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O auto engano dos juros e as ideias populistas

Taxas de juros, por definição, não podem ser elementos que sufoquem o capital produtivo, o que dá margem para propostas tipicamente populistas

Juros: necessário aumento das despesas trouxe enormes benefícios a 65 milhões de brasileiros em meio a uma recessão gigante causada pela pandemia (Getty Images/Getty Images)
Juros: necessário aumento das despesas trouxe enormes benefícios a 65 milhões de brasileiros em meio a uma recessão gigante causada pela pandemia (Getty Images/Getty Images)
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Coriolano Gatto

Publicado em 10 de agosto de 2020 às, 09h19.

Vez por outra, surge a ideia do tabelamento da taxa de juros. Ideia que empolga desde os esquerdistas de plantão até grandes empresários com a corda no pescoço. Como se sabe, o juro é um preço como outro qualquer da economia, no caso cobrado na incidência de um financiamento. O tabelamento de um preço foi determinado, pela primeira vez na História, pelo Código de Hamurabi, na antiga Pérsia. Ao congelar o preço do óleo e do sal, era imposta ao infrator a pena de morte em óleo quente. Com o tempo, houve o desabastecimento: sumiram o sal e o óleo para a alegria dos infratores. Desde a História Antiga, nunca houve bobo no mercado.

No Plano Cruzado, em 1986, que tinha como próceres economistas do Departamento de Economia da PUC-Rio, o melhor resumo do fracasso do congelamento de preços fora constatado não pela teoria econômica, mas pelo singelo bolinho de bacalhau. Durante suas viagens na Rio-Teresópolis, um grande economista percebeu que a iguaria continha mais batata do que bacalhau. O preço continuava o mesmo. Outros comerciantes menos astutos diminuíam o tamanho do bolinho e assim a economia funcionara até novembro de 1986. Puro artificialismo. Em fevereiro de 1987, com a estúpida moratória da dívida externa, o Brasil assume o colapso, pois estava sem reservas para importar remédios. Quebrado o tabelamento de juros, proposto pelo senador Davi Alcolumbre, presidente da Casa, ao fixar uma taxa máxima em 30% no momento em que o país pode enfrentar um grave risco fiscal, é uma dessas soluções mágicas, como a do Plano Cruzado.

No caso atual, é importante ressaltar que o necessário aumento das despesas trouxe enormes benefícios a 65 milhões de brasileiros em meio a uma recessão gigante causada pela pandemia. Mantém-se um quadro explosivo da dívida pública e é decretado um juro artificial, tal como foi feito com o bolinho de bacalhau.

Há exageros em ambos os lados. Da mesma forma que o tabelamento lembra o gol de mão não marcado pelo juiz, uma taxa elevada pode significar a morte de empresas. Não há mais bobo. Hoje, um empréstimo no BNDES, com a TLP, a taxa de longo prazo, não sai por menos de 7%, incluindo comissionamento de bancos privados. Isso significa que o custo do dinheiro exige uma rentabilidade alta para os tempos de pandemia. A Selic, a taxa básica de juros, está em 2% ao ano.

Certa vez, perguntei a um economista com pós doutorado no MIT, Estados Unidos, dono de uma bem-sucedida casa bancária, o que ele achava da proposta estapafúrdia do então deputado Fernando Gasparian (PMDB-SP) de propor a regulamentação do tabelamento dos juros em 12% ao ano, seguindo preceito da Constituição de 1988.

– Eu não entendi o seu questionamento – respondeu o banqueiro. Você acha que um bom negócio sério e rentável consegue obter um retorno acima de 10% ao ano?

De fato, grandes negócios no varejo ou na construção pesada ou civil não conseguiam obter uma margem acima dos 8%. Isso para não falar na quitanda do Seu Manoel, aquela que abre às 6h e fecha no início da noite, servindo berinjelas e tomates. O ganho fica muito longe dos 10% e ele não tem as facilidades de emitir ações na bolsa por meio de um IPO, debêntures ou bonds no exterior. Quiçá outros termos mais refinados.

O criativo e competente economista Eduardo Gianetti, no premiado “O Valor do Amanhã “ tratou do assunto com maestria ao lembrar que “limitar a categoria  juro  a pagamentos devidos por empréstimos em dinheiro seria como reduzir a classe dos gols no futebol àqueles que forem marcados de bola parada: uma compreensão parcial e obtusa que não faz justiça à variedade, riqueza e fascínio do fenômeno”.

Ele está certo. Mas taxas de juros, por definição, não podem ser elementos que sufoquem o capital produtivo, o que dá margem para propostas tipicamente populistas como a do senador Davi Alcolumbre ou a ensaios medíocres que subestimam a importância do sistema financeiro dentro de uma saudável economia capitalista.

Sim, não é possível que um banco estatal com a missão de apoiar grandes investimentos de longo prazo cobre taxas mais de três vezes maiores do que aquela determinada pelo Banco Central por meio da Selic. Não é possível também que o mesmo  banco ofereça taxas altamente subsidiadas como ocorreu no governo Geisel (1974-1979), criando falsos campões nacionais, no caso todos situados em São Paulo, gerando o incômodo apelido de Recreio dos Bandeirantes. A festa daqueles grupos empresariais custou caro ao país, pois todos foram à bancarrota, como a Villares, a Cobrasma, a Gradiente e tantos outros. Esqueceram algo básico na economia: não basta dinheiro com a chamada correção monetária negativa de 20% sem a contrapartida de aumento de produtividade. Empresários ricos em um país miserável, como dizia a música de João Gilberto, nosso inconteste gênio da Bossa Nova.

Afinal, os juros são altos no Brasil vis-à-vis o retorno do investimento, conforme perguntei a um banqueiro que tem a boa dose do sarcasmo?

É fato. Os seis grandes bancos cobram taxas caras pois têm (ainda) custos elevados de infraestrutura. Isso leva a uma ineficiência operacional, despropositada com a manutenção de funcionários de baixa qualificação, noves fora as legislações estaduais que obrigam a normas de segurança onerosas e absurdas. Repassam para o consumidor os seus custos altos.

Como diria a música do conjunto Blitz, anos 1980, “ok você não soube me amar”, houve um enorme desencontro entre o capital produtivo e o mundo das finanças. Neste hiato, surgem os oportunistas – não há bobo desde a História Antiga – pela esquerda ou pela direita.

Não custa voltar à fonte:

_ No conto “O Empréstimo”,  Machado de Assis retrata os percalços de um personagem que possuía “ a  vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho”. A  resultante desses dois impulsos discrepantes era uma só: dívidas. Há sociedades que parecem abrigar uma condição semelhante. Elas têm a vocação do crescimento, mas sem a vocação da espera. E a resultante, quando não é inflação ou crise do balanço de pagamentos, é também uma só: juros altos.” _ escreve Eduardo Gianetti.

O Brasil, mesmo com todos os percalços, tem a vocação para o crescimento, desde que obtenha mecanismos viáveis para o financiamento da atividade produtiva, aquela que gera renda, riqueza, prosperidade e equidade. Todos precisam ganhar dinheiro de forma sustentável. É simples assim. Vai evitar que os populistas de plantão apareçam com soluções mágicas e tão úteis quanto uma nota de dois dólares.