Por que Lula escolheu mais inflação?
A motivação foi eleitoral, mas não é trivial desvendar o cálculo. A evidência sugere que o eleitorado se importa mais com inflação do que com crescimento
Publicado em 6 de dezembro de 2024 às, 06h01.
Enquanto aguardava as medidas de arrumação fiscal, o “mercado” concedia o benefício da dúvida ao governo. Nesse embalo escrevi “salvo um tropeço muito grande, a poeira [deveria] baixar depois do anúncio”. Na verdade, ao invés de um tropeço houve uma trombada.
De forma não surpreendente, o ajuste faz-de-conta foi lido como uma opção inflacionária. O juro real pago por uma NTN de 5 anos voltou a superar os 7%, algo inédito desde 2015, quando a economia despencava ao ritmo de 3% ao ano. O dólar chegou a R$ 6,10.
A questão agora é entender o porquê da escolha e estar preparado para as consequências.
É lógico que a motivação foi eleitoral, mas não é trivial desvendar o cálculo. A evidência sugere que o eleitorado se importa muito mais com inflação do que com crescimento econômico.
Ao erodir o valor do dinheiro, a inflação afeta a todos, principalmente os mais pobres. Por outro lado, quando a economia fraqueja temporariamente em reação a medidas de austeridade, a alta do desemprego não gera uma sensação de perda generalizada.
Nos EUA, por exemplo, Donald Trump ganhou de lavada a Casa Branca apesar da pujança da economia, com taxas de desemprego baixíssimas e salários aumentando consistentemente em termos reais. É quase consensual que o fator econômico que pesou contra os democratas foi a inflação.
Pode até ser que as pressões encomendadas pelo fiasco da semana passada não sejam tão fortes até 2026 a ponto de comprometer a força eleitoral do presidente ou de seu indicado, mas é impossível saber de antemão porque não é de hoje que a economia vem operando acima do potencial. Lula arriscou.
Uma dificuldade de entender a preferência pela via que é pior para o país é que a alternativa não parecia ser evidentemente mais custosa politicamente. De início, não era preciso anunciar medidas draconianas de ajuste, que permitissem, por exemplo, estabilizar o endividamento – algo que em princípio seria até razoável exigir de um governo responsável, dada a vulnerabilidade fiscal.
Bastaria (i) sinalizar de forma crível respeito à restrição orçamentária intertemporal e (ii) comprometer-se com o cumprimento de metas pouco ambiciosas para o curto prazo, coerentes com o “arcabouço” – que, de resto, é bastante leniente.
O mercado aceitava ser enganado, mas com elegância.
Ao se recusar a chutar para o gol a bola redondinha que estava em seu pé, Lula escanteou o resto de esperança que se tinha de que seu terceiro mandato poria fim à onda de populismo eleitoreiro explícito que marcou a última eleição. O cristal trincado é um marco simbólico que vai além do estelionato em si.
A preferência de Lula no dilema entre inflação e crescimento pode funcionar eleitoralmente, pois a aceleração da inflação, se vier, será gradual. É possível que parte da reação negativa inicial do mercado seja revertida. Mas o dano reputacional é permanente – a patacoada empobreceu o Brasil.
Um trabalho influente do final dos anos 80 permite entender racionalmente a má escolha como fruto do jogo político (*). A incerteza sobre quem governará o país no futuro faz com que o governante atual não internalize totalmente o custo de elevar a dívida, pois a conta pode sobrar para o adversário.
Assim, o endividamento tende a ser maior quão (i) maior for o grau de polarização política; (ii) menor for a probabilidade de reeleição do incumbente; e (iii) mais rígidos forem os gastos do governo. As três condições parecem ser válidas atualmente.
A polarização política é enorme, com temáticas “culturais” desbancando as econômicas. A esquerda levou um baile nas eleições municipais e provavelmente está com as barbas de molho. E gastos obrigatórios consomem praticamente a totalidade do orçamento.
Ao evitar o ônus de fazer o que era o certo, preferindo embarcar em uma aposta eleitoral de resultado duvidoso, Lula não necessariamente agiu de forma irracional – lembrando que o interesse nacional é secundário no cálculo político quando o nó a ser desatado produz benefícios apenas a longo prazo.
O corolário é que se a opção pelo atraso tiver como explicação a fornecida pelo modelo acima, a dívida continuará subindo mais do que o economicamente ótimo até que o ajuste tenha que ocorrer na marra, com recessão e inflação – independentemente de quem venha a ganhar a eleição.
O “mercado” parece ter entendido o recado.
(*) Alesina, A. e Tabellini, G. (1990) “A Positive Theory of Fiscal Deficits and Government Debt”, Review of Economic Studies, 57, 403-414.