Exame.com
Continua após a publicidade

A Grande Pausa

Em muitos países, inclusive no Brasil, as próximas duas semanas são decisivas para conter a propagação da epidemia

São Paulo: o estado decretou quarentena compusória para os comércios. (Rahel Patrasso/Reuters)
São Paulo: o estado decretou quarentena compusória para os comércios. (Rahel Patrasso/Reuters)
D
Diogo Castro e Silva

Publicado em 23 de março de 2020 às, 15h36.

Agora que o mundo todo mergulhou na pandemia do COVID19, escrever no meio do turbilhão é sempre difícil, sobretudo quando se procura dar alguma perspetiva para o futuro. Vivemos um momento com muito poucos precedentes relevantes na história e por isso nem essa muleta temos disponível. A Gripe espanhola de 1918 ocorreu em economias devastadas pela Primeira Guerra Mundial e pouco conectadas pela mesma razão. Mas vamos ao que sabemos. A primeira coisa é que devemos agradecer que o COVID19 aparece em 2019 e não em 2002/2003 quando ocorreu a do SARS. Em 2003, o mundo já era suficientemente globalizado para uma epidemia à escala planetária e tanta coisa não existia para tornar uma quarentena mais factível e menos penalizadora. Ferramentas de trabalho remoto, WhatsApp, streaming, apps de delivery, etc. A segunda, é que cada semana é uma eternidade que pode alterar a trajetória da pandemia. Em muitos países, inclusive no Brasil, as próximas duas semanas são decisivas para conter a propagação da epidemia. Caso as populações colaborem na quarentena é possível limitar o pico de contaminação esperado para Abril e com isso alterar a dinâmica de propagação da doença. Terceiro, o período duas semanas e a palavra colaborem são conceitos fundamentais. A quarentena horizontal imposta em tantos países dificilmente se sustenta economicamente por mais do que um par de semanas e nas democracias ela depende e muito da colaboração e aceitação por parte da população, algo também finito no tempo.

Nassim Taleb, o autor do famoso livro Cisne Negro, é talvez um dos maiores epistemologistas de risco no mundo. Na sua literatura, ele fala muito de como sistemas complexos têm sempre a fragilidade do seu elo mais fraco. E na economia mundial, com toda a sua riqueza e inovação tecnológica, esse elo mais fraco se revelou ser respiradores. Uma tecnologia com décadas de existência mas crítica na capacidade dos sistemas de saúde em lidarem com a doença. Taleb formula também como uma das principais falácias das previsões é usar o passado para projetar o futuro. No preço de praticamente todas as classes de investimento há duas semanas não estava o efeito devastador sobre a economia das quarentenas impostas em tantos países da mesma forma que hoje no preço não estão os efeitos positivos sobre a propagação da doença dessas mesmas quarentenas bem como dos progressos no diagnóstico e tratamento da epidemia. Continuamos ainda a usar o passado para projetar o futuro. Aqui tem faltado muito às lideranças dos diferentes países uma articulação clara do direcional das políticas pós quarentena permitindo aos mercados ancorar as suas expectativas. O COVID19 não vai desaparecer e muitos peritos apontam que o vírus irá estar presente ano após ano como as gripes sazonais. Assim, numa primeira fase, quarentenas verticais dirigidas aos grupos de maior risco (idosos e portadores de algumas doenças crônicas) serão inevitáveis permitindo ao resto da população desenvolver imunidade e retomar a sua atividade econômica. A tecnologia também dará uma ajuda permitindo monitorar de forma adequada os futuros surtos da doença. China, Japão e Coreia do Sul são os pioneiros nesta abordagem e ilações importantes para os outros países podem ser retiradas.

Por último, o futuro pós COVID19. Muitos dos que projetam o futuro o fazem debaixo do prisma do que não gostam do mundo atual. Na minha opinião, muita coisa vai ficar exatamente na mesma. Mas existem áreas onde vão haver alterações importantes ligadas a mudanças de comportamento criadas pela pandemia e pelas quarentenas impostas ao redor do mundo. Muitas vezes a adoção plena de tecnologias já existentes depende de eventos singulares como o COVID19. Temos neste capítulo as áreas da teleducação e telemedicina. Outra área é sem dúvida a do teletrabalho que vai ter implicações por exemplo na procura e utilização de espaço de escritório pelo mundo no futuro. Viagens de negócios dificilmente voltarão aos níveis do pré COVID19. Mesmo viagens de lazer tenderão, pelo menos numa primeira fase, a privilegiar o turismo outdoor em detrimento do mais citadino. E não, a doença não vai terminar com a globalização. O descontrolo originado pela epidemia teve menos a ver com globalização e mais com ausência duma eficaz governança de temas globais como pandemias.

Por último, uma mensagem mais pessoal.

Existiu a Grande Depressão de 1929, a Grande Guerra, a Grande Crise Financeira de 2008. O que vivemos hoje é a Grande Pausa. Esta pausa que nos foi pedida não é para todos. É só para nós. Não é para os profissionais de saúde e todos agentes públicos que enfrentam a pandemia com dedicação e entrega. Esses têm infelizmente de correr muito, lutando contra o tempo. Porque, infelizmente agora, tempo representa vida ou morte. Também não é romantizar o momento. Vai existir demasiada perda para isso. Tantos pequenos negócios, do boteco ao restaurante, do café ao vendedor de praia ao camelô. Vidas que estão sendo alteradas. Sonhos e aspirações interrompidos. Tanta coisa depende, enfim de gente junta. Do ir e vir. Do chegar e partir. Do conviver. E tudo isso agora tem que parar. Isso é a Pausa. Que é Grande porque é e tem que ser Global. Mas que depende de nós para que seja pequena no tempo. Que saibamos no meio da Pausa fazer Play em coisas que estavam para as quais, enfim, parecíamos não ter tempo às vezes. Filhos, mulher, marido, família. Ou simplesmente conosco mesmos.