que sobreviveu a toda a agitação política de 1848 e à Guerra Franco Prussiana de 1870 tendo ainda acomodado neste período as unificações da Alemanha e Itália. O vazio de liderança entre as duas guerras mundiais do século passado, com o ocaso do Império Britânico e a relutância dos EUA de assumirem um papel relevante na cena mundial, em parte criou o contexto para a eclosão da segunda guerra mundial e no seguimento deste conflito às instituições criadas, e que ainda hoje existem, que procuraram resolver os problemas detectados na década que precedeu o conflito. O protecionismo e a impunidade com que potências importantes invadiram e anexaram nações mais pequenas. 

Também no capítulo das ideias temos uma mudança significativa. A globalização que é a filha pródiga das últimas quase quatro décadas se baseia numa visão otimista e positiva da realidade. Otimista sobre as relações entre países onde a paz e as relações econômicas substituem o confronto, sobre a tecnologia e o seu potencial e sobre a própria sociedade. Mesmo na Guerra Fria, o confronto se realizava entre duas visões modernistas da sociedade, embora uma delas fosse de natureza totalitária. Hoje o pessimismo sobre o futuro domina. Do fundamentalismo islâmico à extrema direita em muitas democracias passando pelas visões de diferentes regimes autoritários, o futuro é fonte de temor sendo substituído por uma visão imaginária de um passado idealizado.

O otimismo sobre o potencial da tecnologia vem sendo substituído por uma visão bem mais negativa sobre os efeitos da mesma, a começar pelas redes sociais e a sua interação com a sociedade e política. A noção de aldeia global é substituída pelo medo da imigração traduzido pelas narrativas da “grande substituição demográfica” muito difundidas na Europa e Estados Unidos. O livre comércio é visto faz tempo como um jogo de soma nula. O cosmopolitismo das cidades é desleal a um ideário fantasioso de nação pura. Os movimentos anti-ciência abundam em diferentes áreas. Estes são os sinais da principal fratura da nova realidade global. Entre modernidade e anti-modernidade. E nesse sentido o regime de Putin e a guerra na Ucrânia é um perfeito exemplo dessa realidade. Putin olha para Pedro I e para o Império Russo (Catarina I, a verdadeira  fundadora do Império Russo não recebe a mesma veneração por ser mulher e ainda por cima alemã) como o seu modelo. Um século XVIII imaginado sendo revivido em pleno século XXI.

O regime Chinês olha para a dinastia Ming dos séculos XIV e XV. A Índia para a pureza do hinduísmo antes entrada do Islão com as invasões do Império Mughal. O nacionalismo cristão nos EUA para a década de 1950 e na Europa cada partido de extrema direita escolhe o seu pedaço de passado imaginado favorito. O temor de declínio e decadência está presente na arena política se traduzindo nos países democráticos por grande instabilidade política e de políticas públicas e nos países autoritários por decisões verdadeiramente catastróficas ao estilo de última cartada antes do encerramento do Cassino. A invasão da Ucrânia tem que ser vista por esta perspectiva e um eventual ataque da China a Taiwan também. Quando as elites chinesas estavam confiantes do seu futuro e ascensão, elas olhavam para a reunificação pacifica com Taiwan como algo inevitável, à semelhança do que se passou com Hong Kong. Não mais. Hoje, os setores mais nacionalistas da elite chinesa vêm nesta década a última oportunidade de anexar Taiwan e dentro desta lógica catastrofista todos os meios são permitidos.  

Apesar dos desafios globais que afetam toda a humanidade sem exceção, com particular relevo para o clima, a resposta política das diferentes nações fez o mundo entrar num período de desglobalização que torna qualquer solução bem mais difícil. Na verdade, a romantização de um passado imaginado apenas torna o nosso futuro bem menos promissor nada oferecendo de concreto para a solução dos desafios futuros.

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