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O governo atravessa o samba ao ver a banca fantasiada do bate-bola

Tradição carnavalesca carioca carrega o simbolismo da agressividade mas é um protesto contra a opressão

Fato é que as diatribes de Lula − ainda que a crítica aos juros seja um tema pertinente − atira no alvo errado, além de ser desrespeitosa com quem, em 2003, era contrário à quebra de contratos na economia (Ricardo Stuckert/PR/Flickr)
Fato é que as diatribes de Lula − ainda que a crítica aos juros seja um tema pertinente − atira no alvo errado, além de ser desrespeitosa com quem, em 2003, era contrário à quebra de contratos na economia (Ricardo Stuckert/PR/Flickr)
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Coriolano Gatto

Publicado em 21 de fevereiro de 2023 às, 12h56.

Aleksei Ivánovitch é um dos mais emblemáticos personagens de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o escritor russo que mergulha na psiquê humana. O engenheiro com pendor para tradutor constrói um romance pautado por ganho, perdas e desespero. “O Jogador”* é um livro admirado por dois grandes empresários que deixaram cedo o seu estado natal. A obra foi escrita, sob encomenda de um editor inescrupuloso, a toque de caixa para pagar as eternas dívidas de Dostoiévski e de sua família. “E por que o jogo é pior do que outro meio de ganhar dinheiro, por exemplo, digamos o comércio? É verdade que, de cem que jogam, só um ganha. Mas o que eu tenho a ver com isso?”. Ao contrário do que imaginam mentes supostamente brilhantes, a jogatina de um cassino, em Reno, em meio a uma atmosfera carregada de névoa de cigarro, não tem qualquer relação com a bolsa de valores nem mesmo com os complexos mercados de câmbio e de juros. O governo brasileiro, ao atacar uma instituição como o Banco Central, teve um comportamento semelhante ao da irresponsabilidade de Ivánovitch, da mesma forma que é um acinte à inteligência perseguir metas de inflação e de superávits primários incompatíveis com a realidade brasileira, que enfrenta um gravíssimo conflito distributivo e índices históricos de perdas de empregos de alta qualidade combinado com aumentos de pobreza. Adicione-se a isso furtos, roubos e todo tipo de transgressão à dignidade da pessoa humana.

O Banco Central, ainda que independente como determina a legislação, precisa, sim, ser posto em xeque por chancelar taxas de juros muito altas em uma economia que patina e sofre os efeitos da recessão mundial e inflação registradas em importantes nações do mundo, além da interminável Guerra na Ucrânia. É verdade que os Estados Unidos convivem com taxas de desemprego reduzidas, o que vai levar o banco central americano (Fed, na sigla em inglês) a elevar, mais uma vez, o juro para conter a alta dos preços. Os ortodoxos insistem em que a expansão monetária é a causadora dos juros pornográficos − como diria Roberto Campos, avô do presidente do BC − por irresponsabilidade fiscal do governo. Os heterodoxos − ou uma parte deles − acreditam que o aumento do gasto público, desde que aplicado em infraestrutura e em projetos estruturantes, resultam em mais emprego e renda e, com isso, terá um forte impacto na arrecadação de impostos. Há, nessa visão resumida, espaço para conviver com uma taxa de juros muito baixa e esquecer o rigor da política fiscal.

Todos concordam que a atual meta de inflação é irrealista, ainda que a sua manutenção temporária crie instrumentos de credibilidade para o Ministério da Fazenda.

O fato é que as diatribes de Lula − ainda que a crítica aos juros seja um tema pertinente − atira no alvo errado, além de ser desrespeitosa com quem, em 2003, era contrário à quebra de contratos na economia. Naquela época, dois importantes ministros do presidente, José Dirceu e Luiz Gushiken, companheiros de longa data, tiveram papel crucial para frear os arroubos do político experiente. Agora, Lula opina sobre qualquer assunto e, muitas vezes, em tons muito acima do razoável para o cargo que conquistou em eleições limpas e livres. Da mesma forma que Bolsonaro ofendia o Supremo Tribunal Federal, Lula escolheu como inimigo público número um o BC, cujo salário do presidente é um quinto do que ganha o comandante do BNDES, noves fora os generosos benefícios. É uma distorção que beira à sem-vergonhice, típica de um Estado legiferante.

O mais duro nesse ataque é alvejar as forças vivas do mercado financeiro, que irrigam a economia. Lula talvez não saiba, mas o socialista Carlos Andrés Péres, então presidente da Venezuela, anos 1990, sofreu o impeachment ao subestimar uma crise bancária que se transforma em um tsumani − a economia encolheu quase 9%, levou de roldão cerca de 50% dos bancos e teve um custo de 18% do PIB. No Brasil, de FHC 1, o chamado Proer, o programa de estímulo à reestruturação e ao fortalecimento do sistema financeiro nacional, foi fundamental para evitar uma crise sistêmica, após a quebra dos bancos Nacional e Econômico. Naquela época, o PT, líder da oposição, dizia que era mesada para banqueiros falidos. A história provou que o partido estava na contramão e o pequeno investidor foi protegido da quebradeira - o Fundo Garantidor atual foi aprimorado e deu maiores garantias aos participantes do mercado.

Hoje, atacar grandes bancos e empresas de investimentos sérias é um desatino. É uma estultice acreditar que os bancos preferem juros na lua. Por definição, os ganhos decorrem de empréstimos a juros baixos e de longo prazo, bem como em aplicações em renda variável e em uma grande gama de produtos financeiros.

É o crédito, estúpido, parafraseando a platitude do marqueteiro de Bill Clinton, ex-presidente americano. A renda fixa (leia-se o Tesouro Direto) virou o grande xodó dos investidores, e, com ela, muitos analistas vão perder o emprego. Seremos todos cafetões da dívida pública, que, neste ano, terá um custo para as contas públicas de R$ 650 bilhões, apenas com o pagamento de juros, considerando um PIB de R$ 9,8 trilhões, de acordo com o FGV Ibre. Os rentistas estão com a corda toda. Em Lula 1, os juros começaram com 25,5% em janeiro de 2003 ante os atuais 13,75%.

Sem rumo definido, o governo perde tempo com questões menores, enquanto a pobreza aumenta a cada dia nas ruas das grandes cidades. Não há almoço grátis, ensinou o liberal Milton Friedman, e é impossível resolver todas as mazelas e desigualdades sociais em um curto espaço de tempo. O dinheiro é curto e o Orçamento, completamente engessado. A reforma tributária só esquenta no segundo semestre. Será uma batalha mais dura do que a da Previdência em 2019. Lula precisa curtir o “grace period”, aqueles seis meses de paz com a sociedade, e descansar no carnaval, na Bahia. A sua popularidade permanece alta.

Mas há problemas à vista. O loteamento de cargos para o Centrão, como a Codevasf, é um exemplo cristalino de que sempre pode piorar aquilo que já estava fora dos trilhos. Ninguém tem uma pista dos projetos de infraestrutura, capazes de multiplicar empregos, como atestam estudos acadêmicos. A parceria com as empresas privadas na área de transformação digital − TI, inteligência artificial e robótica − podem tirar as próximas gerações do atoleiro. O governo anterior destruiu a saúde, a educação, a cultura e o meio ambiente. Salvou, isto sim, uma diretriz econômica robusta, mesmo com um chefe de Estado completamente fora de rumo e de eixo, que muitas vezes passava o fim do dia brincando de games e agredindo jornalistas e tudo aquilo que via pela frente. Por muito pouco, não desmoralizou as Forças Armadas.

É preciso tomar uma vacina de industrialização na veia em vez de sermos condenados a exportar commodities. A indústria derrete, e hoje 29% da arrecadação de impostos provêm de um setor que patina em 11% do PIB, enquanto o agronegócio (28% do PIB) recolhe impostos baixos. Antes que apareça um tolo formado em economia da sociologia (sic), é proibido aumentar os impostos do bem-sucedido agronegócio brasileiro. Da mesma forma, o número divulgado pela Fiesp não difere os regimes especiais vigentes em diferentes setores, como o da indústria química. Outra vez: não é hora para cortar esses incentivos no momento em que a indústria petroquímica, no mundo inteiro, atravessa um ciclo de baixa até 2024. Não à toa as empresas do setor apertaram o cinto em grau máximo para manter a quitanda aberta todos os dias.

O que mais espanta no governo é o dogmatismo a ideias que cheiram à velhacaria. Ser contrário a vender estatais sem qualquer importância, como o Correios, que foi pilhado por políticos do Centrão em parte de governos petistas, a ponto de quebrar o fundo de pensão Postalis, é se agarrar a uma corda esgarçada.
O liberal Roberto Campos, o grande mentor das reformas que fortaleceram o Estado brasileiro e criaram as condições para um grande salto na economia, após 1967, era um frasista de primeira. Falando para uma plateia de 200 estudantes, na aula inaugural do antigo Ibmec, no longínquo 1997, no Rio, ele deu uma marretada na empresa estatal de telefonia fluminense, que hoje faz parte do conglomerado privado Oi: "Vejam como a Telerj é ineficiente. Tentei falar três vezes pelo meu celular e não consegui. Aliás, o celular faz mal para a masculinidade: é cada vez menor, anda sempre dobrado, cai a ligação várias vezes e não funciona quando entra no túnel". Apelidada de Telerda − um misto de Telerj com merda − pelo então ministro das Comunicações, Sergio Motta, a estatal fora presidida pelo notório ex-deputado Eduardo Cunha, no Governo Collor de Mello (1990-1992). A plateia, composta por meninas e meninos, caiu na gargalhada.

Certamente, hoje, o querido Bob Fields − apelido maledicente dado por um assessor do presidente Getúlio Vargas − estaria censurado pela turma do politicamente correto. Registre-se que Campos, fundador do antigo BNDE, anos 1950, e mentor do Plano de Metas, no Governo JK, era acusado de entreguista, ligado às forças terríveis do capital estrangeiro e de outras baboseiras de uma esquerda nacionalista ainda presa a um barco à deriva em um rochedo. Às vésperas de completar 80 anos, ele estranhou por que tantas estudantes queriam tirar foto com ele. “Os elogios que estou recebendo estão transformando esta solenidade em meu obituário”, disse, às gargalhadas. Ele morreria em outubro de 2001. As telecomunicações foram privatizadas em julho de 1998, três meses antes da tempestade da Rússia que afundou as bolsas de valores em todo o mundo.

Agir por vingança contra o mercado financeiro é como pôr em xeque a confiança em um dos mais eficientes sistemas do mundo. O PIX, como se sabe, foi uma invenção de técnicos e dirigentes do Banco Central e curiosamente teve a oposição escancarada dos grandes bancos. A concorrência saudável produziu o que os especialistas imaginavam: as grandes instituições saíram na frente e, ao mesmo tempo, os bancos digitais com um arcabouço sólido crescem com velocidade. Há mercado para todos, a não ser para o esgoto da Faria Lima, aqueles vendedores de ilusões com papelórios mal escritos e dando as famosas dicas de mercado. Na lista, há também blogueiras e blogueiros que entendem tanto de finanças pessoais quanto o signatário de gamão. Nem preciso falar de nomes. Esse lixo, aos poucos, vai entrando nos latões espalhados pela cidade de São Paulo. Acabou o dinheiro farto e o ouro para os tolos.

Dório Ferman, o gestor do Opportunity, tem a frase pronta quando um espertalhão chega para ele e diz: “Eu tenho uma dica ótima de uma ação”. Sem pestanejar, o engenheiro pernambucano, que cursou a FGV EPGE, responde de bate-pronto: “Nem quero ouvir. Fica para você”. E, educadamente, se afasta do malandro de mercado que nunca leu “O Jogador”, mas engoliu todas as besteiras de livros de autoajuda ou agora fica o dia inteiro no twitter, fustigando empresários que tomam riscos e desenvolvem projetos que dão enorme retorno à sociedade sob a forma de valor adicionado. Em uma petroleira sediada em Salvador é proibido usar o termo ESG − que virou uma espécie de “sin embargo”, como diria o sábio Eliezer Batista. No lugar dele, brilham o conceito: meio ambiente, pessoas e governança. É mais simples falar assim. Essa clareza de mensagem é que ainda inexiste no atual governo, com as exceções de praxe de um Geraldo Alckmin, Marina Silva, Alexandre Padilha, Simone Tebet, Wellington Dias e da grande águia de plantão: Gilberto Kassab. Nisia Trindade e Camilo Santana ainda estão no aquecimento. Precisam se esforçar mais para ganhar a opinião pública em duas agendas caras ao país: a Saúde e a Educação, respectivamente. Até o dócil Fernando Haddad, titular da Fazenda, aos poucos, ocupa o espaço nobre que lhe cabe na Esplanada dos Ministérios. Resta saber se ele terá firmeza e proficiência técnica para transmitir credibilidade às forças ativas da sociedade. Todos aguardam suas diretrizes e, ainda que a âncora fiscal não seja uma pérola rara encontrada em moluscos, que vale uma pequena fortuna, o importante é definir o rumo e seguir com uma agenda consistente. É arregaçar as mangas.
Do seu chefe o que se espera é a agenda internacional. Com a sua enorme capacidade magnetizante, quem sabe, poderá atrair investimentos produtivos ao país e ajudar a selar a paz na Ucrânia. Sonho de uma noite de verão? Lula tem um enorme prestígio nas grandes e pequenas nações de todo o mundo. Tratar a Amazônia de forma sustentável poderá gerar empregos de qualidade e frear o preocupante aquecimento global, protegendo nossos povos indígenas. Obviedade, por vezes, necessita ser repetida, como o bate-estacas de Winston Churchill.

E, por favor, torcemos para que Lula não acredite que o mercado saiu na folia fantasiado de bate-bola, uma tradição no passado de subúrbios cariocas, que tem uma performance assustadora, exibindo a ideia de agressividade. Porém, seguindo a origem dos escravizados libertos, a fantasia contém um grande arquétipo: é um protesto contra o opressor. Espera-se que o governo combata os maus feitos no mercado − não preciso citar nomes dos trambiques − mas não aqueles que dão duro para viabilizar o crédito a todas as classes sociais, o que inclui o excelente programa Bolsa Família, agora sem as fraudes do governo passado.

A propósito: Roberto Campos soava o alerta. “Há três caminhos para cair na desgraça: o mais rápido é o jogo, o mais agradável são as mulheres, e o mais seguro é consultar um economista.” Não perdeu um amigo com a piada. Afinal, manter o humor em meio à borrasca é o primeiro passo para sair com elegância da tempestade ou de uma crise de confiança na família ou nos negócios. O país quer paz e um crescimento sustentável com a repartição do bolo. Há pressa para proteger os desvalidos, os pequeninos do santo Helder Câmara e da Mãe Menininha do Gantois. Foram dois ícones de nosso sincretismo religioso. Agora, a Mãe Carmen, 93 anos, nos abençoa como o Papa Francisco, 86 anos, dando esperança ao seu povo de Deus. Evoé!

*Serviço: A melhor tradução do livro “O Jogador”, feita diretamente do russo, é de Rubens Figueiredo, um talentoso escritor e um incansável encantador das palavras. A apresentação contém bastidores da vida do escritor russo, sabidamente um jogador compulsivo e um epilético crônico. A edição esmerada é da Companhia das Letras em associação à Penguin Group.

Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME.