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Rosa Weber salvará os trapaceiros? Um mergulho em seu voto

Até o asfalto da Praça dos Três Poderes sabe o caminho a ser percorrido para que a justiça seja feita. Tomará a ministra a decisão que todos esperamos?

ROSA WEBER: ela destacou a importância do pleito, ressaltou a necessidade de participação das pessoas, enalteceu o princípio da tolerância e reafirmou a segurança das urnas eletrônicas (Adriano Machado/Reuters)
ROSA WEBER: ela destacou a importância do pleito, ressaltou a necessidade de participação das pessoas, enalteceu o princípio da tolerância e reafirmou a segurança das urnas eletrônicas (Adriano Machado/Reuters)
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Celso Toledo

Publicado em 16 de abril de 2018 às, 11h26.

Ler os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma tarefa que tem sido empreendida por número crescente de colegas por razões óbvias. Não bastasse o ofício inglório de inferir o que passa na cabeça do Banco Central a partir de seus comunicados, a faina exegética agora mudou de patamar, pois as falas emboladas dos magistrados testam duramente o raciocínio de quem foi treinado a pensar cartesianamente como é o caso da maioria dos economistas.

Resolvi ler o voto de Rosa Weber porque, ao que tudo indica, sua opinião deverá ser novamente decisiva quando o mérito da questão envolvendo a possibilidade de réu condenado em segunda instância iniciar o cumprimento da pena for colocado em discussão. Não custa lembrar que a deliberação do STF será crucial para manter ou dar uma ducha de água fria no esforço que o país tem feito para combater a corrupção, tema intimamente ligado a desenvolvimento econômico.

Quando o habeas corpus de Lula foi votado, até os bares que na falta de jogos de futebol de ligas menores costumam passar emocionantes partidas de golfe tinham as televisões ligadas no julgamento. A população trabalhadora, que acha que os gatunos de todos os lados devem ser punidos e que, certamente, já não presume a inocência de muitas autoridades, queria ouvir o voto de Rosa Weber para saber se a operação abafa prevaleceria ou não.

Quando comecei a ouvir o voto da ministra, sabia que ela poderia recusar o pedido da defesa de Lula, mas não via razão para nutrir maiores esperanças porque se dizia que ela era adepta do “trânsito em julgado”. Ou seja, seria uma questão de tempo para a impunidade voltar a reinar. No final, Rosa Weber deu o voto necessário para engaiolar Lula, respeitando a jurisprudência da corte, mas ressalvou que a questão de fundo ainda precisaria ser discutida em plenário.

Apesar do resultado relativamente esperado, durante a fala tive a impressão de que os pressupostos teóricos averbados para dar sustentação ao voto deixavam aberta a porta para uma mudança de opinião na votação do mérito. Além disso, a conduta da ministra passou a mim a imagem do “magistrado modelo”, aquele que, sem parcialidade, usa com lucidez e parcimônia os graus de liberdade que possui para aplicar a lei e, no final do dia, fazer valer, da melhor forma possível, o espírito das regras imaginadas pelo legislador.

Tratava-se apenas de uma impressão, é claro, pois não sou advogado e não costumo acompanhar as sessões do STF e, ademais, além de exibir uma postura elegante na corte, Rosa Weber tem também a desejável qualidade de ser reservada. Ao ver sua atuação, o contraste com os pares menos discretos, mais volúveis e mais assertivos pareceu-me cavalar.

Embalado pela dúvida, resolvi enveredar pela íntegra do voto da ministra para confirmar ou não a impressão que tive. Recomendo fortemente a leitura a quem quiser aprender algo sobre o fascinante mundo do direito. Ressalvo que a análise que se segue é a de um leigo acostumado a raciocinar na base do dois e dois são quatro, algo que, descobri, não ajuda muito em questões jurídicas. De qualquer forma, se o que depreendi estiver correto, o Brasil ainda tem a chance de evitar o lamentável retrocesso encomendado em relação ao que funciona no mundo civilizado.

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Rosa Weber alicerçou seu voto em cinco “premissas teóricas” que listo a seguir.

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Na primeira premissa, a ministra destacou que no ofício de “assegurar a supremacia” da Constituição, as decisões da justiça muitas vezes aguçam o descontentamento da sociedade na medida em que esta tende ter uma visão plebiscitária da democracia, sobretudo em momentos históricos conturbados como o que o Brasil está atravessando.

A única forma de evitar o vale tudo e o casuísmo é ter regras. No entanto, as regras nem sempre são claras, pois o Direito, que ela escreve com d maiúsculo, tem um “caráter indeterminado”, especialmente o texto constitucional. A sociedade confia que os membros do STF, não eleitos e imparciais em tese, são os melhores candidatos a interpretar e aplicar a lei.

Cita um célebre professor alemão que diz “somente em casos excepcionais o texto de uma norma fornece imediatamente a resposta a uma questão jurídica” e “o significado de uma norma geral em relação a um caso individual deve ser determinado pela interpretação”.

A Constituição é um texto aberto, incompleto e às vezes inconsistente. Por isso, o conteúdo de certas provisões precisa ser determinado por raciocínio que às vezes “dificulta o reconhecimento dos limites entre a interpretação e sua alteração”. Assevera, no mais, que a “aplicação de normas não pode ser claramente distinguida da criação de normas”.

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Na segunda premissa, Rosa Weber colocou o princípio da segurança jurídica à frente de tudo, até mesmo do fatídico inciso constitucional que define de modo restritivo quando se deve deixar de presumir a inocência dos condenados.

Para a ministra, previsibilidade é um princípio “ínsito (…) ao próprio conceito de justiça”. Mudar frivolamente de opinião reagindo a situações conjunturais gera imprevisibilidade, insegurança e a sensação de que não há justiça e sim a defesa arbitrária de interesses.

A ministra é cautelosa e sublinha que a vida é dinâmica e que, portanto, as jurisprudências podem mudar. No entanto, surpresas e solavancos devem ser evitados, preferindo-se que a “atualização do Direito” ocorra com embasamento firme.

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Na terceira premissa, a ministra versou sobre o princípio da colegialidade como método “imprescindível” pelo qual um grupo de julgadores deve tomar decisões. Diferenciou a escolha colegiada da individual e esclareceu, ainda, que o veredito colegiado não é exatamente igual a uma decisão em que cada um opina, contam-se os votos para A e B e prevalece a maioria. Este procedimento estaria também baseado em manifestações individuais.

O princípio da colegialidade é sutilmente diverso e pressupõe a existência de um processo que logre no final a produção de uma “racionalidade única, institucional, do tribunal” a partir dos argumentos jurídicos dos julgadores. Não fica muito claro como proceder para atingir esse objetivo, mas ela indica que respeito e confiança recíproca entre os membros são ingredientes essenciais para produzir a “vontade coletiva”.

Um trecho importante é o que afirma que “as vozes individuais vão cedendo em favor de uma voz (…) desvinculada das diversas interpretações jurídicas colocadas na mesa para deliberação”. Ou seja, aplicar o princípio da colegialidade implica a predisposição a sacrificar convicções individuais em prol de um entendimento que melhor reflita a opinião comum.

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Na quarta premissa, Rosa Weber embrenhou-se em terreno mais esotérico para quem não é do ramo e tratou das repercussões das decisões judiciais, especificamente na formação dos precedentes, distinguindo-os dos efeitos vinculantes obrigatórios e mais estritos.

Ao tratar de um assunto específico, o STF interpreta o direito e, naturalmente, estabelece um marco para as leituras posteriores. Ignorar o passado enseja o risco da incoerência violando-se o conceito de justiça “na dimensão da equidade”. Segundo o Código de Processo Civil, “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Com razões fortes, no entanto, é possível ignorar os precedentes que, de forma alguma, devem ser aplicados mecanicamente, pois não possuem efeito vinculante.

Os precedentes criam, portanto, tensão nos tribunais, contrapondo, de um lado, a preocupação com a coerência e, de outro, a evolução do Direito.

Com boa argumentação, o julgador pode rever decisões e a jurisdição constitucional tem caráter “aberto e progressivo”. Assevera, além disso, que o magistrado não pode “jamais abrir mão de buscar a resposta que preserve (…) [a] integridade do direito”.

Deve buscar fazer o que é certo.

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Na última premissa, a ministra lembrou que o plenário é o lugar para mudar a jurisprudência da corte e observou também que as decisões judiciais devem ser bem fundamentadas, apoiadas na “melhor interpretação possível do direito objetivo” e refletir as convicções do magistrado “sobre os ideais de integridade e equidade políticas e de devido processo legal”.

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A pergunta de um milhão é saber como alguém que se apoia nessas premissas enfrentará o terrível paradoxo que, de um lado, patenteia trecho da Carta Magna que não dá margem a dúvidas e, de outro, ostenta a óbvia injustiça que deriva da aplicação ipsis litteris da disposição?

Não há como ter certeza de uma mudança de opinião, pois o arrazoado da ministra é aberto e ela já votou pelo “trânsito em julgado”.

No entanto, alguém que emite todos os sinais de ser uma pessoa lúcida, imparcial e preocupada em fazer o que é o certo, que é avessa a mudanças de jurisprudência apoiadas em motivações frívolas, que acredita na importância de tribunais que não mudam de orientação porque os membros são outros, que entende que a Constituição é um texto aberto e não necessariamente consistente, que vê o julgador como alguém que estabelece normas quando interpreta o texto constitucional e que acredita que convicções pessoais devem ser sacrificadas para se chegar à vontade coletiva, pode muito bem surpreender neste momento histórico delicado em que a população está obviamente cansada da iniquidade e propensa a dar uma guinada autoritária nas eleições.

Afinal de contas, hermenêutica à parte, até o asfalto da Praça dos Três Poderes sabe o caminho a ser percorrido para que a justiça seja feita.