Eugenio Sales, o cardeal empreendedor do século XX
O último Príncipe da Igreja morreu em 2012, aos 91 anos, sem deixar sucessores à altura
Publicado em 22 de dezembro de 2021 às, 15h11.
Eugenio de Araujo Sales nasceu em Acari (RN), 1920, tendo se destacado nos estudos, seja no Colégio Militar, onde foi forjado na disciplina e na hierarquia, seja na formação como padre, obtida um ano antes do prazo. Era um menino precoce. É em Natal que o jovem magro, alto e ainda tímido dá início a uma carreira como pároco, que o fez ocupar, décadas depois, cinco cargos no Vaticano, incluindo o equivalente ao de ministro da Economia, e, por 30 anos, a Arquidiocese do Rio de Janeiro. Não à toa levou a alcunha de o último Príncipe da Igreja Católica. Eugenio Sales faz parte de uma geração de conservadores esclarecidos em contraposição a uma direita do pentecostalismo, que domina parte da igreja e do seu poder empresarial.
Era um monarca da fé, que acreditava na mudança em um país dominado pela miséria − como a região onde nasceu e viveu por muitos anos − e na capacidade de transformação dos mais pobres. Desde jovem, estimulou movimentos ligados aos camponeses, que viviam em condições similares às de populações da África Subsaariana. Os presos, tratados com indignidade, tiveram também a sua atenção na assistência religiosa.
O futuro cardeal Sales, aos 51 anos, vindo de Salvador, estava preparado para dar o grande voo de sua vida. Em 1971, em um dia abafado do verão no Estado da Guanabara, Sales, em meio a protestos de quase uma centena de padres, assume o cargo de cardeal arcebispo do Rio. Como o cardeal primaz do Brasil, um dos postos mais cobiçados da Igreja, os padres desconfiavam das ligações do novo mandatário com o regime militar, que, àquela época, fervia mais do que os termômetros cariocas. Era a fase mais dura da ditadura militar, e a patranhada estava à solta, prendendo e matando durante o governo Garrastazu Médici (1970-1974).
Com a visão de um empreendedor e uma habilidade política que aprendeu com o jovem médico baiano Antonio Carlos Magalhães, o ACM, Sales chamou para a sua assessoria os padres mais revoltosos − não por coincidência os de melhor preparo intelectual − e se aproveita do momento ímpar da Guanabara. O centro financeiro do país, sede de grandes bancos, corretoras e distribuidoras de valores, tinha todas as condições para ter uma igreja viva e moderna. Com celeridade, ele cria uma espécie de subprefeituras − os chamados vicariatos − e dá uma voz de comando como quem está no manche de uma gigante corporação privada. Além de um Conselho formado por ex ou futuros ministros de Estado, manteve vínculo com o setor empresarial em uma época de ouro da Cidade Maravilhosa.
Aos números: ao assumir, apenas dois funcionários tinham registro profissional e o caixa era deficitário; ao deixar o cargo em 2001, perto de mil funcionários registrados e um caixa robusto, sem contar os 423 imóveis da Mitra Arquiepiscopal, a gestora católica. Erigiu um edifício moderno, anexo ao Palácio São Joaquim, e o Centro de Altos Estudos do Sumaré, uma espécie de hotel padrão três estrelas, com piscina e suítes, além de um auditório com excelente acústica. Teve a ajuda decisiva do setor privado, especialmente do amigo e construtor João Fortes. Sales herdara uma igreja claudicante em termos financeiros, e deixa para o seu sucessor uma empresa moderna e, ao mesmo tempo, com uma fatia expressiva do mercado da religião. É um retrato inverso ao que ocorre nos tempos atuais, em que os evangélicos, catapultados por seus veículos de comunicação, obtiveram uma expansão jamais vista no maior país católico do mundo.
Como um grande executivo, acordava cedo, nadava na piscina do Sumaré e andava de bicicleta. Antes de o Opala preto transportá-lo rumo à Glória, Zona Sul do Rio, onde fica o edifício João Paulo II, dava as ordens para os subordinados ou falava com autoridades, sempre em busca de manter o equilíbrio em meio a uma ditadura militar e à expansão do seu rebanho. Eugenio Sales tinha muita pressa.
Identificado com a ala conservadora da Igreja, transitava entre os moderados e mantinha um canal direto com o general Golbery do Couto e Silva, ministro-chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel (1974-1979) e início de João Figueiredo (1979-1985). Nutria desprezo pelos governos Costa e Silva e Médici e mantinha restrições ao general Figueiredo − referia-se seu vice, Aureliano Chaves, para os colóquios informais.
Avesso a entrevistas − limitava-se a esporádicas declarações −, conversava em alto nível com os barões da imprensa, que traduziam suas mensagens sem pestanejar, como os amigos Roberto Marinho (Grupo Globo) e Manoel (Maneco) Nascimento Brito, do Jornal do Brasil, em que escrevia todas as semanas.
Era um homem de poucos sorrisos, mas de estratégias política e eclesiástica. As ações e as missões ficavam para os seus auxiliares. Como no caso da intervenção na Diocese de Campos (RJ), cujas missas eram rezadas em latim, nos anos 1980, contrariando o Concílio Vaticano II, de 1961. Uma vergonha para os católicos. Para lá, despachou o seu bispo auxiliar mais conservador, o antigo capelão militar Carlos Alberto Navarro. Em pouco tempo, para a alegria do Papa, a casa estava em ordem, o bispo indisciplinado afastado e, assim, foi evitado um cisma na Igreja, sob os auspícios do francês Dom Sigaud.
Como o visionário Marinho, o cardeal Sales percebeu os ventos das mudanças e não escondia a sua admiração pelo católico Tancredo de Almeida Neves. A ditadura estava por um fio. Guardava distância do tucanato e do petismo.
Diferentemente do cardeal franciscano Paulo Evaristo Arns, o progressista da Arquidiocese de São Paulo, Sales não divulgava as suas ações em favor dos direitos humanos. O importante, dizia, era a eficácia ou a entrega, como se diz no jargão do mercado. Com pragmatismo e senso de justiça, evitou que mais de 4 mil prisioneiros políticos das ditaduras do Cone Sul saíssem do Brasil. Argentinos e chilenos, em sua grande maioria. É provável que até hoje essas famílias rezem por aquele cardeal sisudo. As conversas com o amigo Golbery resolveram o impasse, tendo o apoio das Nações Unidas. Foram semanas de grande tensão no Palácio São Joaquim.
Com esse mesmo pragmatismo, freou uma das maiores violências contra os pobres: a expulsão de moradores da favela do Vidigal. O seu fiel escudeiro e advogado onipresente, Heráclito Fontoura Sobral Pinto, que defendeu presos políticos no Estado Novo (1937-1945) e no ciclo militar (1964-1985), propôs que fosse feita uma aerofotogrametria do morro. Era uma prova de que as favelas existiam, embora não constassem do antigo Plano Diretor da cidade e à margem da Lei de Uso de Ocupação do Solo Urbano. Cerca de um terço da população carioca morava em comunidades, mas fazia parte do universo dos invisíveis, tema hoje na moda. Feita a imagem e uma ação civil pública, a Igreja ganha a causa, e o condomínio de luxo, que começou a ser planejado em uma das vistas mais deslumbrantes da cidade, foi destruído. A ironia era que o arquiteto comunista Oscar Niemeyer fora contratado para o empreendimento, sem saber, naturalmente, do ato vilipendioso que expulsaria cerca de 200 famílias de seus barracos. A famosa missa de João Paulo II, o polonês Karol Wojtyla, no Vidigal, em julho de 1980, foi um ato de desagravo. Na ocasião, Sales não deixou que a verdadeira motivação política viesse a público. Afinal, a sua fé em Cristo e devoção à Nossa Senhora eram a prova inequívoca de que protegera os pequeninos, como dizia o seu amigo Hélder Câmara.
O cardeal agia nas sombras e não escondia o entusiasmo com a expansão de suas pastorais − das mais convencionais até a de favelas, trabalhador, saúde e carcerária. Por dentro da indumentária do cargo, ele exibia o olhar vibrante nas procissões em homenagem a São Sebastião, padroeiro do Rio, cujo ato religioso, dia 20 de janeiro, paralisava parte da capital. O amor à cidade e ao santo foi estampado na nova catedral, inaugurada em 1979, com vitrais e arquitetura arrojada.
Como um verdadeiro CEO, aceitava o mecanismo de participação na Igreja, tal como definido pelo Papa Paulo VI, mas se recusava a seguir as mesmas regras da sociedade civil: a Igreja não é uma democracia, que é o amálgama de nossas instituições. Aqui dentro a palavra final é a do Pastor, que segue as diretrizes de Roma.
As mudanças nos anos 1980 obrigaram o cardeal a ceder a algumas posições; mas, como dirigente de uma organização, não se curvava a opiniões ou aderia a novas teorias. Com Sobral Pinto e outros, cerrou fileiras contra a Teologia da Libertação; porém, ao mesmo tempo, promoveu, no Sumaré, encontros para debater grandes temas nacionais, reunindo expositores que apresentavam ideário divergente, o que incluía comunistas e ex-presos políticos, já incorporados ao ambiente do novo Brasil. Para ele, era um grande brainstorming, cujas conclusões resumidas eram endereçadas às autoridades competentes. A imprensa tinha acesso aos participantes apenas no encerramento do encontro. E o cardeal não interferia nos dois dias de debates, falando com brevidade ao fim do seminário. Apenas ouvia.
Dom Eugenio, como ele se definiu, era “parco em elogios” e, por isso, tinha horror a assessores medíocres. Em boa medida, aceitava o contraponto, desde que não caísse no dogmatismo. Os encontros no Sumaré, em pleno regime de exceção, demonstravam o espírito público, evitando o “nós contra eles”.
Certa vez, o midiático juiz Alyrio Cavalieri, em uma reunião fechada do Conselho Pastoral, pediu ao cardeal que interferisse junto à TV Globo para censurar a exibição de filmes brasileiros depois da novela das oito, sob a alegação de pornografia. Sales ouviu com educação e deu uma aula de comunicação para o juiz.
“Quando a Igreja e o Papa são atacados pela Teologia da Libertação, eu peço ao Roberto Marinho 30 segundos no Jornal Nacional para defendê-los. Ele sempre me atende. Nesse caso, doutor Alyrio, o pastor conhece o limite dele, sabe até onde pode ir”. E encerrou a reunião. Marinho sabia que a abertura democrática exigia uma programação mais ousada, e o líder católico conhecia a importância da publicidade para custear uma TV com o padrão de qualidade da Rede Globo.
Em outro momento, ao conhecer as precaríssimas condições carcerárias, o cardeal convoca a imprensa, em meados de 1981, durante o único governo estadual do MDB, o partido de oposição ao regime militar. Havia situações sub-humanas no antigo complexo penitenciário Frei Caneca, bairro Cidade Nova. Depois de conversar com os presos e transitar pelas instalações − cheiro de fezes, mijo e água respingando nas celas −, ele concede uma única declaração: "Bandidos não podem tomar conta de bandidos". Mesmo com a ação enérgica do cardeal, as mudanças foram cosméticas, e, por isso, ele reforçou a sua pastoral carcerária.
Sim, a pastoral lhe pertencia em espírito, da mesma forma que os cinco importantes cargos que exerceu durante o mandato do seu amigo Karol. Sales foi um dos três cardeais do mundo a participar da restrita solenidade fúnebre de João Paulo II.
Engana-se quem pensa que o executivo da fé pensasse em trabalho em suas jornadas de 14, 16 horas por dia. No círculo com amigos ou intelectuais, ele não abria mão de um vício: os charutos Dannemann, cuja fábrica ele evitou a falência quando fora o cardeal primaz, na Bahia. Todos os anos recebia caixas da melhor qualidade do produto.
Há uma foto − perdida no tempo, produzida pela grande angular de Gilda Rodrigues Vieira, uma mulher rica que fez os votos de pobreza e concluiu Jornalismo na UFRJ − em que Sales, sentado no intervalo de um encontro no Sumaré, dá uma longa tragada no charuto Dannemann. A imagem em preto e branco circulou entre algumas salas do edifício-sede da Arquidiocese do Rio e despertava a incredulidade dos poucos que viram a foto. Gilda ria e era acompanhada por Maria de Lourdes Santos, a Lourdinha, que fora secretária dele desde os tempos em Natal. Ela exibia o outro lado de Eugenio. Relaxada e dona de um sorriso fácil, vivia de forma espartana e era também devota de Nossa Senhora.
Mesmo com todos os percalços da vida intensa, viagens internacionais em profusão sem qualquer luxo, Sales cumpriu à risca os ensinamentos de um servo de Deus e de um líder. Ele fez mais pelos pobres e pelos presos políticos do que muitas organizações não governamentais − nacionais e estrangeiras − que pagam salários generosos a seus dirigentes.
Foi um líder de atitudes, jamais titubeava em qualquer situação. No início de setembro de 1980, celebrou na igreja da Candelária a missa de sétimo dia pela alma de Lyda Monteiro da Silva, secretária do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), morta num atentado terrorista da extrema-direita à sede da entidade, na gestão de Eduardo Seabra Fagundes. A carta-bomba era endereçada ao grande advogado. Em novembro seguinte, de acordo com o FGV CPDOC, recusou-se a receber a Medalha do Pacificador, que lhe fora conferida pelo Exército, declarando que, embora tivesse apreço pela condecoração, “quanto à recepção da mesma, deixo o assunto para posterior apreciação”. Em dezembro do mesmo ano, manifestou-se preocupado com “a infiltração de ideologias contrárias ao cristianismo” nas comunidades eclesiais de base, declarando, em janeiro do ano seguinte, que na Nicarágua a Igreja vinha sendo “utilizada de forma astuciosa pelos sandinistas para disfarçar seus verdadeiros objetivos políticos e, dessa forma, impedir que haja oposição ao estabelecimento de um regime marxista no país”. O cardeal sempre teve os dois pés na legalidade e jamais aceitou as arbitrariedades do Estado:
"O perdão está condicionado a vários fatores. Assim, quem foi condenado por julgamento injusto, tem direito à anistia; quem cometeu crime, dentro dos padrões normais que regem a sociedade, pode merecer essa mercê, mas não tem o direito de exigi-la", disse.
O último Príncipe da Igreja morreu em 2012, aos 91 anos, sem deixar sucessores à altura. As longas prosas com Golbery, ACM, Petrônio Portella, Tancredo, Marco Maciel, Celio Borja, Sobral Pinto, Marcílio Marques Moreira e tantos outros se perderam em algum chalé da memória, mas ficaram as lições de que é possível dar resultados em favor dos mais pobres sem fazer alardes na mídia ou adotar posturas radicais − à direita ou à esquerda. A virtude está no meio, dizia São Tomás de Aquino, e esse foi um dos lemas do grande empreendedor da Igreja Católica.
*Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME.