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A Maga e a Raposa

Maria da Conceição e Sarney comemoraram 90 anos em dois brasis distantes

Cristo Redentor, no Rio, iluminado para as Olimpíadas: cidade onde mora a economista Maria da Conceição Tavares (Buda Mendes/Getty Images)
Cristo Redentor, no Rio, iluminado para as Olimpíadas: cidade onde mora a economista Maria da Conceição Tavares (Buda Mendes/Getty Images)
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Coriolano Gatto

Publicado em 30 de agosto de 2020 às, 11h11.

Última atualização em 30 de agosto de 2020 às, 11h15.

A economista Maria da Conceição Tavares e o ex-presidente José Sarney completaram 90 anos no dia 24 de abril. A data passou desapercebida da mídia por conta da Covid-19 em que pese a importância dos personagens e a inevitável fatalidade biológica, como escreveu o economista Eugênio Gudin ao empresário Roberto Marinho perto do seu centenário. Para quem não conhece, cara leitora e caro leitor, Gudin (1886-1986) foi o fundador do curso de Ciências Econômicas no Brasil no início do Século XX.

Sarney está no Congresso Nacional desde os anos 1950 e conhece as engrenagens do parlamento — dos ambientes abertos ao público até os locais mais soturnos, onde são tomadas as grandes decisões — para o bem ou para o mal.

O importante é o simbolismo dos dois personagens, míticos em escolas de Economia e de Política. Maria — como é carinhosamente chamada pelos amigos mais próximos — e Sarney têm pouca coisa em comum além do ano e do dia de nascimento: o apoio incondicional ao ex-presidente Lula. As razões são diametralmente opostas. A velha professora da Unicamp e da UFRJ sempre foi alinhada com o pensamento progressista e pagou um preço caro durante a ditadura civil militar, ao contrário de Sarney, que se beneficia do regime. E ao migrar do partido do chamado sistema, o PDS, ganha o bilhete premiado com a morte trágica de Tancredo Neves, em abril de 1985. Sarney deixa a presidência como o pior presidente do regime democrático: inflação de 80% ao mês, endividamento interno e externo explosivos e quatro fracassados planos de estabilização (Cruzado 1, Cruzado 2, Bresser e Verão). Foi a festa dos rentistas e o aumento dos bolsões de pobreza, como o do seu Maranhão, que ostenta índices elevados de miséria, apesar dos esforços competentes do governador Flávio Dino, que rompe com a longeva oligarquia dos Sarney.

Conceição, ainda no PMDB, chorou ao defender o Plano Cruzado de Sarney, que estava mais preocupado em eleger governadores em novembro de 1986, do que em manter a racionalidade econômica. Foi uma vitória acachapante, mas os resultados, como a história comprovou, empurraram o país para o abismo. Sarney ainda deu um golpe de mestre de araque: decreta a moratória da dívida externa em fevereiro de 1987, causando a perda de credibilidade do país. Irritou a direita e desagradou a esquerda.

A economista sempre manteve a coerência naquele jeitão de ser e de agir. Sem cerimônias ou gestos de delicadeza em um embate político.

Ao contrário do político matreiro, conhecido por sua arte de encantar serpentes. Sarney é hipocondríaco, enquanto Conceição fuma desbragadamente e bebe vinhos de baixo custo. Mora de forma espartana mesmo com todo o poder que teve na República: reside em um modesto apartamento no Cosme Velho, Zona Sul do Rio.

Durante a ditadura quase foi assassinada por setores do regime militar, que usariam o mote do desaparecimento, uma verdadeira patranhada, para atingir o Governo Geisel (1974-1979).

Nesta época, Sarney, depois do primeiro mandato como governador, desfrutava o cargo de senador pela Arena, o partido oficial. Sarney limitava-se a produzir discursos falsamente eruditos sobre temas variados, como o AI-5 e o próprio regime militar. Vivia um dolce far niente.

Conceição relatou que graças ao alerta de Octavio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda no governo Castello Branco, e seu antigo tutor na Faculdade de Economia da atual UFRJ, ela escapara da tigrada. Disse Bulhões: “Eu vou falar com o Mario Henrique (então ministro da Fazenda) e você vai para o aeroporto internacional com a segurança dele, que é a mesma da do Geisel”.

A mãe de Conceição enviava todos os anos um excelente vinho do porto para Octavio Bulhões em sinal de agradecimento. Conceição se recusava a agir como a mãe. “A minha relação com ele é profissional e intelectual. Eu não tenho que agradecer nada”, me disse em um depoimento.

E deu mais uma estocada no então ministro Mario Henrique Simonsen:

— Antes de agradecer, Mario, quero dizer que você não fez mais do que a sua obrigação. Para isto, foi menino educado no Santo Inácio (colégio tradicional da Zona Sul do Rio mantido pelos jesuítas).

É a Conceição em estado puro, conforme me disse em seu apartamento.

Bulhões era um notável servidor público, promovendo, ao lado de Roberto Campos, as grandes reformas na economia entre 1964 e 1967. Morreu pobre em 1990.

Conceição e Bulhões são formidáveis economistas de um Brasil que já foi generoso com as divergências ideológicas, com o verdadeiro livre pensar, mesmo nos anos de chumbo. Eles sempre pensaram um país grande e solidário, independentemente de visões opostas. Pessoas encantadoras de um país que já foi mais cordial.

A economista Conceição formou gerações e foi uma polemista de grande envergadura. Como o mestre Bulhões, ela tem hábitos simples. Os seus nomes já entraram para o panteão das boas universidades e sempre serão lembrados. Sarney, incensado por políticos de direita e de esquerda, é o melhor representante de oligarquias ultrapassadas, do fisiologismo, como destacaram os jornalistas Paulo Francis e Millôr Fernandes. O ex-presidente carregará a alcunha de “a vanguarda do atraso”. Não vamos falar de acumulação de fortunas.

Que as novas gerações, engajadas na inclusão social e nas importantes questões de gênero, possam ter a mesma disposição da Maria dos anos 1970, que não levava desaforo para casa. “Porra, está tudo errado. Este país é formidável por sua gente”. A frase é inventada pelo signatário que conheceu a professora no longíquo 1986, na Praia Vermelha, sede da Faculdade de Economia da UFRJ, que formou um celeiro de grandes profissionais. Conceição e Bulhões são os santos da profissão de economista e do serviço público. As ideologias densas trafegam para o mesmo rio caudaloso, como em um conto de Herman Melville (1819-1891).

*Jornalista