Cancelar artistas e atletas russos não leva a lugar nenhum
Artistas, cineastas e esportistas russos são excluídos de festivais, mostras e eventos esportistas. O principal motivo: ser cidadãos russos.
Publicado em 3 de março de 2022 às, 15h36.
Última atualização em 6 de março de 2022 às, 14h41.
Marta Porto
Uma onda de suspensões de contratos e cancelamentos de artistas, cineastas e atletas russos vêm ocorrendo nos últimos dias como manifestação de rejeição à guerra patrocinada por Vladimir Putin na Ucrânia.
O Comitê Paralímpico Internacional (CPI) anunciou na quinta, dia 3 de março, que os atletas russos e bielorrussos estão excluídos dos Jogos Paralímpicos de Inverno em Pequim. A Ópera Estatal da Baviera, de Munique, cancelou os compromissos contratuais que tinha com o regente Valery Gergiev e com a soprano Anna Netrebko, duas estrelas da música clássica internacional. Gergiev já havia sido demitido do cargo de diretor da Orquestra Filarmônica da mesma cidade. O Festival de Cannes baniu as delegações oficiais russas da edição 2022, enquanto a Academia Europeia de Cinema (EFA) excluiu as inscrições de cineastas russos no European Film Awards. O cineasta russo Kirill Sokolov, cuja família é metade ucraniana, teve cancelado pelo Festival de Cinema de Glasgow, na Escócia, seu último filme "No Looking Back". Solokov colocou seu nome em duas petições on line pedindo o fim da guerra antes do festival cancelar seu lançamento.
Segundo o crítico do The New York Times, Alex Marshall que escreveu sobre o assunto no último dia 4 de março, "uma porta-voz do festival disse em um e-mail que o filme de Sokolov - uma comédia sobre mãe e filha tentando se matar - recebeu financiamento estatal russo. A decisão de excluir o filme não foi um reflexo do próprio cineasta, disse ela, mas seria "inapropriado prosseguir normalmente com as exibições enquanto o ataque ao povo ucraniano continua".
As alegações para os expurgos são muitas, desde a “falta de distanciamento” dos artistas do governo Putin ou “declarações insuficientes” ou "produções que recebem financiamento de fundos estatais". No caso de Gergiev, as estreitas relações com o governo Putin e as manifestações inequívocas de apreço por suas investidas autoritárias parecem amenizar as críticas sobre a seletividade dos bloqueios contra artistas russos, ainda que se possa discutir o longo período de colaborações com o maestro e com vários artistas de nacionalidades distintas que apoiaram invasões e guerras. Mas não é o caso de outros cancelamentos que estamos assistindo nos últimos dias.
A pergunta que muitos estão se fazendo é: artistas, atletas e intelectuais devem ser punidos por atos de seus governantes, ainda que mantenham uma posição dúbia em relação a eles?
Se por um lado excluir delegações oficiais culturais ou esportivas de um país que viola as leis internacionais ao invadir a soberania de outro parece uma medida extrema, mas previsível no jogo de sanções e pressões políticas, cancelar artistas, cineastas e atletas por sua nacionalidade ou por uma alegada ausência de posicionamento público mais ostensivo é expressão da fraqueza das instituições culturais diante dos valores que deveriam defender, por princípio.
Há um mês, um pouco antes do início da guerra, em uma troca com uma colega grega que atua em várias redes europeias de instituições culturais e vive em Portugal, Maria Vlachou, lhe perguntei como suas instituições estavam lidando na prática com a xenofobia, o racismo e os extremismos crescentes na Europa. Vlachou me respondeu com uma pergunta que vale também para os expurgos de agora:
“Por que é que fazemos o que fazemos?” e, ainda, “Qual é a nossa relevância?”
Pois, por que fazemos o que fazemos? Se as instituições culturais em momentos de crise não são capazes de proteger artistas e defender a liberdade de criação, mobilidade e trabalho artísticos, qual é a essência do seu trabalho? Programar calendários em tempos de paz e prosperidade, evitando cada vez mais o dissenso, pessoas e temas incômodos?
Não é preciso uma guerra para defender princípios básicos, como o de não confundir povo com as decisões tomadas por seus governantes, ou de proteger e defender a plena participação de qualquer cidadão na vida cultural, independente de sua nacionalidade, origem, etnia, religião ou, no limite, até de suas posições políticas desde que elas não confrontem princípios de dignidade humana.
Expurgar artistas, intelectuais, atletas e o povo russo da vida cultural e dos meios de trabalho e remuneração de suas profissões não vai acabar com a guerra. Nem as sanções indiscriminadas estão conseguindo isto. O expurgo apenas promove um experimento injusto de pressão psicológica, que seria até infantil se as consequências para quem sofre não fossem imensas. E mostra a seletividade das decisões das grandes instituições culturais europeias e norte-americanas, que não parecem ser motivadas por princípios como ser anti guerra em qualquer circunstância, ou contra invasões que violam a soberania de países, independente de quem as está empreendendo.
O único resultado previsível, em termos políticos, é diminuir ainda mais a relevância das instituições culturais em momentos em que elas são convidadas a darem respostas que não reforcem a exclusão, o ódio e a discriminação. O cardápio que nos fez chegar até aqui.