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Cultura e (ir) responsabilidade

A perene dinâmica entre a justiça e a moral e suas implicações

A mesma moral, entendida como aquilo que validamos como regras de comportamento com base em costumes, habitualmente condenam a mulher pela violência sofrida enquanto redime o agressor, gerando na prática, uma moral injusta (Fernando Frazão/Agência Brasil)
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Da Redação

Publicado em 23 de fevereiro de 2022 às 12h16.

Última atualização em 23 de fevereiro de 2022 às 16h06.

Por Daniela Grelin*

Um dos maiores desafios no acesso aos direitos humanos está no fato de que, em última análise, tais consentimentos se manifestam a partir da consciência humana e suas múltiplas matrizes de interpretação. Nesta dinâmica em que o sistema de justiça e o foro íntimo obedecem a diferentes perspectivas de tempo, regras e escrutínio, há uma lacuna entre as violações e a capacidade dos sistemas de dar consequência às leis criadas para coibi-las. Nestas lacunas, a cultura e a dissonância entre moral e regra, às vezes fomentam a desesperança, mecanismo criativo de controle social.

Vejamos um caso prático e emblemático. Neste início de ano, o jogador Robinho foi condenado em última instância e decisão definitiva, a nove anos de prisão por crime de violência sexual em grupo, pela Corte de Cassação de Roma. O caso foi julgado com abundância de provas, inclusive um texto do próprio jogador: "Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu".

É exatamente o fato de que ela não se encontrava em condições de expressar sua vontade, sob efeito do álcool, que caracterizou o estupro. Na lei brasileira, tanto quanto na italiana, uma pessoa que foi dopada ou está alcoolizada, mesmo que esteja em estado de inconsciência por vontade própria, não pode ser submetida a uma violação sexual. Diante desta proteção ao ser humano prevista na legislação, a corte responsabilizou o jogador pela violência cometida.

Contudo, no oceano que muitas vezes separam as normas de suas consequências práticas, o que se vê é um desenrolar de acontecimentos que parece habilitar a impunidade, seja quando o princípio da lei é atropelado pelo viés moral de quem a aplica, seja pela frustração decorrente da busca ágil de justiça e o imenso labirinto de processos burocráticos que se apresentam como a forma mais legítima de exercê-la.

Não são poucas as instâncias em que o viés moral se sobrepõe à Lei. Muitos de nós ainda se lembram do Juiz da Vara de Família em São Paulo, que declarou em audiência online, o que provavelmente se repete todos os dias em inúmeros julgamentos que nunca chegam ao debate público: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe (sic), eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

O que fez deste caso um vetor de indignação geral foi menos o flagrante desprezo à legislação que deveria informar a decisão do Juiz, mas o fato de a sessão ter ganhado a atenção pública, nos fornecendo um exemplo claro de um vício social recorrente.

A mesma moral, entendida como aquilo que validamos como regras de comportamento com base em costumes, habitualmente condenam a mulher pela violência sofrida enquanto redime o agressor, gerando na prática, uma moral injusta.

É verdade que a evolução da sociedade busca superar esta dissonância entre leis e moral. Idealmente, pela incorporação de novos preceitos morais ao arcabouço legal, como pela legitimação da união homoafetiva, por exemplo.

Às vezes, o efeito inverso se observa quando ocorre a banalização e aceitação social da injustiça, em um contexto histórico e social, em que regras injustas perenizam práticas desumanas. Foi a injustiça de certas legislações e a indicação de uma obrigação moral de desobedecê-las que Martin Luther King Jr. destacou, apontando como critério de distinção entre decretos justos e injustos, o seu efeito sobre a dignidade humana. Uma norma arbitrária, segundo ele, era uma lei que degrada a dignidade humana.

Mas uma coisa é certa, quando a aplicação das leis justas esbarra no labirinto complexo dos acordos jurídicos internacionais, atrasando ou inviabilizando as suas consequências práticas, não há recuo histórico ou relativização intercultural que possa suavizar a dor dessas pessoas e o clamor por justiça. Vale então o recurso ao controle social e seus múltiplos e criativos meios para sinalizar que em nossos dias, em nossa sociedade, estes crimes não passarão sem consequências.

*Daniela Grelin é diretora executiva do Instituto Avon

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Por Daniela Grelin*

Um dos maiores desafios no acesso aos direitos humanos está no fato de que, em última análise, tais consentimentos se manifestam a partir da consciência humana e suas múltiplas matrizes de interpretação. Nesta dinâmica em que o sistema de justiça e o foro íntimo obedecem a diferentes perspectivas de tempo, regras e escrutínio, há uma lacuna entre as violações e a capacidade dos sistemas de dar consequência às leis criadas para coibi-las. Nestas lacunas, a cultura e a dissonância entre moral e regra, às vezes fomentam a desesperança, mecanismo criativo de controle social.

Vejamos um caso prático e emblemático. Neste início de ano, o jogador Robinho foi condenado em última instância e decisão definitiva, a nove anos de prisão por crime de violência sexual em grupo, pela Corte de Cassação de Roma. O caso foi julgado com abundância de provas, inclusive um texto do próprio jogador: "Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu".

É exatamente o fato de que ela não se encontrava em condições de expressar sua vontade, sob efeito do álcool, que caracterizou o estupro. Na lei brasileira, tanto quanto na italiana, uma pessoa que foi dopada ou está alcoolizada, mesmo que esteja em estado de inconsciência por vontade própria, não pode ser submetida a uma violação sexual. Diante desta proteção ao ser humano prevista na legislação, a corte responsabilizou o jogador pela violência cometida.

Contudo, no oceano que muitas vezes separam as normas de suas consequências práticas, o que se vê é um desenrolar de acontecimentos que parece habilitar a impunidade, seja quando o princípio da lei é atropelado pelo viés moral de quem a aplica, seja pela frustração decorrente da busca ágil de justiça e o imenso labirinto de processos burocráticos que se apresentam como a forma mais legítima de exercê-la.

Não são poucas as instâncias em que o viés moral se sobrepõe à Lei. Muitos de nós ainda se lembram do Juiz da Vara de Família em São Paulo, que declarou em audiência online, o que provavelmente se repete todos os dias em inúmeros julgamentos que nunca chegam ao debate público: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe (sic), eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

O que fez deste caso um vetor de indignação geral foi menos o flagrante desprezo à legislação que deveria informar a decisão do Juiz, mas o fato de a sessão ter ganhado a atenção pública, nos fornecendo um exemplo claro de um vício social recorrente.

A mesma moral, entendida como aquilo que validamos como regras de comportamento com base em costumes, habitualmente condenam a mulher pela violência sofrida enquanto redime o agressor, gerando na prática, uma moral injusta.

É verdade que a evolução da sociedade busca superar esta dissonância entre leis e moral. Idealmente, pela incorporação de novos preceitos morais ao arcabouço legal, como pela legitimação da união homoafetiva, por exemplo.

Às vezes, o efeito inverso se observa quando ocorre a banalização e aceitação social da injustiça, em um contexto histórico e social, em que regras injustas perenizam práticas desumanas. Foi a injustiça de certas legislações e a indicação de uma obrigação moral de desobedecê-las que Martin Luther King Jr. destacou, apontando como critério de distinção entre decretos justos e injustos, o seu efeito sobre a dignidade humana. Uma norma arbitrária, segundo ele, era uma lei que degrada a dignidade humana.

Mas uma coisa é certa, quando a aplicação das leis justas esbarra no labirinto complexo dos acordos jurídicos internacionais, atrasando ou inviabilizando as suas consequências práticas, não há recuo histórico ou relativização intercultural que possa suavizar a dor dessas pessoas e o clamor por justiça. Vale então o recurso ao controle social e seus múltiplos e criativos meios para sinalizar que em nossos dias, em nossa sociedade, estes crimes não passarão sem consequências.

*Daniela Grelin é diretora executiva do Instituto Avon

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