Pelo fim do conformismo
Os direitos humanos são direitos, também, das mulheres. Dificilmente encontraríamos uma pessoa que se oponha abertamente à esta noção
Publicado em 14 de dezembro de 2020 às, 17h06.
“Silêncio, não é neutralidade. É apoiar o status quo”.
Yuval Harari, 21 Lições para o Século XXI
Os direitos humanos são direitos, também, das mulheres. Dificilmente encontraríamos uma pessoa que se oponha abertamente à esta noção. Parece até desnecessário, por vezes, lembrar esta obviedade. Mas a experiência prática nos ensina, reiteradas vezes, que as obviedades precisam ser lembradas, na consciência, nas escolhas, nos exemplos e nas práticas.
O status quo
Vejamos alguns episódios recentes que exemplificam, de forma emblemática, como o conservadorismo ainda fere o acesso das mulheres a seus direitos garantidos em lei, de forma consistente. Em janeiro deste ano, assistimos à estarrecedora decisão de um juiz do Amazonas Fábio Lopes Alfaia - que absolveu acusados de terem praticado estupro coletivo contra uma adolescente. Não satisfeito, o magistrado ainda determinou que a jovem fosse investigada por denunciação caluniosa. Decisão similar ocorreu nos últimos dias de setembro, quando testemunhamos a absolvição de um homem por “legítima defesa da honra”, mesmo sendo réu confesso do crime praticado contra sua esposa. Sim, estamos falando do mesmo argumento utilizado em 1976 pela defesa de Doca Street no julgamento do assassinato de Ângela Diniz, que impulsionou a luta dos movimentos feministas pela garantia dos direitos das mulheres. A absolvição pelo Tribunal do Júri foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal.
Outro episódio, ocorrido na primeira semana de novembro - mês em que se celebra internacionalmente o ativismo pelos Direitos Humanos - também estarreceu a todos. Acompanhamos o caso ocorrido em Santa Catarina, também de estupro, cujo desfecho foi a absolvição do réu por falta de provas mesmo diante de comprovação pericial do crime. O vídeo do julgamento, em que se observam cenas de ataque à reputação da vítima, registra e viraliza um fenômeno recorrente nesse tipo de processo no Brasil: a difamação da vítima como meio de inocentar e proteger o agressor. Este caso é emblemático pois espelha o tratamento indigno estendido às pessoas que sofrem estupro no Brasil: elas passam a ocupar o lugar de réus, frequentemente humilhadas e revitimizadas pelas mesmas instituições que deveriam fazer-lhes justiça. São desacreditadas, julgadas e condenadas pela violência que sofreram. Não é à toa que o estupro é um crime altamente subnotificado: no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 1, registraram-se 180 casos por dia sendo que, em 54% deles, as meninas tinham menos de 13 anos. Sabemos, no entanto, que este número representa apenas uma aproximação da realidade visto que o estupro é um crime largamente subnotificado, invisibilizando a gravidade e a extensão do problema e alimentando a condescendência social que o perpetua.
Um antídoto contra a indiferença
Este estado de coisas nos coloca diante das questões: qual a responsabilidade moral de cada um de nós na proteção dos direitos à vida e à liberdade? Em que medida somos capazes de ensejar as mudanças que queremos ver no mundo? Como dar consequência ao nosso desejo de uma sociedade em que “todo dia seja dia de viver”? Estas são as perguntas que nos permitem perceber que não há neutralidade. Somos ativistas da mudança, com consciência e intenção, ou ativistas da negligência, pela omissão ou indiferença. Uma e outra atitude têm consequências morais e práticas e nos conduzem a visões diferentes de sociedade.
É verdade que no imaginário das pessoas o conceito de ativismo ganhou contornos assustadores que frequentemente nos remetem a cenas de violência. Mas a história recente nos mostra o poder irresistível do ativismo pacífico, moralmente elevado e corajosamente engajado. Para que não reste nenhuma lacuna semântica, proponho uma definição do que quero dizer quando falo de ativismo.
Ativismo: s.m. Transformação da realidade por meio da ação prática. Qualquer doutrina ou argumentação que privilegie a prática efetiva de transformação da realidade em detrimento da atividade exclusivamente especulativa.2 É a esta predisposição a ser a mudança que me refiro.
Esperança é acreditar que vale a pena
Muitas vezes somos impotentes para evitar a injustiça, mas nunca deveríamos ser indiferentes a ponto de não protestar. Faz diferença? Nunca poderemos saber, a priori, todos os desdobramentos da nossa ação no mundo. Tudo o que fazemos, ou deixamos de fazer, tem o potencial de gerar reações, ou cadeias de reações, cujo alcance somos incapazes de prever ou controlar. Se isto sempre foi verdade, é uma verdade ainda mais evidente e poderosa atualmente, quando acrescentamos à realidade a sua dimensão virtual. Mas podemos ter uma certeza: a de que vale a pena tentar. Nenhum de nós precisa esperar, um minuto sequer, para transformar para melhor o mundo em que vivemos. A alternativa seria desistir, desviar o olhar, abdicar das nossas responsabilidades ou delegar para alguém, ou algo, o controle de nossas decisões. Mas há coisas das quais não podemos desistir, pois dão sentido à vida. Não podemos desistir da coragem, pois ela habilita todas as outras virtudes diante dos obstáculos. Não podemos desistir da responsabilidade, pois isto equivaleria a abdicar da nossa ação intencional sobre a vida e o mundo. Não podemos evitar agir em sintonia com as nossas crenças, sob pena de ferir a nossa integridade.
Resta a possibilidade de um olhar novo neste mês em que celebramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos, no mesmo dia em que se encerram os 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra mulheres. Experimentemos enxergar e não desviar o olhar e, ao confrontar-nos com uma situação que negue à uma mulher aqueles direitos humanos com os quais todos concordamos, posicione-se. Como nos lembra Hannah Arendt, “a verdade triste é que a maior parte do mal é causado por pessoas que nunca se decidiram sobre ser ou fazer, seja o mal ou o bem.3”
Por fim, reitero: não há neutralidade e a decisão consciente é o nosso único recurso. Que possamos, nestes 21 dias de ativismo, exercê-la com intenção, todos os dias, até que se torne um hábito. Um hábito suficientemente poderoso para forjar uma nova realidade.